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Outubro/Novembro de 1996 - Vol.1 - Nº 4
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello


Outubro/Novembro de 1996 - Vol.1 - Nº 4

Abordagem Terapêutica da Glossodínia Psicogênica: uma revisão

Maria das Graças de Oliveira* & John Dunn**
*Residente do 3º ano de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria da
UNIFESP/EPM
** Psiquiatra pós-graduando do Departamento de Psiquiatra da
UNIFESP/EPM e coordenador da Unidade de Pesquisa de Álcool e Drogas(UNIAD) da UNIFESP/EPM

Resumo

A Glossodínia ou dor na língua, é considerada um sintoma psicogênico, na ausência de lesões orgânicas que justifiquem o quadro. A depressão é o principal diagnóstico psiquiátrico associado. Como esses pacientes costumam oferecer dificuldades à formulação diagnóstica, a Escala do Centro para Estudos Epidemiológicos sobre Depressão (CES-D) pode ser útil como instrumento coadjuvante. Os trabalhos sugerem que os melhores resultados têm sido obtidos com tratamento anti-depressivo. 

Abstract

Glossodynia, or painful tongue, is considered a psychogenic disturbance when no organic lesions are found. The most commontly associated psychiatric diagnosis is depression. Sometimes depression is difficult to diagnose, especially as these patients usually present to ENT surgeons. A self-report questionnaire (Center for Epidemiologic Studies-Depression Scale [CES-D] ) is a useful screening instrument. A series of case reports suggest that the best results are obtained with antidepressant treatment.

INTRODUÇÃO

O termo glossodínia ou parestesia bucal psicogênica ou ainda estomatodínia refere-se a sensações anormais diversas, mas principalmente de caráter doloroso, na língua ou outras regiões da mucosa oral, que não podem ser justificadas por afecção orgânica sistêmica ou local. Portanto, não se trata de uma doença "sui generis", mas de um sintoma.

A expressão glossodínia (do grego, glossa=língua e odune= dor, sofrimento) tem sido a mais empregada na literatura. Foi utilizada pela primeira vez por Kaposi em 1885, embora outras designações também tenham sido usadas: "rhumatismus linguae", "glossalgia", "nevralgia lingual" e "ulceração imaginária da língua" (KUFFER 1987).

Considerando-se a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, este distúrbio entraria no capitulo dos transtornos somatoformes codificados sob F45.

Apesar de ser uma condição familiar aos clínicos gerais, dentistas e médicos especialistas, existem relativamente poucas publicações considerando o sintoma. (OTT & OTT,1992)

O objetivo deste artigo é fazer uma revisão na literatura sobre o tratamento medicamentoso da glossodínia psicogênica.

EPIDEMIOLOGIA

Kuffer (1987) aponta uma incidência quatro vezes maior nas mulheres que nos homens. A idade de início, segundo suas observações, situa-se entre a quarta e a sexta décadas de vida. Não foi verificado nenhum caso na infância ou adolescência.Usualmente, esses pacientes costumam aparecer, inicialmente, nos consultórios de odontologia, clínica médica, dermatologia ou otorrinolaringologia.

APRESENTAÇÃO CLÍNICA

Trata-se, de ordinário, de uma paciente, entre a quarta e a sexta décadas de vida, com um longo histórico de consultas com vários especialistas. Suas queixas poderão apresentar-se de variadas formas. Desde uma queimação na ponta da língua até uma sintomatologia rica, com descrição de diferentes tipos de sensações referentes à dor, à quantidade de saliva e ao paladar. Pode ocorrer também de expressar-se sob a forma de algum tipo de diagnóstico, isto é, "micose", "infecção", "alergia", etc. Os sintomas poderão ter começado há vários meses ou até mesmo anos e não é infreqüente o relato de que tenham iniciado após algum tipo de intervenção odontológica. Não raro, existe uma preocupação, que pode ou não ser referida, de que por traz de seus sintomas haja uma doença grave, um câncer que os médicos não conseguem diagnosticar ou informar à paciente.

Quanto aos aspectos relacionados ao exame psíquico, os trabalhos mostram que a possibilidade de apresentações possíveis pode ser muito variada. Esses pacientes podem oferecer dificuldades ao médico não especialista ou dentista para a percepção de algum problema na esfera psíquica, afirmando que não sentem nenhum tipo de dificuldade emocional.Pode igualmente ocorrer a referência das queixas sob um estado emocional de tensão e ansiedade, principalmente em pacientes com sentimentos de culpa relacionados a práticas sexuais, ou ainda apresentarem-se os sintomas em um paciente evidentemente deprimido ( SULLIVAN, 1989).

A seguir transcrevemos a história clínica de uma das pacientes acompanhadas pelo Setor de Estomatologia e pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina.

RELATO DE CASO

Identificação: AAOS, sexo feminino, 56 anos, casada, faxineira.

Queixa e Duração: "Queimação na boca há um ano".

História: A paciente refere que há aproximadamente um ano começou a sentir "queimação" na região perioral e na ponta da língua. Associadamente passou a apresentar aumento no fluxo de saliva que tornou-se "amarga", "salgada" e "áspera". Quando deglute, tem a sensação de que tem um "caroço" na parte interna do lábio. Sente uma piora dos sintomas quando fica "nervosa". Já consultou vários médicos que lhe informaram que "não é nada". Fez exames de sangue, mas os resultados apresentaram-se dentro da normalidade. Neste período, usou vários tipos de medicação, tais como: polaramine e daktarin gel, sem, no entanto, obter qualquer alívio. Tem receio de que seja câncer e salienta que não terá sossego até que os médicos cheguem a uma conclusão diagnóstica.

Antecedentes Pessoais: Já fez acompanhamento reumatológico por dores nas pernas.

Antecedentes Familiares: Nega sintomas semelhantes em familiares.

Estado mental : Apresentação adequada; orientada no tempo e espaço; atenção espontânea e voluntária normais; memória de fixação e evocação preservadas; inteligência normal; contato fácil; humor ansioso; afeto sintônico; pensamento agregado, de curso normal, sem alterações de conteúdo; presença de alucinações táteis; psicomotricidade normal; crítica parcial.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

A título de ilustração, antes de abordar mais especificamente a modalidade psicogênica, vale citar algumas causas orgânicas da glossodínia. Estas podem ser divididas em locais e sistêmicas.

Locais:

  • Irritações traumáticas crônicas
  • Processos alérgicos
  • Síndromes disfuncionais dolorosas

Sistêmicas:

  • Diabetes
  • Deficiência de vitamina A 1
  • Anemia
  • Sialopenia
  • Doenças neurológicas(neuralgias,inclusive)

OTT& OTT (1992) estabelecem esquematicamente correlações úteis a serem consideradas na hora do diagnóstico. Diante da queixa de dor associada à mastigação, deve-se suspeitar de causa local. Se o paciente, por outro lado, referir que a dor inicia-se algum tempo após a alimentação, deve-se ter em conta a possibilidade de origem miogênica ou neurológica. E finalmente, se o sintoma diminuir durante a alimentação é provável que se trate de quadro psicogênico.

A investigação de um paciente que apresenta dor de causa desconhecida deve incluir exames clínicos e laboratoriais apropriados. É importante ter em mente que as doenças físicas podem manifestar-se com dor, antes que outros sintomas ou sinais estejam presentes.

A abordagem diagnóstica dessa condição deve ser feita com cuidado. Se, por um lado, tem o objetivo de afastar uma possível etiologia orgânica, por outro, não deverá servir para fomentar a falsa crença em uma doença "rara" e "incurável".

OTT & OTT (1992), através de investigações psicométricas em 131 pacientes, encontraram que 61% apresentavam sintomas psiquiátricos relevantes. A maioria compatíveis com diagnostico de depressão, sendo que 28,69% com depressão reativa; 9,20%, depressão endógena; 13,30%, depressão neurótica; 7,30% uma síndrome orgânica cerebral e 4,10% com outros diagnósticos psiquiátricos.

Essas proporções encontram-se em consonância com os resultados apresentados por outros autores, para os quais a maior parte dos pacientes com glossodínia é considerada portadora de depressão neurótica ou reativa ou, até mesmo, depressão endógena.

As preocupações desses pacientes com seus sintomas freqüentemente encobrem a depressão subjacente. Parecem impossibilitados de reconhecerem os efeitos de seus próprios estados de ânimo e estão seriamente interessados em encontrar uma causa física para seus problemas. Tais pacientes negam comumente um humor depressivo, ainda que este pareça evidente ao médico. Essa situação tem sido denominada "depressão mascarada" (SULLIVAN, 1989).

Para ajudar a confirmar a hipótese diagnóstica de depressão, além de história clínica e exame psíquico adequados, pode ser útil uma escala de auto-aplicação (BOYD,1982; ROBERTS & VERNON,1983). A Escala do Centro para Estudos Epidemiológicos sobre Depressão (CES-D) constitui-se de 20 perguntas relevantes remetidas `a semana anterior. O uso dessa escala, em pacientes com sintomas físicos, sem uma base orgânica, pode ajudar na elucidação diagnóstica de uma depressão oculta.

Segundo KUFFER (1987), 15% a 20% dos pacientes apresentam o sintoma como uma expressão da descompensação ou ruptura de um estado psicopatológico organizado de longa data. Não é que não possa haver, nesse grupo, uma sintomatologia depressiva, mas uma investigação analítica mostraria a existência de uma estrutura mental neurótica, com uma incapacidade de adaptação a situações conflitantes e de assumir um estado emocional mais afetivo. No mesmo estudo, o autor aponta que 3% a 5% dos pacientes apresentam o sintoma como parte integrante de um quadro psicótico.

TRATAMENTO

Os pacientes com transtornos somatoformes podem, na verdade, apresentar-se de modo bastante diversificado quanto aos aspectos psicopatológicos. Sob esta denominação incluem-se sintomas variados que podem corresponder, na sua origem, a quadros psiquiátricos distintos. Através de uma história clínica e exame psíquico adequados é possível, na maioria das vezes, chegar-se a uma hipótese diagnóstica provável para o transtorno subjacente. A dor está associada a vários distúrbios psiquiátricos, incluindo depressão, ansiedade e síndromes conversivas. A medicação anti-depressiva pode ser efetiva, mesmo em pacientes que não apresentam sintomas de depressão (GELDER et al,1996).

Existem duas síndromes dolorosas específicas que merecem menção. A cefaléia e a dor facial atípica. Muitos pacientes acompanhados em clínicas neurológicas apresentam cefaléias para as quais nenhuma causa física é encontrada. A mais comum é a chamada cefaléia tensional. Uma parcela desses pacientes descreve claramente sintomas de depressão e de ansiedade relativos a eventos de vida estressantes. Alguns pacientes com cefaléia persistente, mesmo na ausência de sintomas psiquiátricos, respondem a alguma forma de tratamento psiquiátrico, tais como anti-depressivos, psicoterapia ou métodos cognitivo-comportamentais (GELDER et al,1996).

Os pacientes com dor facial atípica procuram, na maioria das vezes, o auxílio de neurologistas e mostram-se relutantes `a hora em que são encaminhados aos psiquiatras. No entanto, vários estudos têm sugerido que os anti-depressivos podem aliviar os sintomas, mesmo na ausência de sintomas depressivos (GELDER et al,1996).

A glossodínia é um sintoma preponderantemente de natureza psicogênica, que pode estar relacionada a transtornos diversos (OTT& OTT,1992). Se tratar-se de depressão, a medicação de escolha será o anti-depressivo. A opção deverá recair sobre aquele fármaco que melhor adaptar-se ao quadro depressivo em questão, levando-se em conta outros sintomas da síndrome, tais como ansiedade ou inibição psicomotora, bem como os efeitos colaterais da droga e o estado clínico de cada paciente.

Se sintomas psicóticos estiverem presentes, os neurolépticos estão indicados, isoladamente ou em associação com os anti-depressivos. Quanto `aqueles pacientes cujos padecimentos radicam em uma estrutura mental neurótica, faz-se necessária uma sensibilização que permita ao paciente perceber a necessidade de submeter-se a um acompanhamento psicoterápico.

A administração de ansiolíticos pode ser útil em qualquer um desses grupos, isoladamente ou em associação com outros fármacos, desde que devidamente justificados e com a devida cautela, já que trata-se de medicação que induz tolerância e dependência.

CONCLUSÃO

Naturalmente, esses pacientes não iniciam suas "vias sacras" pelos consultórios médicos, procurando um psiquiatra. De fato, este profissional é o último a ser consultado, via de regra, a contragosto do doente, que é sempre encaminhado por um colega de outra especialidade. Portanto, é fundamental que os médicos generalistas, otorrinolaringologistas, dermatologistas e dentistas levem em conta que esta condição pode ser de origem psicogênica.

Uma vez afastada a existência de qualquer causa somática, o profissional deverá introduzir algumas perguntas relativas ao estado de ânimo do paciente, explicando-lhe que seus sintomas podem ser a manifestação de problemas psicológicos ou emocionais, que talvez ele próprio ainda não tenha percebido.

Aproximando-se dessa questão, o médico consultante verá aumentadas suas chances de estabelecer uma relação terapêutica mais adequada, que possibilite ao paciente responder sobre a existência de sintomas fundamentais, que constituem o humor depressivo (tristeza, desesperança, pessimismo, desinteresse desvalorização de si mesmo, sentimentos de culpa) e inibição (fadiga, lentificação motora, perda da libido, lentificação psíquica, distúrbios de concentração e de memória). Importante também averiguar sobre a presença de transtornos do sono e do apetite.

Igualmente relevante são os dados referentes a acontecimentos relacionados ou que representam situações de perdas anteriores ao início dos sintomas. Não raro, por trás do medo de que suas queixas sejam a manifestação de um câncer, existe a perda de alguém que sofrera desse mal. Não é infreqüente que esse assunto só apareça quando questionado pelo médico. A CES-D poderá servir como um recurso diagnóstico coadjuvante.

Diante da hipótese diagnóstica de depressão, o profissional poderá optar por iniciar o tratamento com anti-depressivos ou encaminhar o paciente para acompanhamento psiquiátrico. Já nas outras condições, estrutura mental neurótica ou quadro psicótico, o encaminhamento para acompanhamento específico se impõe mais prontamente.

De qualquer maneira, ao que parece, a elucidação diagnóstica da glossodínia psicogênica, com a conseqüente introdução da terapêutica adequada, representa o primeiro passo. Idealmente, espera-se que com a obtenção de alívio para seus sintomas, o paciente possa apresentar-se mais acessível e menos resistente a uma exploração psicológica, que possibilite uma compreensão mais abrangente e uma maior capacidade de lidar com as situações de estresse.

A boca e a língua são consideravelmente importantes nos primeiros estágios de desenvolvimento. Na criança, a boca, além da pele, é o sítio primário de contato social, e a língua é o mediador das relações objetais infantis. Na idade adulta, essa região tem papel central no consumo de alimentos, álcool, café, chá e tabaco, e também na esfera sexual (OTT & OTT,1992). Não é, portanto, para causar estranheza que esta área venha a ser local de manifestações sintomáticas de origem psicogênica 

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos especiais à Professora Maria Paula Trigo de Sousa Lencastre, pela ajuda com a bibliografia e à Dra Margarida Ferreira dos Santos, pela valiosa ajuda na utilização do microcomputador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. BOYD, J.H.; WEISSMAN, M.M.; THOMPSON, W.D.; MYERS J.K. (1982) Screening for depression in a community sample. Archives of General Psychiatry., 39: 1195-1200.
  2. GELDER ,M.; GATH,D.; MAYEN,R.; COWEN,P. (1996) A review of syndromes. In: Oxford Textbook of Psychiatry. 3ªed. Oxford University Press.pp 369-371.
  3. KUFFER, R. (1987) Les paresthesies buccales psychogenes. Ann Dermatol Venereol; 114: 1589-1596.
  4. OTT, G. & OTT, C.(1992)Glossodynia-psychodynamic basis and results of psychopathometric investigations. Journal of Psychosomatic Research.,36:7: 677-686.
  5. ROBERTS,R.E. & VERNON,S.W.(1983) The center for epidemiologic studies depression scale: its use in a community sample. American Journal of Psychiatry.,140: 1: 41-46.
  6. SULLIVAN,P. D. (1989) The diagnosis and treatment of psychogenic glossodynia. Ear Nose Troat J.,68: 795-798.

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