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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Fevereiro de 2017 - Vol.22 - Nº 2

Psicanálise em debate

O GOOGLE, O PSICOTERAPEUTA E O PACIENTE

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

O relacionamento entre psicanalista e analisando segue um protocolo estabelecido por Freud e mantido com poucas alterações desde então. O analista deve se manter como um espelho ou uma tabula rasa para o paciente, deve mostrar-se o mais neutro possível, expor ao mínimo suas opiniões, crenças e gostos, o que facilita ao analisando expor suas próprias convicções e dificuldades sem se sentir julgado ou criticado pelo analista que poderia abrigar crenças opostas. Mais importante ainda, ao não impor ao paciente valores e convicções, o analista possibilita a projeção por parte do analisando de figuras de seu próprio mundo interno, um dos elementos centrais da transferência.

Embora essas orientações continuem vigentes, elas têm sido bastante discutidas desde então e o próprio Freud não as seguia ao pé da letra, como mostram os relatos de seus analisandos. Freud não hesitou em assumir posições públicas ao participar de assuntos de grande interesse e relevância em seu tempo, como a guerra, a religião, além de fazer um sistemático trabalho de divulgação da psicanálise, ligando-a com cultura e arte. Desde então muitos são os analistas que, seguindo o exemplo do mestre, participam do debate público, publicam livros e artigos em revistas de circulação de massa, expondo-se com maior ou menor intensidade.

Essa conhecida questão sobre a exposição pública do psicanalista e do efeito disso em sua relação com os pacientes recebeu combustível novo com o advento da internet e das mídias sociais, que possibilitaram grandes mudanças na circulação da informação e nos relacionamentos pessoais. A internet é uma imensa tribuna onde todos podem expressar suas opiniões. Poderia o psicanalista usar desses novos recursos ou isso iria expô-lo excessivamente e, desta forma, danificar a relação terapêutica?  

Penso que o analista, como tal e enquanto cidadão, não deveria se impedir de fazer uso das redes sociais, continuando por essas vias a participar dos debates das questões de interesse público e divulgando a psicanálise, tal como já fazia anteriormente nas mídias convencionais. Mas, também como fazia ali, deveria evitar publicar informações de cunho pessoal e familiar por saber do impacto maior que isso pode causar em seus pacientes.

As demais correntes psicoterapêuticas adotam uma postura diferente da psicanalítica no que diz respeito à exposição da pessoa do terapeuta. Nos Estados Unidos, por exemplo, é frequente os terapeutas anunciarem seus serviços especificando seu estado civil, sua inclinação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, LGBTQ, etc), ter sofrido tal ou qual trauma, ter passado por um luto recente, visando com isso provocar a identificação de pacientes portadores das mesmas vicissitudes. (Lori Gottlieb,  What brand is your therapist?, New York Times, 22/11/2012 -  http://www.nytimes.com/2012/11/25/magazine/psychotherapys-image-problem-pushes-some-therapists-to-become-brands.html ).

Recentemente o jornal londrino The Guardian publicou um artigo sobre o uso do Google por parte de pacientes em busca de informação sobre seus psicoterapeutas e vice-versa – terapeutas que pesquisam nos buscadores da internet informações disponíveis na rede sobre seus pacientes. Que um jornal como o The Guardian se ocupe com tal assunto bem dá medida da relevância e do interesse do público sobre a questão. (https://www.theguardian.com/society/2017/feb/04/search-me-should-you-google-your-therapist)

 

Embora nós psicanalistas tenhamos uma conduta mais reservada e procuramos preservar nossa intimidade frente ao analisando por acreditar que a conduta oposta poderia provocar interferências indesejáveis ao tratamento, o artigo do The Guardian nos interessa muito, pois não podemos ignorar a importância das novas mídias e sua presença maciça na vida de todos.  As situações ali mostradas não são estranhas às de nosso consultório. O uso do Google na relação paciente-terapeuta é algo estabelecido, não há como evitá-lo e de nada adiantaria tentar coibi-lo. O que nos resta é reconhecer o problema, tentar entendê-lo e aprender a lidar com ele.  

Nós analistas continuamos a pensar que o acesso do paciente a informações sobre a vida pessoal e as opiniões do analista interfere na cura, podendo reforçar tanto a transferência positiva (idealização, cumplicidade e fantasia de comunhão e proximidade em caso de coincidirem as opiniões do analista com as do paciente), como a negativa (as opiniões divergentes do analista podem ser vistas como julgamentos e críticas, não aceitação, rejeição, favorecendo o aumento da persecutoriedade por parte do analisando). Tudo isso já era conhecido, a novidade introduzida pela internet é a facilidade do acesso a informações, ainda mais que são oferecidas pelos próprios analistas, na medida em que as publicam em sites abertos ao público. 

Se são esses os efeitos sobre o analisando das informações sobre o analista obtidas via internet, o que ocorreria no outro polo da questão – o fato de o terapeuta pesquisar na internet  informações sobre o paciente?

Aqui novamente se impõe a diferença entre a técnica psicanalítica e a das demais linhas terapêuticas.

Em princípio, o psicanalista não deveria ter informações a respeito do paciente a não ser aquelas dadas pelo próprio no correr das sessões analíticas. Mas isso não ocorre exatamente assim nem mesmo nos casos mais leves, como os de neurose. É habitual que aquele que faz o encaminhamento do paciente, especialmente se for um colega, dê ao analista sumárias, mas decisivas informações sobre o mesmo, de modo que ao receber o paciente o analista tem uma ideia geral do que vai encontrar. Essa ideia inicial será confirmada ou corrigida nos contatos que o analista terá com o paciente, quando formará sua própria avaliação do mesmo. Nos casos mais graves, antes e/ou no correr da própria analise, o analista pode necessitar de informações objetivas que o ajudem na compreensão do paciente e na forma de lidar com diferentes situações, como o uso da medicação, risco de suicídio e homicídio, encaminhamento para internações, ocasiões em que recorre a colegas que cuidam da parte medicamentosa do tratamento e aos familiares responsáveis pelo paciente.  Algo semelhante ocorre na análise de crianças e adolescentes, quando quase sempre é necessário o contato com a família.

Vê-se que o analista tem acesso a informações sobre o paciente além daquelas que o próprio paciente lhe forneceu. Assim, o uso de informações disponíveis na internet não deveria ser entendido sob este ângulo, como um recurso a mais a ser utilizado pelo analista?   

É claro que o analista deverá ter presente, sempre, sua contratransferência, tanto nos períodos fáceis como nos tumultuados da análise. Ele deve consultá-la especialmente nos momentos em que sente necessidade de recorrer à ajuda externa no andamento da análise. Na verdade, esse será sempre um fator central, essencial, no andamento do tratamento. Se o analista for capaz, como se espera, de discriminar suas fantasias e desejos inconscientes dos do paciente, terá condições de administrar bem o andamento da cura, com ou sem recursos externos. Assim, o analista deve perguntar-se se seu desejo de consultar o Google sobre determinado paciente se deve a uma curiosidade legitima, pela efetiva necessidade de esclarecer algo importante naquele momento ou se decorre de fatores ligados à sua contratransferência a serem melhor examinados por ele mesmo.

No artigo do The Guardian, uma terapeuta diz ter procurado dados sobre um paciente que afirmava ocupar uma alta posição numa importante instituição. Dado os traços de megalomania e ideias de grandeza, a terapeuta não sabia se tais informes correspondiam à realidade ou se eram uma formação delirante. Ao consultar o Google, confirmou a veracidade do que lhe dizia o paciente. Embora a terapeuta não prossiga em suas declarações, nós leitores podemos pensar que tal informação ter-lhe-ia sido útil não só para delimitar e entender melhor a patologia do paciente, como também para jogar luz sobre sua contratransferência. Afinal, a terapeuta não acreditava nas informações do paciente por causa da megalomania e ideias de grandeza dele ou por causa de sua (dela) inveja?

Tanto o paciente como o terapeuta, ao terem acesso a informações um sobre o outro via internet, deveriam falar sobre isso nas sessões, o que enriqueceria o material a ser trabalhado.

Um aspecto de importância decisiva na questão é que as informações encontradas na internet foram divulgadas por livre e espontânea vontade pelos interessados, ou seja, terapeutas e pacientes. Isso tem decisiva implicação ética, pois, nessa condição, qualquer um pode acessá-las de forma legitima, sem estar com isso cometendo invasão de privacidade, quebra de sigilo, ou indiscrição indevida. Esse tipo de acesso a informações é o oposto daquele conseguido através da contratação de detetives particulares, pois então as informações sigilosas derivariam de uma condenável invasão de privacidade, eticamente insustentável.  

Essas são algumas ideias iniciais que me ocorreram após a leitura do artigo do The Guardian. As questões ali levantadas são novas e complexas, e necessitam de mais estudo para que se possa estabelecer parâmetros adequados.

Já tinha escrito esse texto quando resolvi pesquisar na rede e encontrei muitos artigos sobre o assunto em revistas leigas e médicas. O que me pareceu mais completo foi publicado em 2015 pelo British Journal of Psychiatry. (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4706208/).

 

 

1)      Fatos alternativos, noticias falsas, ceticismo

Sérgio Telles

 

A questão da pós-verdade ressaltada pelo governo Trump, especialmente com seus “fatos alternativos” (“alternative facts”)  e as “notícias falsas” (“fake news”) deliberadamente jogadas na rede, a meu ver não são uma efetiva novidade nem são tão perniciosas como se teme. 

Desde sempre o controle da informação foi exercido pelo poder, isso fica especialmente patente nos regimes totalitários do século passado, o stalinismo e o nazismo (a propósito do stalinismo sugiro o excelente livro “O Ruído do Tempo” de Julian Barnes sobre o musico Shostakovitch e a pressão do estado sobre sua produção). O que sempre se pensou é que nas democracias esse controle fosse muito menor ou inexistente, mas se constata que interesses múltiplos também influem de forma variada na grande imprensa dos países democráticos ocidentais, fazendo com que a circulação de ideias e informações sofra inúmeros desvios.

Com a internet e as redes sociais, os monopólios da informação foram esfacelados e por inúmeros canais as notícias circulam com variado grau de distorção. Se isso provoca um grande desconforto inicial, força as pessoas a ficarem mais céticas e críticas, o que é muito bom, pois deixem de acreditar ingênua e passivamente em qualquer informação dada por quem quer que seja, especialmente os que supostamente detêm o saber. Faz com que elas fiquem atentas para o fato de que as notícias podem sempre ter vieses em função dos interesses daqueles que as divulgam. 

Dessa forma, penso que isso faz o público abandonar uma ingenuidade e passividade infantil e passe a exercer seu tirocínio critico, filtrando as notícias, exigindo responsabilidade e credibilidade das fontes e dos divulgadores.

Quero crer que o excesso de informação (ou de desinformação) não provoque o embotamento e desinteresse do público em relação as notícias.  O que ocorre no Brasil agora, quando muita gente diz que não tolera mais ler jornais ou ver noticiários, deve-se ao efeito traumático que a ininterrupta exposição de escândalos políticos causa no cidadão, minando sua confiança no futuro do pais, gerando insegurança e medo. As pessoas se defendem negando a realidade, uma reação típica frente a uma realidade ameaçadora. Mas não é bom que se aja assim. Por pior que seja a realidade, é melhor encará-la do que fugir dela. 

É verdade que a percepção da mentira sistemática nas práticas políticas, dos roubos e falcatruas realizadas pelos homens públicos, provoca uma grande decepção. Mas devemos lembrar, em primeiro lugar, que a mentira faz parte de nossa realidade humana. As pessoas mentem, todos mentimos; mas negamos isso em relação a nós mesmos e especialmente em relação a figuras idealizadas que inconscientemente colocamos em lugares paternos, a quem atribuímos uma onipotência e de quem esperamos cuidados, amor e proteção. É um choque perceber que tais figuras nos podem enganar. A desilusão daí decorrente, a desidealização dos lideres políticos fornece uma visão mais realista e menos infantil da realidade em que se vive.

Penso que esse é um conhecimento que a psicanalise pode acrescentar aos estudos sobre o funcionamento da democracia e sua crise permanente. É necessário que se leve em conta a dimensão inconsciente humana, que faz com que os políticos, os donos do poder, os que sabem, ocupem sempre o papel paterno idealizado, fazendo com que se lhes atribua poderes ilimitados. A crença nas notícias e na autoridade de quem as veicula decorre do mesmo fenômeno, a meu ver.

Ficar cético e critico é tomar a responsabilidade adulta para si, o deixar de confiar cegamente naqueles em quem depositamos nossos anseios de dependência e proteção.


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