Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Maio de 2016 - Vol.21 - Nº 5 Psiquiatria na Infância e Adolescência A RELEVÂNCIA DE CASOS CLÍNICOS NA PSIQUIATRIA DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA CONTRIBUIÇÃO POSSÍVEL DA FENOMENOLOGIA-ESTRUTURAL
Daniela Ceron-Litvoc (1) Panorama histórico da
Psiquiatria da Infância e Adolescência: A psiquiatria da Infância e
Adolescência (PIA) praticamente não existia como uma disciplina até a metade do
século XX. As primeiras cadeiras dessa disciplina apareceram nos anos 50 nos
EUA e na Europa, marcando o início de um processo de mudança de paradigma sobre
a compreensão do desenvolvimento infantil. O desenvolvimento era concebido, até então, como um processo
praticamente autossuficiente, necessitando de pouco amparo além da subsistência
básica (nutrição, por exemplo) para o seu desenrolar saudável. Esse conceito
foi substituído pela concepção de que o desenvolvimento, para atingir sua
potencialidade ao longo do processo de maturação, necessita de um olhar cuidadoso
em cada etapa para o reconhecimento dos pontos de vulnerabilidade, assim como
do delineamento de intervenções terapêuticas se necessárias e, quando possível,
preventivas ou precoces Bowlby foi o primeiro autor
que deflagrou essa mudança de olhar ao apresentar na ONU, em 1951, uma revisão
sobre os efeitos da privação materna no desenvolvimento infantil A partir do aumento do
interesse no processo de desenvolvimento infantil, ocorreu também uma
modificação no reconhecimento das patologias psíquicas que afligem essa faixa
etária. Até a década de 1950 deu-se pouca atenção para os diagnósticos
psicopatológicos e os poucos existentes usavam
definições vagas e amplas como, por exemplo, "problemas
comportamentais na infância". As propostas terapêuticas seguiam a pouca especificidade
do diagnóstico, constituindo-se em propostas não orientadas para a
psicopatologia, sem foco definido, sem planejamento e de longa duração Esse foi o panorama
histórico que gerou a demanda pela procura por diagnósticos psiquiátricos
padronizados com algum grau de evidência na infância e adolescência, culminando
na criação e a ampla utilização dos critérios diagnósticos operacionais Desde então, os critérios
padronizados foram aceitos de forma homogênea pela comunidade de saúde mental e
trouxeram inegáveis avanços para a identificação das psicopatologias na
infância e adolescência Porém, os critérios
utilizados para definição e
reconhecimento dos quadros psicopatológicos nas crianças e adolescentes padecem
de uma complicação importante e eventualmente esquecida quando não observada em
uma perspectiva histórica: foram criados, em sua grande maioria, a partir das
concepções das patologias nos adultos. Apresentam, portanto, dificuldades intrínsecas em
reconhecer as diferenças das apresentações psicológicas e psicopatológicas em
cada momento do desenvolvimento, levando a erros no diagnóstico e tratamentos
ineficazes e inespecíficos Outro ponto relevante
dentro da perspectiva histórica é a forma atual de reconhecimento dos quadros
psicopatológicos. A psiquiatria foi historicamente construída a partir de
observações clínicas, descrições minuciosas de casos. Nos adultos, as
descrições psicopatológicas foram e são pontos- chaves para o reconhecimento de
quadros como esquizofrenia, mania,
melancolia, transtorno bipolar, trema, entre outros Quando idealizado, o
diagnóstico realizado por critérios clínicos, como o DSM, não tinha a intenção
de promover descrições compreensivas dos quadros, mas sim tentar criar um
limiar de reconhecimento para a patologia Porém, operacionalmente, a avaliação
psicopatológica foi substituída pela realização de averiguação de listas de sintomas,
diminuindo o encontro do terapeuta com o paciente, como indivíduos. Criou-se
uma situação clínica em que o principal papel do psiquiatra é identificar e
propor estratégias para a supressão dos sintomas A
simplificação do “objeto” estudado na psiquiatria e a metodologia usada
(entrevistas estruturadas) promovem o risco de não captar a essência das
patologias. A consequência desse fenômeno tem aparecido nas análises que
observam que apesar dos inúmeros esforços e investimentos dos últimos 30 anos
na Psiquiatria como um todo, os avanços no conhecimento da etiologia, do tratamento
e seus limites, não avançaram na mesma proporção do investimento Descrição de casos
clínicos: prática obsoleta? Descobertas clínicas a
partir da observação minuciosa de casos clínicos tiveram e têm papel
fundamental na psiquiatria e na psicopatologia e permanecem válidas ao lado de
outras práticas também de extrema relevância como as pesquisas epidemiológicas,
ensaios clínicos e outras modalidades consagradas No estudo da psicopatologia
da infância e adolescência, existe uma escassez de observações minuciosas tanto
do processo de desenvolvimento normal quanto da psicopatologia e sua
apresentação em cada grupo etário. Investir nessa área é um caminho para o
aprimoramento da capacidade de reconhecimento dos quadros patológicos Fenomenologia-Estrutural Como
pontua Andreasen Entre outras áreas do
conhecimento, uma opção é a Fenomenologia-Estrutural ( Casos clínicos: Para exemplificar o ponto que levantamos no texto acima,
apresentaremos, sucintamente, dois casos clínicos de crianças de 8 anos
encaminhadas para avaliação psiquiátrica por queixa de dificuldade para manter
a atenção focada, com prejuízos em todos os ambientes, principalmente no
escolar. Uma análise mais detalhada poderá ser encontrada em outro artigo Caso Clínico 1: O
Distraído-Dissolvido Criança de 8 anos, encaminhada para avaliação por queixa
de desatenção com prejuízos acadêmicos relevantes. Dócil no contato, sorridente, procura facilmente
engajar-se aos estímulos da consulta já no primeiro contato. Não coloca
restrições a nenhuma atividade proposta, mas tende a manter-se engajado por
pouco tempo. Com facilidade, seu olhar "vaga" pelo ambiente como que
à procura de algo. Conta que tem muita
dificuldade na escola, principalmente com português e história. Diz que se
esforça, mas não consegue prestar atenção. Gostaria de prestar mais atenção na
escola, mas não consegue. Fica de “castigo” constantemente por ter notas abaixo
do esperado. Estuda para as provas, mas não entende por que não consegue ir
bem. Não sabe o que está sendo dado em sala de aula, não consegue contar o que
está aprendendo. Pais contam que sempre foi
muito dócil, bem humorado, sorridente. Sempre foi muito distraído, envolvia-se
em acidentes facilmente por não prestar atenção no ambiente. Perdia com
frequência objetos, mesmo brinquedos ou jogos eletrônicos de que gostava muito. Na consulta, a criança se
distrai facilmente. Olha a esmo para os estímulos do consultório e ilumina-se
com a ideia de como seria interessante experimentar um novo jogo, porém esse
estímulo e interesse não perduram, de forma que é quase impossível terminar uma
atividade sem muito esforço e estímulo da parte do entrevistador. Não sabe dizer no que pensa
em seus devaneios. Responde, docilmente, que não sabe ao certo, geralmente faz
algum comentário vinculado a um estímulo imediato, como, por exemplo, ter visto
o avião passar e ter se distraído. Seus pensamentos parecem vagar, sem controle
ou foco, de acordo com os estímulos ambientais ou emocionais. Essa criança mostra-se
aberta ao ambiente, disposta a engajar-se facilmente, aceitando propostas de
atividades, porém tem curto tempo de duração em cada atividade. Em uma análise
Fenomenológica-Estrutural, a espacialidade pode ser dividida entre espaço
interno, íntimo, onde se desenlaçam as experiências não compartilháveis,
denominado de espaço escuro e o espaço
claro, externo, das relações, da publicidade, do encontro com os outros, onde o
indivíduo interage recebendo e doando A criança descrita acima
relata uma vivência de predomínio do espaço claro, social, em detrimento do
espaço escuro, íntimo. Ela é invadida a todo momento por esse espaço claro que
se sobrepõe à sua atividade interna. Por exemplo, mesmo que se interesse por
algo ativamente, uma vivência externa interrompe o seu interesse e transporta-a
para uma nova realidade, com pouco lastro interno do interesse anterior.
Vivencia as experiências de forma aleatória, de acordo como determinado pelo
meio, sem conseguir construir uma história linear de acontecimentos. Essa
aleatoriedade promovida pela pouca retenção do espaço interno promove uma
vivência de acontecimentos e situações fragmentadas em sua consciência. Se observarmos a estrutura
pela sua constituição temporal, essa criança apresenta uma constituição com
predomínio dos eventos presentes em detrimento das do passado e do futuro. A temporalidade,
estruturalmente, divide-se harmonicamente em seus três tempos constituintes,
passado, presente e futuro. A cada segundo, a consciência atualiza as vivências
imediatas em uma base temporal que contém as experiências passadas e as
projeções para o futuro Caso clínico 2:
Distraído-Absorvido Criança de 8 anos,
encaminhada para avaliação por queixa de desatenção com prejuízos acadêmicos
relevantes. Também muito dócil no contato,
mas muito observadora e contida. Responde a todas as perguntas, mas de forma
sucinta, com certo incômodo. Aceita
engajar-se nas brincadeiras propostas na consulta, mas com certa ressalva. Facilmente distrai-se e
desliga-se da atividade proposta. Conta que gosta muito de
pensar, que sua cabeça cria muitas histórias e que é difícil prestar atenção na
aula. Tem muitas histórias "inventadas”, mas não apresenta intenção
espontânea de relatar o conteúdo. Essas histórias, depois de insistir em saber
sobre o que inventava, mostram-se ricas, cheias de personagens, ações bem
elaboradas, adequadas para seu perfil cognitivo e cronológico. Deixa claro que
tem consciência de que deveria prestar mais atenção nas aulas, mas conta que
era muito difícil controlar a sua imaginação. Pais procuraram atendimento
por dificuldade de desempenho escolar e por terem fracassado na tentativa de
estudar mais com a criança em casa. Relatam um histórico de uma criança
introspectiva, mas com boas habilidades de socialização. Observando a criança no
consultório, a impressão é de distanciamento no contato, o oposto da abertura e
facilidade do primeiro caso. Mesmo muito estimulada externamente e não
recusando o estímulo, parece ser “seduzida” por suas histórias internas e a
facilidade com que se transporta para uma realidade imaginária e mais rica que
a experiência externa imediata. Analisando , nessa criança,
a proporção entre seu espaço claro e escuro, encontramos uma estrutura oposta à
primeira. Em oposição à primeira, esse
caso apresenta um predomínio do espaço interno, íntimo, em relação ao externo,
claro, público. O espaço claro existe, tanto que ela é capaz de se abrir ao
contato, mas ele é facilmente apagado pela exuberância do seu mundo íntimo. Temporalmente, apesar de
que as vivências ocorrem predominantemente no espaço interno, pouco
compartilhável, não há fragmentação das atividades devido a alteração nas proporções temporais. As
histórias são coesas, não fragmentadas, com continuidade viva. A criança tem
dimensão inclusive do tempo que esteve ausente dos estímulos externos
(percepção ausente no caso anterior). Aplicações da construção de
caso segundo a metodologia da Fenomenologia-Estrutural Apesar dos dois casos poderem ser enquadrados, pelos
critérios diagnósticos, como pertencentes a um mesmo transtorno, no caso, o
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade Uma aplicação imediata para essa diferenciação clínica
seria a indicação do uso de metilfenidato. No primeiro caso, o
distraído-dissolvido, se a medicação permitir um aumento da capacidade de
manter-se intencionalmente focado em um estímulo, diminuindo a abertura para o
externo (atenção involuntária), provavelmente essa criança se beneficiaria da
medicação. No segundo caso, existe a possibilidade de que a mesma medicação
promova um excesso de estímulo, com aumento da atenção voluntária para os
estímulos externos sem diminuir a vivência intensa dos estímulos externos. Na
estrutura do distraído-absorvido, a medicação, pelo aumento de estímulos,
poderia causar a sensação de desconforto e ansiedade, levando, secundariamente,
à tendência a um afastamento ainda maior do externo. Conclusão: A psiquiatria como um todo
vive um momento de reflexão sobre seus instrumentos de reconhecimento
psicopatológico e sobre a prática clínica. Essa reflexão é ainda mais relevante
no segmento da Psiquiatria da Infância e Adolescência pela sua imaturidade
cronológica e campos de conhecimento pouco explorados. A descrição de casos
clínicos, método em desuso nas últimas décadas, pode ter seu papel novamente
reconhecido na seara do reconhecimento de características essenciais do
desenvolvimento psíquico e suas diferenças em cada grupo etário. A utilização
do método proposto pela Fenomenologia-Estrutural pode, exatamente, proporcionar
que, ao descrever um caso clínico, reconheçamos as modificações estruturais que
são gerais para todos na mesma idade. Bibliography
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