Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Maio de 1999 - Vol.4 - Nş 5

Conversando com familiares sobre a esquizofrenia*

Cecília C. Villares, Maria Thereza Natel e Ivanise B. Ribeiro

Introdução

Sabemos hoje que as famílias, no mundo todo, são bastante sobrecarregadas com a responsabilidade de cuidar de seus familiares portadores de doenças mentais graves (DESJARLAIS et al. 1995). É geralmente no meio familiar que doenças como a esquizofrenia são identificadas como um problema; cabe aos familiares, por exemplo, procurar o médico, administrar o tratamento prescrito, lidar com situações de crise decidindo quando e como procurar ajuda e elaborar alternativas de convivência com a doença. Aos familiares é pedido que entendam e aceitem a doença e que desenvolvam expectativas realistas, protejam e estimulem o familiar doente de acordo com suas possibilidades, tarefas muitas vezes confusas diante das vivências diárias e sobretudo frente à complexidade dos problemas enfrentados.

Somada a essa demanda, a inexistência de uma rede efetiva de apoio na comunidade e de programas de reabilitação abrangentes apresenta aos familiares o desafio muitas vezes solitário de encontrar meios de articular algum nível de inserção social e econômica para tentar minimizar os prejuízos causados pela incapacidade e pelas desvantagens decorrentes dessa complexa problemática. Nesse sentido, as famílias sofrem e sentem-se isoladas de uma maneira semelhante ao sofrimento e retraimento do paciente diagnosticado com esquizofrenia.

Reconhecendo essa realidade, os diversos modelos de tratamento e reabilitação para a esquizofrenia e outros transtornos mentais graves têm procurado desenvolver uma abordagem familiar baseada em três formas de intervenção: orientação, educação e terapia familiar. E embora essas intervenções fundamentem-se em diferentes pressupostos e portanto tenham objetivos específicos distintos, todas compartilham a idéia de que para que o tratamento e a reabilitação do portador de esquizofrenia possam ser mais efetivos é muito importante que as famílias estejam envolvidas desde o início do processo de tratamento.

Partindo da premissa de que um dos aspectos essenciais para a integração dos familiares ao processo de tratamento e reabilitação em esquizofrenia é o acesso à informação sobre a doença, sobre as possibilidades de tratamento e alternativas de convivência familiar com os problemas decorrentes da doença, o Núcleo de Família do PROESQ – Programa de Esquizofrenia do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP – EPM, desenvolveu em 1998 junto a grupo de familiares de pacientes do Programa, um trabalho educativo entitulado "Seminários Informativos sobre a Esquizofrenia"

O texto que se segue é um resumo desse projeto e tem dois objetivos principais: 1) Divulgar uma modalidade de serviço que, embora fundamental num programa de assistência, permanece pouco estudada e, consequentemente, raramente publicada e discutida entre os profissionais da área. 2) Relatar o desenvolvimento de um modelo de abordagem educativa para familiares de pacientes portadores de esquizofrenia que partiu da proposta de tornar as famílias co-participantes da construção deste modelo.

SEMINÁRIOS INFORMATIVOS SOBRE A ESQUIZOFRENIA

Origem e justificativa do Projeto:

As descrições de programas educacionais para familiares e pacientes encontradas na literatura, como por exemplo ANDERSON et al. (1986), McFARLANE (1990), MARSH (1992) e LEFLEY & WASOW (1994) são um recurso importante para o planejamento e condução de um projeto dessa natureza. Porém, o desenvolvimento de um projeto que se configure um modelo pertinente a um determinado contexto sociocultural tem que levar em conta as questões relevantes segundo o grupo objeto da intervenção. Nesse sentido, partimos para esse projeto conhecendo as experiências de outros modelos propostos, mas buscando levantar, através de nosso trabalho, as necessidades particulares do grupo de familiares do PROESQ. A idéia desse projeto surgiu também a partir de questões suscitadas através de um estudo etnográfico realizado com familiares de pacientes do Programa (VILLARES, 1996), que ao pesquisar as construções sobre os conceitos de doença entre esse grupo apontou a importância da aproximação entre o conhecimento do profissional e a experiência e o conhecimento dos familiares para o desenvolvimento de uma rede colaborativa, bem como a inexistência de uma estrutura organizada em torno da informação e da troca de conhecimentos entre esses dois pólos. Informados por resultados desta pesquisa e visando implementar um trabalho com familiares que desse continuidade aos princípios de uma abordagem sistêmica - construtivista, formamos um núcleo no PROESQ com o objetivo de estudar e desenvolver recursos para a intervenção familiar na esquizofrenia.

Início do Projeto

Para a primeira reunião, foram convidados todos os familiares de pacientes do programa que estivessem interessados em conversar e conhecer mais sobre a doença. Nesse primeiro encontro, apresentamos o objetivo principal do trabalho a ser realizado: desenvolver uma série de encontros-aula para abordar aspectos do problema que fossem considerados importantes por eles. Para isso, ouvimos, anotamos e registramos num gravador perguntas e depoimentos dos familiares presentes. Esse material foi organizado em grupos temáticos e apresentado para discussão no segundo encontro quando, novamente, com a participação dos familiares definimos a relevância de cada tema e escolhemos uma seqüência para a continuidade do trabalho.

Exemplos de perguntas e depoimentos de familiares

O que é esquizofrenia, qual é a causa? Está na mente? Está no subconsciente?

Existe algum exame mais minucioso, por exemplo, ressonância, que possa achar o que está errado com o cérebro?

Os altos e baixos – é uma coisa da doença? Será que a ociosidade contribui para a piora?

Eles são doentes? Eles se sentem doentes? Será que o fato do doente não se achar doente é próprio da doença?

Como a gente aprende a aceitar?

Ameaça de suicídio - é chantagem? é desânimo? O que fazer para motivar o familiar doente?

Eles perdem a noção do tempo, espaço, perdem a disciplina?

O familiar tem que ser psicólogo do próprio filho?

Como conversar com o doente sobre a doença?

É difícil cuidar... impor limites... É difícil controlar o remédio: tomar, não tomar, a dose certa...

O que o pai pode fazer? E os irmãos?

As vezes é mais fácil entupir o doente de remédio para não ter que lidar com as manias e as dificuldades...

Como entender o sofrimento? É uma prova de fé? É um problema complexíssimo...

Temas abordados

1- Esclarecimentos sobre a doença:

  • - História sobre o "conceito esquizofrenia", sintomatologia, diagnóstico e diagnóstico diferencial, avaliação laboratoratorial, avaliação psicossocial, curso, evolução e prognóstico.
  • - Estudos sobre as possíveis causas da doença: genética, alterações cerebrais, fisiológicas e bioquímicas; vulnerabilidade para a doença; epidemiologia.

2- O Tratamento: atendimento e acompanhamento

  • - O acompanhamento psiquiátrico: a primeira consulta, a decisão do tratamento a ser instituído; medicação; efeitos colaterais importantes.
  • - As abordagens psicossociais, psicoterápicas, familiares e grupos de apoio.

3- Como lidar com o familiar doente em relação ao tratamento

4- Como lidar com o familiar doente em relação a situações de agressividade e inadequação, descuido, tentativas de suicídio, e mudanças de comportamento

5- Como lidar com a ociosidade, com o desânimo e com o isolamento

6- As famílias: necessidade de apoio e tratamento

  • - O sofrimento familiar e os recursos desenvolvidos para lidar com os problemas identificados.

7- Como funciona o PROESQ, outras alternativas de tratamento e instituições, grupos de auto-ajuda e a questão da reabilitação

8- Direitos dos portadores de doenças mentais e a questão do resgate da cidadania.

O processo de trabalho

Os seminários informativos foram desenvolvidos entre abril e outubro de 1998. Durante esse período foram realizadas dez encontros, inicialmente com intervalos de quatro semanas e passando a intervalos quinzenais a partir da metade do projeto. Participaram em média 15 familiares e três profissionais por encontro. Foram utilizados vários recursos didáticos: aulas expositivas com transparências, discussões em pequenos grupos e discussões com o grupo todo.

O projeto dos Seminários resultou num importante espaço de reflexão para nós, profissionais – a respeito, por exemplo, da maneira como lidamos com questões habitualmente tratadas na clínica, diante do desafio de estabelecer um diálogo mais simétrico com os familiares presentes. A necessidade de "traduzir" termos técnicos numa linguagem acessível e de "explicar" conceitos tão incorporados à prática que já não suscitam questões de onde ou como surgiram, resultou num exercício de reflexão sobre o que significa conhecer algo, como se constrói um conhecimento e também o que se faz com o que se conhece. Destas reflexões surgiu uma postura nova diante do processo do projeto em desenvolvimento: a importância de enfatizar o reconhecimento dos recursos e dos conhecimentos existentes entre os familiares participantes, através da expressão das experiências de convivência com as questões abordadas e do compartilhamento de soluções para as dificuldades encontradas em cada questão ou problema trazido para as discussões. Um aprendizado também importante proporcionado pelo projeto foi o de que as famílias precisam de um espaço não configurado como clínico (como a consulta ou um grupo terapêutico) para elaborar suas experiências, fazer perguntas, trocar e ampliar conhecimentos.

Conclusão

As conclusões abaixo foram elaboradas em conjunto ao final dos Seminários, como uma forma de avaliar o projeto e pensar em propostas futuras:

  • Conhecer sobre a doença ajuda no relacionamento com o doente, ajuda a entender a manifestação dos sintomas e a reconhecer situações de perigo e risco.
  • Existem muitas situações difíceis: lidar com crises, com o momento de surto, as questões da sexualidade, a decisão de internar o doente. É preciso aumentar a oferta de informações e criar alternativas institucionais para lidar com estas questões.
  • É preciso conhecer melhor o sistema público de assistência psiquiátrica. Quais são às alternativas e os critérios para analisar uma boa instituição? O que existe nos outros países? Que alternativas à internação? Quais são os direitos do paciente?

Propostas:

Constituição de uma comissão composta por 12 familiares e três profissionais, para dar seguimento às propostas surgidas durante os encontros.

  • Como envolver mais familiares – avaliar a não adesão: motivos, dificuldades, alternativas.
  • Os familiares podem ser colaboradores no tratamento: formar uma cooperativa de famílias, aproveitar sua disponibilidade e experiência.
  • Formar redes de apoio na comunidade. Formar uma Associação de familiares e portadores de doenças mentais.

Concluindo, gostaríamos de ressaltar que para o desenvolvimento de abordagens de tratamento e reabilitação mais eficazes, profissionais, pacientes e familiares precisam estar juntos, construindo em parceria soluções que incluam recursos da comunidade, formando assim uma rede social que apoie e amplie as possibilidades daqueles que, em virtude de sua deficiências ou dificuldades, se vêem dela excluídos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. ANDERSON, C..M., REISS, D.J. & HOGARTY, G.E. (1986) Schizophrenia and the Family. New York, The Guilford Press.
  2.  DESJARLAIS, R., EISENBERG, L., GOOD, B. & KLEINMAN, A (1995). World Mental Health: problems and priorities in low-income countries. New York, Oxford Univerity Press.
  3.  LEFLEY, H.P. & WASOW, M., Eds. (1994). Helping Families Cope with Mental Illness. USA, Harwood Academic Publishers
  4.  MARSH, D.T. (1992). Families and Mental Illness: new directions in professional practice. New York, Praeger.
  5.  VILLARES, C.C. (1996) Representações de Doença por Familiares de Pacientes com Diagnóstico de Esquizofrenia. Tese (mestrado). UNIFESP – EPM.

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