Volume 2 - 1997
Editor: Giovanni Torello


Maio de 1997 - Vol.2 - Nº 5

Notas Ocasionais no National Institute of Health
Internação Involuntária: Alguns Aspectos do Modelo Americano

Dr. Paulo Jácomo Negro Jr.
Visiting Associate - Clinical Neuroendocrinology Branch - National Institutes of Mental Health

O poder médico de internar um paciente psiquiátrico contra a vontade é claramente limitado por lei nos Estados Unidos. A tradição legal norte-americana reveste direitos individuais de grande importância e requer considerável evidência para os limitar. Ao contrário do Brasil, um psiquiatra precisa submeter a um tribunal evidências das justificativas legais que embasam a necessidade de quebrar tais direitos. O processo é chamado de commitment e inclui o seguinte documento quando da avaliação do paciente (baseado no modelo Texano):

Nome e endereço do médico: 

 


Nome e endereço do paciente:

 


Data, local da avaliação psiquiátrica:

 


Breve diagnóstico do paciente:

 


Descrição do tratamento psiquiátrico administrado:

 


As seguinte asserções:

Sou de opinião de que o paciente é doente mental e que como resultado de tal transtorno o paciente preeenche pelo menos um dos critérios adicionais (marque todos os critérios que se aplicam ao paciente):

A. ( ) É provável que ele cause sérios danos a si mesmo;

a base factual detalhada é a seguinte:

 


B. ( ) É provável que ele cause sérios danos a outrem;

a base factual detalhada é a seguinte:

 


C. ( ) O paciente irá, se não tratado, continuar a sentir sofrimento mental, emocional, ou físico severo e deterioração de sua capacidade de funcionar independentemente e é incapaz de fazer uma decisão racional ou dar um consentimento após informação a respeito de se submeter ou não a tratamento;

a base factual detalhada é a seguinte:

 


É de minha opinião que o paciente apresenta um risco substancial de ferir a si ou a outrem, se não imediatamente restrito, o que é demonstrado pelo: ( ) comportamento da pessoa ou ( ) por evidência de sofrimento emocional severo e deterioração de sua condição mental a ponto que o indivíduo não possa permanecer em liberdade;

a base factual detalhada é a seguinte:

 


Eu ( ) informei o paciente de que a comunicação entre ele e eu (e/ou meus associados clínicos) pode ser utilizada para fins de commiment, em exceção às regras de confidencialidade de informação médica.

 


Assinatura do Médico (Autenticada)

Após preenchido o documento, este é enviado por fax para um juiz especializado em saúde mental que avalia se a solicitação de restringir o paciente é procedente. Caso a resposta seja afirmativa, o tribunal irá mandar uma autorização por fax e solicitar a remoção do paciente para a instituição que irá prover o tratamento em enfermaria. Policiais são deslocados para transportar o doente caso a instituição não seja a mesma que o pronto socorro de avaliação inicial. Enquanto isto, o paciente pode permanecer detido no pronto socorro através de um outro documento chamado de emergency detention (enquanto espera a decisão do tribunal) ou através do próprio commitment, depois de sua aprovação pelo poder judiciário (enquanto espera transporte).

É fácil perceber que a execução em tempo hábil do processo judicial depende da disponibilidade de recursos no hospital e poder judiciário, tanto para obtenção de aparelhos (como máquinas de fax), como na organização de uma equipe judiciária que responda rapidamente e seja especializada no assunto. Após a internação, o paciente terá oportunidade de falar diretamente com o juiz em uma audiência na qual pode ter representação legal e a (necessária) presença do médico de enfermaria ou do pronto socorro. Na frente do juiz, o paciente pode confrontar a equipe médica e discutir os possíveis motivos da internação. A decisão final cabe ao juiz, que pode determinar a liberação do paciente se os motivos para sua internação não forem preponderantes.

Os termos do commitment não autorizam a prescrição de medicamentos contra a vontade do doente, com exceção de situações emergência (como risco de violência física). Um processo diferente (e mais difícil) é necessário para poder forçar o indivíduo a ser medicado em situações não emergenciais.

As evidências exigidas pelo sistema judiciário para internação involuntária variam um pouco de estado para estado e mesmo de condado para condado dentro de um mesmo estado. De maneira geral, é necessário documentar claramente o risco de agressividade, como por exemplo:

  • o paciente afirma que deseja se matar com um tiro no peito;
  • o paciente afirma que quer se jogar da ponte (e é melhor dar o nome da ponte em questão);
  • o paciente tentou matar a esposa, mas foi contido pela polícia.

O critério "C" envolve documentação de que haverá deterioração da saúde do indivíduo caso a internação não prossiga. A tendência judicial é interpretar esta deterioração como deterioração física, que deve ser descrita claramente, como no caso de um paciente que recusa comer ou que não é capaz de utilizar seus medicamentos (ex. insulina) devido ao transtorno mental.

O procedimento de praxe no caso de pacientes com risco de homicídio que dizem o nome específico da possível vítima é telefonar para ela e informar a respeito das intenções do paciente. Um caso famoso, conhecido como Tarasoff, envolveu a morte de uma pessoa e o processo do clínico que não telefonou para ela avisando das intenções do paciente. O caso Tarasoff ocorreu na California e não são todos os estados que tem casos semelhantes como jurisprudência, mas tomar as medidas necessárias para assegurar a segurança da pessoa ameaçada (que em geral inclui avisá-la do risco) é o padrão de atendimento no país (e considerado razão suficiente para quebrar a confidencialidade do doente). A suspeita de risco de suicídio ou homicídio também pode ser considerado razão suficiente para quebrar a confidencialidade e telefonar para família, amigos e colegas de forma a se certificar da acurácia das informações sobre o paciente.

Problemas surgem em situações limítrofes, como em paciente hipomaníacos que podem não preencher critérios para commitment, a despeito da baixa crítica. Documentos específicos para o commitment de usuários de drogas e álcool existem, ainda que a internação compulsória destes doentes (pelo menos, na minha opinião) seja questionável na ausência de distúrbios cognitivos. Na prática, tende a ser mais difícil conseguir local para internação involuntária de pacientes com diagnóstico primário de abuso de substâncias.

Os termos do commitment, a despeito de limitar o poder médico, são muitas vezes bem vindos em situações legais espinhosas para o clínico. É notória a dificuldade de se prever comportamentos heteroagressivos ou suicídio; basta uma breve avaliação dos livros-texto para verificar que os critérios de risco de suicídio são eminentemente populacionais, de utilidade relativa para pacientes individuais. O commitment traça os critérios para internação voluntária claramente: na ausência de risco imediato, o paciente não é commitable, o que é muito mais fácil de avaliar clinicamente que riscos de longo prazo.

Mas o que vocês acham? A lei americana é diferente da brasileira, que provê poderes mais amplos ao médico. Quando comecei a trabalhar aqui, achava que o processo prejudicava pacientes como hipomaníacos (que voltavam mais tarde ao mesmo pronto socorro em condições bem piores e terminavam commited de qualquer forma). Agora penso diferente: acho que é mais importante evitar o potencial de abuso de poder, ainda que isto torne o manejo clínico mais difícil em condições limítrofes. Ainda que a maioria dos clínicos vise o bem estar de seus doentes, sempre é possível o uso impróprio do poder médico por uma minoria. Será que o paternalismo médico não termina por infantilizar o doente e prejudicar a relação médico-paciente? Por outro lado, como utilizar o mesmo modelo no Brasil, onde a justiça é lenta e os hospitais desaparelhados? Teoricamente, o poder de decidir quando limitar os direitos do indivíduo deve estar nas mãos da sociedade (através dos tribunais) e não dos médicos (ainda que estes devam ser ouvidos devido a sua posição de especialistas), mas será que na prática brasileira isto não causaria mais burocracia, ineficiência e, no final, mais sofrimento?

Qual a sua opinião?

 


No próximo mês: APA em San Diego!


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