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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Julho de 2017 - Vol.22 - Nº 7

Psicanálise em debate

TRUMP – PSIQUIATRAS E PSICANALISTAS PODEM DAR OPINIÕES SOBRE SUAS ATITUDES?

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

As condutas cada vez mais extravagantes e bizarras de Trump são amplamente comentadas por todos mas, nos Estados Unidos, justamente aqueles que mais teriam a dizer a respeito e de quem mais a sociedade esperaria algum esclarecimento, como psiquiatras e psicanalistas, se sentem impedidos de fazê-lo em função do código ético profissional que rege suas atividades, no qual está inserido a Goldwater Rule.

A Goldwater Rule foi estabelecida após um incidente ocorrido na campanha eleitoral norte-americana de 1964, quando Lyndon Johnson e o senador Barry Goldwater concorriam à presidência. Naquela ocasião, a hoje extinta revista “Fact Magazine” publicou uma pesquisa na qual 12.356 psiquiatras foram indagados se Goldwater estava capacitado, do ponto de vista psíquico, para exercer a presidência. Das 2.417 respostas recebidas, 1.189 disseram que não. Goldwater processou a revista por difamação e ganhou a causa, firmando jurisprudência no sentido de que nenhum profissional pode dar diagnósticos sem ter examinado pessoalmente o diagnosticado. A associação psiquiátrica norte-americana (American Psychiatric Association - APA) incorporou a Goldwater Rule em seu código ético em 1972 e a tem seguido à risca, daí ausência dos psiquiatras no debate público sobre a permanência de Trump no poder. Ainda assim, no começo desse ano, 41 mil trabalhadores de saúde mental assinaram um documento manifestando a preocupação com o futuro do país, desde que regido por uma pessoa que tem demonstrado sinais de instabilidade emocional.

Reacendendo a polêmica, esta semana (final de julho de 2017) a American Psychoanalytic Association enviou um e-mail para seus 3.500  associados, lembrando que seu código ético não é o mesmo da associação psiquiátrica, ou seja, dele não consta a Goldwater Rule, desta forma seus membros estão liberados para emitir opiniões sobre as condutas de Trump. Diz Prudence Gourguechon, psicanalista e psiquiatra, membro das duas associações: “Não aconselhamos nossos membros a desafiar a Lei Goldwater. (…)  Penso que nós, psicanalistas, temos um conhecimento imenso e único sobre o comportamento humano. Basicamente acreditamos na liberdade de expressão de nossos membros e não queremos proibi-los de exercê-la, falando em público. Vemos o estado mental de Trump sendo discutido (por todos) e não pensamos que seja necessário ou correto sonegar nossa competência (no assunto) ”.

Sob vários aspectos, é interessante a colocação da associação psicanalítica norte-americana. Em primeiro lugar, por ser um rompimento do automático alinhamento com a política psiquiátrica mantido até então. Apesar de muito próximas, psiquiatria e psicanálise não se confundem e seguem parâmetros diversos. Em segundo, indica uma mudança da instituição no sentido de incentivar os psicanalistas a deixarem o isolamento da torre de marfim dos consultórios e participarem dos debates públicos, reconhecendo que a psicanálise tem muito a dizer e que não fazê-lo, como tem ocorrido por tanto tempo, é uma omissão injustificável.

O equilíbrio psíquico de Trump é apenas um item numa grande lista de questões e problemas públicos que interessam a sociedade em geral, e não apenas a norte-americana, sobre as quais a psicanálise pode e deve ajudar a pensar e encontrar as saídas possíveis.

No caso especifico de Trump é natural que, sendo ele presidente dos Estados Unidos, suas ações tenham repercussões e provoquem reações, mas vivemos num momento em que foram rompidas as barreiras entre público e privado. Celebridades, políticos, atletas e artistas, todos eles expõem continuamente suas intimidades nos meios de comunicação, comportamento imitado pelas pessoas comuns, que fazem o mesmo nas mídias sociais, como Facebook, Instagram, etc. Não é infrequente que sejam divulgadas condutas e comportamentos aberrantes que abalam o público, suscitando curiosidade, espanto, perplexidade.

A opinião de psiquiatras ou psicanalistas sobre personalidades ou situações cujas afirmações, comportamento ou atitudes abalam o público levanta algumas questões e é importante deixar claro alguns pontos.

O psiquiatra ou o analista tem o compromisso ético de manter o sigilo profissional daquilo que o paciente lhe relata. Apenas em situações muito especificas e nunca para o grande público, cercados de cuidados para proteger o paciente, tais dados podem ser comunicados em determinadas situações legais ou na escrita de trabalhos científicos. Vê-se então que a situação de todos aqueles que voluntariamente se expõem não se enquadra no compromisso ético do psiquiatra e do psicanalista. Não são esses profissionais que estão sendo indiscretos. São os próprios interessados que abandonam a privacidade e contam suas confidencias para o público. 

Se celebridades, personalidades públicas e pessoas comuns agem assim e o que afirmam ou fazem choca ou causa espanto à sociedade, porque psiquiatras ou psicanalistas não poderiam opinar sobre isso?  Como tais pessoas são modelos identificatórios para a massa, não seria uma imposição ética para esses profissionais mostrar motivos e razões de atos que parecem incompreensíveis para a maioria? Não estariam exercendo com isso uma função informativa e educacional para a população?

Como vimos, ao ler e interpretar informações que estão à disposição de todos, expostos pelos próprios interessados, o psiquiatra ou psicanalista não está quebrando qualquer contrato ético de privacidade ou confidencialidade, pois o que seria do âmbito do mundo privado passa a ser um fato social, analisável por quem se habilitar. Suas opiniões serão sempre hipóteses sujeitas a erros e correções, o que não diminui sua importância e utilidade.

Tais opiniões não visariam estigmatizar através de “diagnósticos” negativos as pessoas ou situações em causa e sim analisar as conflitivas inconscientes subjacentes, das quais  todos nós partilhamos em grau mais atenuado. Aquilo que aparece cercado de escândalo, provocando pasmo e estranhamento, muitas vezes é algo que, em tom menor, todos nós vivemos em nosso íntimo. A interpretação analítica, ao invés de estigmatizar, humaniza, possibilitando a compreensão e a empatia.

É difícil avaliar o peso dessas opiniões. Se a opinião dos psiquiatras poderia ter influenciado na derrota de Goldwater, o abaixo-assinado recente contra Trump de nada adiantou. Mas é importante que psiquiatras e analistas se sintam livres para expressarem suas opiniões como cidadãos conscientes e participantes e que possam fazê-lo na posse de suas ferramentas profissionais.  É de se supor que a democracia tenha seus próprios mecanismos para se defender daqueles que fazem mal-uso do poder.

É imenso o conhecimento da psicanálise sobre as motivações inconscientes do comportamento humano e ele deve ser compartilhado com a sociedade sempre que possível. O risco maior que psicanalistas correm nessas circunstâncias é confundir potência com onipotência e se colocar como o dono da verdade, o que tudo sabe e tudo explica.

Nos links abaixo, alguns dos muitos textos disponíveis na internet sobre a polêmica em torno de Trump e seus “diagnósticos”

http://edition.cnn.com/2017/07/26/health/mental-health-association-debate-trump/index.html

http://www.mdedge.com/clinicalpsychiatrynews/article/143362/practice-management/no-you-still-cant-diagnose-trump

https://www.yahoo.com/news/clarifying-goldwater-rule-psychotherapists-age-trump-184518946.html


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