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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Julho de 2017 - Vol.22 - Nº 7

Artigo do mês

EPILEPSIA E DEPRESSÃO: O DUPLO ESTIGMA

Izabela Feitosa Martins
Profª: Dra. Márcia Gonçalves


RESUMO

Introdução: Epilepsia é o mais frequente transtorno neurológico, atingindo pelo menos 50 milhões de pessoas, sendo apenas 10 milhões em países desenvolvidos. Embora seja uma doença predominantemente tratável, a maioria dos pacientes permanecem sem tratamento, provavelmente devido ao estigma que atinge essas pessoas. Esse fato se agrava ainda mais quando à a associação com a depressão. Os pacientes com essas duas doenças sofrem do que se chama de “duplo estigma”, que frequentemente atrapalha no diagnóstico e tratamento.
Objetivo: alertar quanto à dificuldade de diagnóstico e tratamento da associação epilepsia/depressão.
Métodos: através de uma breve revisão bibliográfica.

Conclusão: Apesar das evidencias, existe ainda uma demora em iniciar o tratamento da depressão em pacientes com epilepsia, com prejuízo da qualidade de vida. É necessária uma parceria intensa entre neurologistas e psiquiatras para melhor abordagem desse “duplo estigma”.  

 

INTRODUÇÃO

 A epilepsia foi frequentemente considerada uma doença provocada por causas sobrenaturais, e como consequência, pessoas com epilepsia têm sido mantidas afastadas do resto da sociedade. No Reino Unido, leis proibindo o casamento de pessoas com epilepsia existiam até 1970. Nos Estados Unidos, exclusão de pessoas com epilepsia em locais públicos e leis eugênicas proibindo casamento de pessoas com epilepsia foram abolidas apenas em 1970. (Kale, 1997;Who, 1997). Este estigma imposto sobre portadores de epilepsia afetam sua vida social, emprego, perspectivas conjugais e autoestima, além de afetar suas famílias. Tais motivos fazem com que as pessoas com epilepsia comumente escondam seu problema. Por esse fato, essa doença persistiu como uma das mais negligenciadas condições médicas, o que explica, em partes, a lacuna de tratamento (Andermann, 995; In the shadow of epilepsy, 1997).

Epilepsia é o mais prevalente transtorno neurológico que tem como principal característica a manifestação de crises epilépticas recorrentes e espontâneas. Pessoas de todas as raças, sexos, condições socioeconômicas e regiões são acometidas (Scott et al, 2001). Ela pode provocar consequências sérias como morte súbita, ferimentos, transtornos mentais e problemas psicológicos (Marchetti e Damasceno, 2000).

                O diagnóstico de epilepsia é definido pela recorrência de pelo menos duas crises epilépticas espontâneas (não provocadas por febre, desequilíbrios tóxicos ou insultos agudos ao SNC).

                               A OMS incluiu a epilepsia no capítulo de transtornos mentais baseada nos seguintes argumentos: a epilepsia tem sido historicamente considerada como doença mental e ainda é em muitas sociedades. Como as que apresentam transtornos mentais, essas pessoas sofrem estigma e, quando deixadas sem tratamento, sofrem graves disfunções. O tratamento da epilepsia está, frequentemente, sob a responsabilidade de profissionais da saúde mental. Além dos supracitados pontos, deve-se lembrar que a epilepsia é um distúrbio do SNC e sua expressão clínica inclui sintomas cognitivos psiquiátricos em concomitância com crises epilépticas.

                O transtorno depressivo é um transtorno comum, com prevalência de 15% durante a vida, sendo caracterizado, principalmente, por humor deprimido ou perda do interesse e do prazer.
                Vários estudos mostram que a prevalência de transtornos depressivos em pacientes com epilepsia é significativa. Autores concordam que entre 15% e 60% dos indivíduos que sofrem de epilepsia são acometidos também por depressão, uma incidência cerca de 17 vezes maior que na população geral (Hajszan T,2006).  O transtorno depressivo tende a ser mais grave nos pacientes com epilepsia. A apresentação atípica dos sintomas depressivos, o temos por parte dos neurologistas em provocar piora na frequência ou gravidade das crises e a crença de que o transtorno depressivo seja uma “reação normal” expliquem porque esses pacientes passam meses sem tratamento específico adequado a seus sintomas de humor.

                EPILEPSIA E DEPRESSÃO

                A incidência de transtornos psiquiátricos, principalmente a depressão, nos pacientes com epilepsia é significativamente mais alta que na população geral. Em pacientes com epilepsia de difícil controle, a diminuição de qualidade de vida é mais fortemente associada a depressão que à frequência das crises.
                Fatores psicossociais são implicados como causa da depressão. Baixa aceitação e ajustamento à epilepsia, estigmatização e discriminação que ainda persistem nos dias de hoje, controle ruim das crises e as forçadas mudanças nos hábitos de vida têm sido mais constantemente relacionados com a depressão.
                Depressão e epilepsia podem compartilhar mecanismos patogenéticos que facilitam a ocorrência de um na presença do outro. É frequentemente possível encontrar concordância cronológica entra um episódio depressivo e a primeira crise epiléptica. (Kanner AM, 2002) Além disso, diminuição da função noradrenérgica, GABAérgica e serotoninérgica são identificados como fundamentais nos mecanismos patogenéticos da depressão. A diminuição desses fatores e consequentemente das suas ações, são apontadas como facilitadoras do processo de crises epilépticas, exacerbando a predisposição às crises (Kanner AM, 2004).
                Vários estudos estão sendo feitos na tentativa de relacionar tipos específicos de crises à chance aumentada de desenvolver transtornos depressivos. Os resultando têm-se mostrado muitas vezes contraditórios ou inconclusivos.
                A apresentação clínica da depressão tende a ser atípica em pacientes epilépticos.  O uso de escalas diagnósticas de depressão pode ser insuficiente para o diagnóstico, pois esses pacientes não preenchem completamente os critérios para depressão segundo o DSM-IV.

                FALHA DIAGNÓSTICA

                A associação epilepsia e depressão causa uma significativa piora da qualidade de vida, podendo interferir de forma mais direta do que a própria frequência das crises epilépticas (Viikinsalo et al., 2000; Gilliam, 2002).  Além de piorar a capacidade de adaptação profissional e contribuir de maneira importante nas intervenções hospitalares (Marchetti et al., 2003a) eleva o risco de suicídio (Marchetti et al.,2003a; Nilsson et al., 2000).
                Apesar de frequentes e com efeitos impactantes, os transtornos mentais em pacientes com epilepsia encontram-se subdiagnosticados (Kanner et al., 2000).
                A falha diagnóstica decorre de inúmeros fatores, dentre eles: dificuldade de reconhecimento dos sintomas não habituais, ou atípicos; tendência do médico e do próprio paciente de minimizar os sintomas tanto por atribuição de caráter reacional à epilepsia quanto ao medo de serem estigmatizados e preocupação de que os psicofármacos diminuam o limiar convulsivo (Kannet e Balabanov, 2002).
                Além do estigma associado à epilepsia, os pacientes portadores da associação com depressão sofrem do que se chama “duplo estigma”, decorrente do estigma já existente aos transtornos mentais. Um exemplo clássico é o conceito de epilepsia “condutopática”, diagnóstico que erroneamente se aplica em certos pacientes violentos que nem ao menos apresentam evidencias clinicas suficientes para o diagnóstico de epilepsia, ou mesmo a ideia do “crime epiléptico”, um ato violento que pelas suas características permitiria a realização do diagnóstico de epilepsia ( Marchetti et al., 1999).
                Em levantamento realizado há pouco tempo, entre 149 psiquiatras brasileiros, Marchetti et al. (2004), observou-se que 52% dos entrevistados consideravam que não haviam recebido aprendizado a respeito da associação epilepsia e transtornos mentais, 48% consideraram que os psiquiatras têm preconceito em relação a epilepsia e 79% consideravam que os seus conhecimentos eram insuficientes para o tratamento destes pacientes.

                TERAPÊUTICA

                Os fármacos utilizados para epilepsia podem ter efeito direto no humor. Da mesma forma, há suspeitas de que o uso de medicações antidepressivas pode exercer influência no limiar convulsivo. (Gross. A, 2000)
                Várias drogas antiepilépticas são utilizadas também no tratamento de transtornos de humor, e são frequentemente utilizados como adjuvantes no tratamento de depressão em pacientes sem diagnostico estabelecido de epilepsia. Além desses,  estabilizadores de humor, apresentam boa resposta em fase de depressão de pacientes com transtorno bipolar tipo I. Alguns estudos mostram que os estabilizadores melhora o humor, porém de forma independente do controle das crises.
                Por outro lado, várias drogas antiepilépticas estão associadas à piora do humor. Crianças que usam alguns anticonvulsivantes apresentam prevalência de depressão estão associados a piora do humor, com aparecimento de depressão e psicose. A introdução gradual parece ser capaz de prevenir piora do humor.
                Pesquisas quanto ao uso de antidepressivos em pacientes com epilepsia são limitadas devido ao temos de crises induzidas por antidepressivos. De forma geral, o uso de antidepressivos, quando utilizados na dosagem recomendada, tem pouca chance de produzir ou exacerbar crises.
                Interações farmacocinéticas entre antidepressivos e anticonvulsivantes devem ser consideradas. O metabolismo dos antidepressivos pode ser significativamente acelerado pela administração concomitante de drogas indutoras enzimáticas.     

                CONCLUSÃO

                Apesar da associação epilepsia-depressão já ser bastante documentada, observa-se na pratica clinica uma demora injustificável em tratar o transtorno de humor nos indivíduos portadores de epilepsia. A importância do tratamento concomitante da depressão nesses pacientes fica evidente quanto ao efeito negativo na qualidade de vida dos pacientes, mais significativa que qualquer outra variável clinica isolada.  Mesmo sendo difícil estabelecer com clareza a ligação patogenética entre depressão e ansiedade, é importante reconhecer que causas neurológicas em comum estão possivelmente relacionadas com o aparecimento de sintomas depressivos.
                É necessário que neurologistas e psiquiatras estejam preparados para conduzir satisfatoriamente estes casos. Para isso, a disseminação de conhecimento sobre epilepsia e transtornos mentais associados a ela é importante instrumento na luta contra o duplo estigma e a falha diagnóstica e lacuna de tratamento.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

Andermann, LF – Epilepsy in Developing countries. Transcutural Pshychiatria Research review 32:251-384, 1995.

Gilliam, F – Optimizig Health Outcomes in Active Epilepsy. Neurology 58: S9-S20, 2002.

Gross. A.; Devinsky. O; Westbrook L.E; Wharton A.H; Alper. K- Psychotropic medication use in patients with epilepsy. J Neuropsychiatry Clin Neurosci 12:458-64, 2000.

Hajszan, T; MacLusky, NJ – Neurologic links between epilepsy and depression in women is hippocampal neuroplasticity the key. Neurology. 66:S12-S22, 2006.

Hirsch L.J; Weintraub D; Du Y; Buchsbaum R; Spencer H.T; Hager M; Straka T; Bazil C.W; Adams D.J; Resor S.R; Morrell M.J – Correlating lamotrigine serum concentrations with tolerability in patients with epilepsy. Neurology,2004.

Kale R. – Bringing Epilepsy out of the shadows (editorial). Br Med J315:2-3, 1997.

Kanner A.M; Balabanov A – Depression and epilepsy. How closely related are they? Neurology. 58:S27-S39, 2002.

Kanner A.M; Soto. A; Gross-Kanner.H – Prevalence and clinical characteristics of postictal psychiatric symptoms in partial epilepsy. Neurology, 62:708-13, 2004.

Marchetti, R.L; Damasceno, B.P. – Epilepsia: Psicopatologia e comportamento. In: Guerreiro, C.A.M.; Guerreiro, M.M.; Centes, F. et al. Epilepsia. Editora Lemos, São Paulo. pp. 231-42, 2000

Marchetti, R.L; Marques, A.F.H.; Kurcgant, D et al. – Clinical Aspects of Epileptic Psychosis in Brazil. Epilepsy Behav. 4:133-41, 2003a.

Marchetti, R.L; Marques, A.F.H.; Kurcgant, D et al. – Transtornos de personalidade associados à epilepsia, 1999.

Scott, R.A; Lhatoo, S.D; Sander, J.W – The Treatmente of Epilepsy in Developing Countries: Where do we go from here? Bull world health organ 71:247-48, 1993.

Viikinsalo, M., et al – Depression and medication toxicity, but not seizure frequency or severety, Predict Health Outcomes in Refractory Epilepsy. Epilepsia. 41:S175, 2000.

·         *Aluna do  internato – UNITAU

·         *Professora de psiquiatria da UNITAU – [email protected]


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