Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Novembro de 2016 - Vol.21 - Nº 11 Artigo do mês
O VIRTUAL COMO “ACESSO” PARA A SUBJETIVIDADE
Bibiana Cadó INTRODUÇÃO Os meios virtuais têm sido
utilizados por muitos como meio de expressar pensamentos e sentimentos. Dentro
do virtual há o conceito de ciberespaço, trata-se de uma dimensão da sociedade
em rede, que marca o surgimento de um novo tipo de sociedade na qual, segundo Bergmann (2007), os indivíduos podem romper com as regras
sociais e alterar seus valores e crenças. O potencial do ciberespaço, portanto,
estaria na capacidade de instaurar uma comunicação ágil, livre e social, de
modo que seus usuários possam colocar seus problemas de forma coletiva,
incentivando tomadas de decisão de ordem política, cultural e social. Na ótica
de Bergmann (2007), o ciberespaço não veio para
destruir as práticas sociais do mundo físico, mas para se apresentar como um
novo horizonte de expressão da sociedade. Por esta via, muitos sentimentos, que
até então ficavam em silêncio, ou na intimidade, tornam-se públicos e passam a
ser divulgados para vários fins, entre eles, quem sabe, possam ser uma
ferramenta para o acesso à subjetividade. As formas de subjetivação criam
espaço necessário para que o indivíduo possa fazer parte da cultura em que vive
e tenha uma existência viável - sem ter que desfazer-se totalmente de sua
singularidade. Para alcançar esta integração, cabe ao sujeito criar um
"estilo de existência" que contemple a sua especificidade e o
contexto cultural (Birman, 1997). Em nosso trabalho,
temos como foco especificamente o uso do virtual para esse fim, uma vez que no
grupo de pacientes que atendemos no Serviço de Transplante Pulmonar da Santa
Casa, observamos um importante uso do mesmo. Ao visitarmos seus blogs e em suas
páginas em redes sociais, percebemos que os pacientes escrevem sobre as suas
angústias, sobre o luto por estarem doentes, sobre a forma como vivem diante
das suas limitações, assim como se engajam em campanhas de doação de órgãos.
Duas pacientes em especial parecem ter destaque no grupo quanto ao uso do
virtual como ferramenta para a subjetivação e o nosso trabalho foi inspirado e baseado nelas: Kátia e Noeli. NOELI Noeli, uma mulher de 39 anos, mãe de Miguel
(3 anos), esposa de Devanil, dona de um coração
amoroso, vínculos afetivos fortes e de pulmões muito doentes. Em 2014 passou a
ter sintomas físicos severos: “De
repente, não conseguia fazer mínimos esforços, como trocar de roupa, escovar os
dentes, caminhar pela casa, tudo me cansava, parecia que eu estava morrendo aos
poucos. Era a fibrose pulmonar que eu adquiri, depois de fazer uma
quimioterapia aos 10 anos de idade, dando seus sinais de evolução. O que me
preocupava é que eu não conseguia mais cuidar do meu filho de 3 anos. Dar banho
no Miguel, fazer sua comida, buscá-lo na escola, se tornaram atividades
dramáticas. Dizer ao meu
pneumologista que eu não conseguia mais trabalhar foi difícil, pois sempre amei
meu trabalho como servidora pública, mas ter a humildade de reconhecer minha
impotência, foi crucial no processo.” Em 2015 precisou se mudar para Londrina onde
poderia ser cuidada pela sogra e pela cunhada: “Sempre valorizei a vida, aproveitando seus melhores momentos, em
família e com os amigos. Acredito que por isso, ao descobrir que sofria de uma
doença terminal, a primeira coisa que senti foi pena de mim mesma! Toda vez que
eu olhava para o meu marido e para o meu filho, a tristeza me consumia, me
deixando cada vez mais magra e fragilizada. Enquanto fazia os exames
pré-transplante em Londrina-PR, peguei uma pneumonia, que quase me tirou a
vida, afinal, eu estava muito debilitada. No Hospital, em oração, percebi que
estava fazendo tudo errado! Foi aí que decidi que, se eu teria que esperar por
um transplante, eu teria que lutar para me manter viva
até lá, não poderia morrer antes!!!” Os trechos acima estão
publicados em seu Blog “Diário de uma espera” onde passou a compartilhar
informações sobre o processo de transplante pulmonar, seus sentimentos e
pensamentos. Começou a escrevê-lo em junho de 2016 quando entrou em lista para
o transplante. Logo no primeiro dia, em que Noeli
participou do grupo de psicoterapia, mesmo estando visivelmente fragilizada fisicamente, o que marcou a sua presença foi o
sorriso largo e o olhar de uma alegria e vivacidade contagiante. KÁTIA Kátia é uma jovem de 22
anos, extrovertida, alegre, destaca-se pelo sorriso fácil e batom rosa nos
lábios, é natural de Santa Catarina. Entrou em lista para transplante pulmonar
há 3 meses por diagnóstico de Fibrose Cística. Na infância tinha muitos amigos,
praticava natação, era uma boa aluna. Chegou a cursar um semestre da faculdade
de Pedagogia, mas precisou interromper em função da piora clínica. Diz que em 2014, após
internação hospitalar, sentiu-se deprimida, que quase se “entregou”. Nesse
período recebeu o apoio da mãe, que sempre a incentivou muito, mas conta que a
internet também teve um papel muito importante para que ela ficasse bem. Há
cerca de dois anos faz parte de um grupo de WhatsApp,
onde todos os integrantes têm fibrose cística. Diz que o
grupo tem um papel muito importante no sentido de aliviar suas angústias e
compartilhar experiências – “A gente tem
o mesmo problema, a gente tá no mesmo barco, tanto com a fibrose cística quanto
com o transplante, porque lá tem o pessoal que já fez, e o pessoal que ta no
pré-transplante. Um ajuda o
outro.” (...) “Se eu tenho um problema, vou lá e converso, se algum de nós está
internado, naquele tédio, vai lá, conversa, ri. Isso faz muito bem pra gente.” Foi participando do grupo
que surgiu a ideia de criar uma página no Facebook
para incentivar a doação de órgãos. A página criada por Kátia chama-se “Dias de
Fibra”, fazendo referência à Fibrose Cística. Na página, além de mostrar um
pouco o dia a dia do seu tratamento, ela faz postagens incentivando a doação de
órgãos. Conta com orgulho que algumas pessoas já a procuraram através da página
para saber mais sobre como se tornar um doador. Além disso, diz que a página a
ajuda a se manter otimista em relação à doença, pois recebe muito incentivo das
pessoas para continuar lutando- “Bem no
começo, quando eu tava bem pra baixo, pensava nossa, tenho que entrar numa fila
de transplante! Ai eu comecei essa página, colocando as fotos, e as pessoas diziam,
vai lá Ka, vai dar tudo certo, tô
rezando por ti. Todo mundo colocando pra cima entende.” Apesar de ser esperançosa,
também revela ter os seus momentos de tristeza, e para esses momentos a
internet e as redes sociais parecem ter um papel fundamental para que alivie
suas angustias e receba o incentivo necessário para seguir em frente. DISCUSSÃO “No
dia que o médico disse que eu precisava de um transplante de pulmão… fiquei
confusa!!! Como assim? Cadê o pulmão que estava aqui?
Fibrose Pulmonar? Que doença é essa que me deixa tão cansada aos mínimos
esforços? E agora? Tantas perguntas sem respostas, mas uma coisa era certa, eu
queria minha vida de volta: andar, trocar de roupa, tomar banho, escovar os
dentes, dançar… viver!!! Foi assim, que a espera por um pulmão começou! Faltava
eu definir como ela seria!!!” (trecho
do Blog “Diário de uma espera” de Noeli Mendonça) O trecho acima é uma
publicação realizada pela Noeli que leva ao seguinte
questionamento: o que acontece com a mente quando é obrigada a encarar uma
doença incurável e com apenas uma chance de tratamento? Ao longo da vida, a mente
cria defesas como adaptações saudáveis e criativas que
continuam a funcionar de forma adaptativa. Quando é necessário proteger o self
contra uma ameaça como uma doença incurável, esses mecanismos são claramente
discerníveis como “defesas”. Essas atuam com a finalidade de evitar ou elaborar
algum sentimento poderoso e ameaçador, normalmente ansiedade, mas também luto
esmagador, vergonha, inveja e outras experiências emocionais caóticas, também
podem atuar como uma forma de manter a autoestima. (McWilliams,
2014) “Cada paciente que está na lista, assim
como eu, deixou para trás, sua casa, seu carro, seu trabalho, sua família, seus
amigos. Assim, durante a espera em uma cidade estranha, para não deixar a
tristeza prevalecer, começamos a aprender uma dura lição: o desapego. Começamos
a viver com menos, redescobrimos o real valor das coisas e das pessoas. E
depois de quase 3 meses aqui, posso dizer que isso é possível! Cada dia, vou tentando encaixar as peças desse quebra-cabeças que
Deus criou para cada um de nós. Cada peça encaixada é uma vitória, uma alegria!!! Não podemos deixar a doença ser motivo de tristeza
ou justificativa para não cumprir uma missão. Como bem disse Guimarães
Rosa: Deus
nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria… Depois, retoma coisas e
pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos… Essa… a alegria que
Ele quer. ” (trecho
do Blog “Diário de uma espera” de Noeli Mendonça) Frente ao luto, processo
reativo decorrente de uma perda, no caso a perda do órgão e da saúde plena,
parece haver dois caminhos possíveis para a mente percorrer: resolução do
processo ou melancolia. Na resolução do processo dar-se-ia a partir da
possibilidade de renunciar ao que foi perdido, deixando a libido livre para se
ligar a novos objetos ou ideais. De outro lado, Freud descreve a melancolia,
processo que ocorreria de maneira diferente, resultando em uma diminuição
intensa da autoestima e em um empobrecimento importante do ego. Enquanto no
luto o mundo se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego que se
esvazia. (Sordi e cols,
2011). Kátia e Noeli demonstram sob a ótica da
expressão de suas subjetividades no ciberespaço caminhar
em direção a resolução do processo (como demonstrado no trecho acima), ou seja,
a elaboração do luto. Suas mentes tiveram recursos para enfrentar os
sentimentos desesperadores da dor decorrente da ameaça da perda do órgão. Um
dos mecanismos de defesa utilizados por ambas parece ter sido a sublimação. No
blog intitulado por Noeli como “Diário de uma espera”,
observamos esse mecanismo através da sua capacidade criativa de transformar uma
situação adversa em uma narrativa pessoal, na qual ela compartilha seus medos,
sonhos e fragilidades. Da mesma forma Kátia criou uma página no Facebook intitulada “Dias de Fibra” onde compartilha sua
história de vida e rotinas do tratamento. Da religião à ciência,
nossas instituições sugerem (ou expressam ou impõem) que é preciso apressar-se.
Aqui, retira-se o tempo necessário para o trabalho árduo e inevitavelmente
prolongado de um luto, tão bem descrito por Freud. Já não há tempo para
conviver com a morte. Já não há espaço para conviver com a tristeza. É preciso
virar a página rapidamente. Ocorre que, na alma humana (ou na mente, conforme o
ponto de vista), há muito trabalho para se virar uma página. Toda uma história
precisa ser construída e revista e sentida novamente para ser elaborada com
sentimento e pensamento, a fim de que possa abrir o estofo ou o espaço para o
próximo capítulo. Este espaço indispensável depende de largo tempo. Este tempo
não é mais oficialmente defendido. (Gutfreind, 2014).
As pessoas em lista para
transplante pulmonar vivem um paradoxo em relação ao tempo: a doença incurável
tanto deixa claro a finitude do tempo de vida quanto
impossibilita a pessoa de aproveitar este tempo como sabia. Um tempo agora
muito valorizado passa a não poder ser vivido conforme os desejos da pessoa. O
tempo passa a ser complicado de gerir, pessoas que tinham uma rotina atribulada
de compromissos no trabalho e familiares passam a ter 24 horas de uma
“liberdade aprisionadora”. Suas únicas obrigações são relacionadas ao seu
tratamento, mas podem ficar fora de casa por no máximo duas horas devido ao
inseparável cilindro de oxigênio. A severa restrição
respiratória e frágil imunidade faz com que o cuidador seja quase sua
única companhia e sua casa o local mais seguro de se permanecer. Há muito tempo
para poder refletir e elaborar, a correria do mundo atual não invade essa
espera, a morte e a tristeza sim, invadem a vida dessas pessoas sem serem
convidadas. Como usar todo esse tempo de espera? Como lidar com a solidão,
pensamentos e sentimentos que se impõem? Nesta realidade tão difícil o virtual
parece essencial como recurso para enfrentá-la, enfrentar a dor e poder ser
sujeito de sua vida em meio a sociedade em que vive. Considerando que a
subjetividade dá-se no espaço entre o sujeito e a cultura em que ele está
inserido o uso de recursos virtuais como blog, redes sociais e aplicativo de
mensagens instantâneas possibilitam uma maneira das pessoas construírem a sua
subjetividade. Conseguem utilizar as influências da sociedade atual para
expressar a sua individualidade sem precisar sair de casa e se expor a riscos
para sua saúde. Assim o ciberespaço serve como meio de acesso para a sua
subjetivação, tornam-se sujeito em relação a cultura
ou civilização atuais.
(Weinmann,
2006 apud Verzoni e cols,2015) Na nossa experiência com
os pacientes em lista para transplante pulmonar o valor do virtual como acesso
para subjetivação do processo de luto parece claro. A questão é: como isso
ocorre? Segundo Irvin Yalom (2006), a
psicoterapia de grupo é uma forma bastante efetiva de psicoterapia, acredita
que a mudança terapêutica seja um processo enormemente complexo, que ocorre por
uma interação intrincada de experiências humanas, as quais
chama de “fatores terapêuticos”. Guardada as devidas diferenças, alguns
desses fatores terapêuticos estão presentes nas criações de nossas pacientes no
ciberespaço e nos grupos de WhatsApp utilizado por
elas. Assim, expandindo os conceitos do autor para além da psicoterapia de
grupo, as formas de comunicação social presentes no ciberespaço também exercem
ação terapêutica para os nossos pacientes por meio de 5 dos demais “fatores
terapêuticos” citados pelo autor: altruísmo, universalidade, instilação de
esperança, catarse e fatores existenciais. FATORES
TERAPÊUTICOS DO CIBERESPAÇO Altruísmo “Entrevistador: Tem ideia do porque ela começou
a escrever? Marido da Noeli:
A ideia de escrever partiu da dificuldade que encontramos a partir do momento
que ela recebeu indicação do transplante. Por falta de informação, gastamos
dinheiro que não precisava, montamos algumas logísticas erradas e deixamos de
receber alguns benefícios do município, estado e governo. Ela pensou que
poderia de alguma forma contribuir com os novatos passando algumas informações
básicas e ao mesmo tempo incentivar as pessoas em geral envolvidas nesse
processo, contando como estava sendo sua passagem nesse processo. Somos muito gratos ao Antônio, pois ele nos deu o caminho para
conseguir as coisas por ai.” (Trecho
da entrevista realizada via e-mail com Devanil,
marido da Noeli) Os pacientes portadores de
patologias graves, muitas vezes, se consideram um fardo, e a experiência de
descobrir que podem ser importantes para outras pessoas é
renovadora e aumenta sua autoestima. O ciberespaço é peculiar por ser
uma forma que oferece aos pacientes a oportunidade de beneficiar outras
pessoas, e também estimula a versatilidade de papéis, exigindo que os pacientes
se alternem nos papéis de receber e dar ajuda. As pessoas precisam sentir que
são necessárias e úteis. Existe outro benefício
mais sutil inerente ao ato altruísta. Muitos pacientes que se queixam de falta
de significado estão imersos em uma auto absorção
mórbida, que assume a forma de uma introspecção obsessiva ou de um esforço
resoluto para se cumprir. Por meio das postagens a favor da doação de órgãos,
as pacientes focam na vida e não na morte, além do que acreditam estar ajudando
outras pessoas o que tornava essa tarefa mais gratificante. O foco no
significado da vida e no altruísmo é componente particularmente importante em
grupo de pacientes com doenças graves e terminais. Em comum, as duas
pacientes demonstram utilizar o altruísmo como outro mecanismo de defesa
maduro, uma vez que ambas tentam ajudar outras pessoas através da divulgação de
informações sobre o transplante, assim como o engajamento através do virtual em
campanhas de doação de órgãos. Universalidade Muitos indivíduos começam
o tratamento de uma doença grave com pensamento perturbador de que são
singulares em sua desgraça, que apenas eles têm certos problemas, pensamentos,
impulsos e fantasias assustadoras e inaceitáveis. É claro que existe um núcleo
de verdade nessa noção, pois a maioria dos pacientes tem uma constelação
inusitada de estressores graves em suas vidas e periodicamente é inundada por
material apavorante que vazou de seu inconsciente. Por causa da doença, os
pacientes sofrem de um isolamento social extremo e têm um sentido elevado de
singularidade. Por meio do ciberespaço, eles têm possibilidade de experiências
e sentimentos análogos dos outros e se valem da oportunidade de confidenciar e
finalmente serem validados e aceitos por outras pessoas. Após ouvir outros
internautas revelarem preocupações semelhantes as suas, as pessoas relatam
sentir-se mais em contato com o mundo e descrevem o processo como uma
experiência “bem-vinda para a raça humana”. Colocado de forma simples, o
fenômeno encontra expressão no clichê “estamos todos no mesmo barco”. Os
membros de grupos homogêneos, como os nossos pacientes em lista para
transplante, podem falar uns dos outros com uma autenticidade poderosa que vem
de sua experiência em primeira mão, de maneira que a equipe médica talvez não
consiga fazer. A medida que os pacientes percebem as
suas semelhanças com os outros e compartilham suas mais profundas preocupações,
eles se beneficiam ainda mais da catarse de sua escrita. Instilação
de esperança A esperança é flexível,
ela se redefine para se encaixar em parâmetros imediatos, tornando-se esperança
de conforto, de dignidade, de conexão com outros membros ou de redução do
desconforto físico. Uma parte importante da instilação de esperança é o
testemunho de outros que estão passando por situação semelhante. Os internautas
recebem inspiração, levantando-se as expectativas pelo contato com aqueles que
já percorreram o mesmo caminho e encontraram o caminho de volta. Catarse A expressão dos
sentimentos positivos ou negativos através do ciberespaço
é importante uma vez que não se dá no vácuo mas há,
sim, a possibilidade de muitas pessoas visualizarem. O benefício da catarse
está no compartilhamento das emoções. A expressão aberta, no caso dessas
pacientes postagens públicas, do afeto parece ter sido fundamental para a
subjetivação do processo de luto. Fatores
Existenciais “Entrevistador: O que significava o blog
para Noeli? Marido
da Noeli: Não sei exatamente o significado, mas fazer
a postagem, faziam seus olhos brilharem. Ela ficava
muito eufórica. Acredito que ela se sentia útil, como se fosse um trabalho e
quando ela estava na frente do computador ela meio que esquecia que estava
presa a um cilindro de oxigênio. Acho que o significado era
ser proativa.” (Trecho da entrevista realizada via e-mail com Devanil, marido da Noeli) A Noeli
participou de poucas sessões da psicoterapia de grupo que realizamos todas as
quartas-feiras no Pavilhão Pereira Filho do Complexo da Santa Casa, mas se faz
presente até hoje. Em uma dessas sessões trouxe de forma muito enfática a ideia
de que a doença e suas limitações não isentavam as pessoas de fazer algo
significativo de suas vidas. O virtual parece ter sido um dos meios que
encontrou para dar sentido a sua existência. Parecia muito entusiasmada com a
campanha para doação de órgãos que estava fazendo por meio do seu Blog e tinha
como grande motivação para enfrentar a doença, cuidar de sua família, em especial.
Compartilhou com o grupo a sua trajetória de vida com uma fala cheia de emoção
e sentimento, não temos como transcrever aqui o quanto ela modificava o
ambiente em que estava, tornando-o mais leve e alegre.
Felizmente, também compartilhou a sua história com o mundo, por meio da escrita
no seu Blog. “(...)de repente, não conseguia fazer
mínimos esforços, como trocar de roupa, escovar os dentes, caminhar pela casa,
tudo me cansava, parecia que eu estava morrendo aos poucos. Era a fibrose
pulmonar(...)”
(trecho do Blog “Diário de uma espera” de Noeli
Mendonça) O que pode ser mais cruel
do que se perceber “morrendo aos poucos”?
A crueldade está justamente no fato de se perceber, pois, embora não estejamos
sentindo, todos estamos morrendo, a diferença é que algumas pessoas têm mais
tempo de vida e outras menos. A mortalidade é, talvez, o fator existencial mais
difícil de ser confrontado, além dele existem outros fatores existenciais da
vida humana difíceis de serem enfrentados: nossa liberdade e responsabilidade
por construir nosso próprio modelo de vida, nosso isolamento para não sermos
jogados sozinhos na existência e nossa busca por significado na vida. Os seres humanos podem se
relacionar com as questões fundamentais da existência de duas maneiras
possíveis. Por um lado, podemos suprimir ou ignorar a nossa situação na vida e
viver naquilo que Heidegger chamou de esquecimento
do ser. Nesse modo cotidiano, vivemos no mundo das coisas, em distrações
cotidianas. Preocupamo-nos apenas como a maneira como as coisas estão. Por
outro lado, podemos existir em um estado de atenção ao ser, em que pensamos não
na maneira como as coisas estão, mas no que elas são. Nesse estado temos, temos
a consciência do ser, vivemos de forma autêntica, aceitamos nossas
possibilidades e limites, estamos cientes de nossa responsabilidade por nossas
vidas. (Heidegger, 1962 apud Yalom, 2006) Estar com uma doença
incurável é uma das situações chamadas de experiências-limite,
experiências que podem ser transformadoras pois
transportam o indivíduo para um estado de atenção ao ser. Ter consciência da
própria autocriação no estado autêntico de atenção ao ser dá ao indivíduo a
força para mudar e a esperança que seus atos sejam frutíferos. “Sempre valorizei a vida, aproveitando
seus melhores momentos, em família e com os amigos. Acredito que por isso, ao
descobrir que sofria de uma doença terminal, a primeira coisa que senti foi
pena de mim mesma! Toda vez que eu olhava para o meu marido e para o meu filho,
a tristeza me consumia, me deixando cada vez mais magra e fragilizada. Enquanto
fazia os exames pré-transplante em Londrina-PR, peguei uma pneumonia, que quase
me tirou a vida, afinal, eu estava muito debilitada. No Hospital, em oração,
percebi que estava fazendo tudo errado! Foi aí que decidi que, se eu teria que
esperar por um transplante, eu teria que lutar para me manter viva até lá, não
poderia morrer antes!!! Lembrei
que na adolescência, li em “O Alquimista” de Paulo Coelho, uma frase que sempre
me motivou: “podia olhar o mundo como
uma pobre vítima de um ladrão, ou como um aventureiro
em busca de um tesouro”. Então, por que eu tinha mudado de comportamento? Por que eu
estava me comportando como uma vítima de um ladrão? Na
oração, Deus iluminou minha mente e mostrou que, durante a espera pelo pulmão,
eu teria que voltar a ser a aventureira em busca de um tesouro, como sempre
fui! A aventureira que sempre correu atrás de seus sonhos, que sempre lutou
pelo que acreditava, que enfrentou dificuldades,
superou tristezas e desfrutou alegrias!!! Deus me daria o maior poder para
conseguir isso: A FÉ. Então,
durante a espera, serei a aventureira em busca do maior tesouro que Deus nos
dá: A VIDA, E EM ABUNDÂNCIA!!!” (trecho do Blog “Diário de uma espera”
de Noeli Mendonça) Por toda curta mas intensa convivência e pelo que lemos em seu Blog, Noeli parece ter vivido de forma autêntica, enfrentando e
sentindo as questões de sua existência. Infelizmente ela não chegou a receber
esse tesouro que lhe daria mais tempo de vida. Segundo Yalom
(2006), as pessoas que mergulham mais profundamente em si mesmas, que enfrentam
seus destinos de maneira mais aberta e resoluta, podem ter um modo mais rico de
existência. Talvez isso consiga explicar a comoção que sua morte trouxe a todos
que a conheceram. Em uma manhã de domingo, dia 10 de julho de 2016 recebemos a
notícia da morte da Noeli. Os sentimentos
compartilhados foram de incredulidade e tristeza. Traz algum sentido as
palavras do autor por tudo que sentimos em tão pouco tempo de convivência.
Embora estivesse muito doente, ela exalava tanta vida que foi difícil aceitar a
sua perda. Na verdade, ainda é. Possivelmente este trabalho seja uma tentativa
de elaborarmos o nosso luto pelo seu falecimento. CONSIDERAÇÕES
FINAIS O que observamos nas pacientes ilustradas, portadoras de uma doença
grave, é a presença da capacidade associativa, uso de linguagem expressiva
através da palavra que traduz afetos vívidos, atuais e espontâneos. O uso do
blog ou da página no Facebook
portanto, permite o desenvolvimento de um processo sublimatório.
Aparece um prazer pelos intercâmbios verbais e não parece ser um discurso vazio
e sem afeto. O uso do ciberespaço ganha uma importância também no caso de
Kátia, que não aparenta ser uma pessoa solitária, mas uma adolescente/adulta
jovem que se entretêm com outros jovens que vivem conectados na internet. Isto
faz dela, dentro do possível, uma adolescente “normal” que tem “acesso” à sua
subjetividade como qualquer indivíduo. Uma das importantes aquisições do desenvolvimento psíquico é a
capacidade de subjetivação. Quando há falhas no processo de elaboração e
representação dos conflitos psíquicos pode resultar, por exemplo, em
somatização. Na ausência da palavra e do símbolo a manifestação da dor psíquica
se dará no corpo. Indivíduos que têm dificuldades em subjetivar e simbolizar
também podem fazer uso da internet dentro da ideia de
um pensamento operatório, que, segundo Pierre Marty
(1990), não representa a subjetividade do sujeito, uma vez que não tem valor
simbólico, porque não são expressões da vida afetiva, servindo apenas como
fonte de descarga psíquica. Não parece ser o caso das pacientes ilustradas, que
usando de defesas mais elaboradas para lidar com a doença, usam o ciberespaço
para criar condições favorecedoras e necessárias que ampliam seus repertórios psíquicos.
O refletir em forma de blog e página do Facebook
é uma maneira de pensar em sua limitação, sua doença, nos seus
conflitos, ao invés de descarregar no corpo. Podemos pensar também no ciberespaço como um auxiliar no processo de mentalização, como um “terapeuta amigo”, que propõem
assuntos, que coloca questões, que abre vias e caminhos para a subjetividade, e
assim os faz sentirem-se sujeitos de sua própria história. O ciberespaço é o
“outro” é o “terapeuta” que ouve, que ajuda a
construir o sujeito. Através dele, pensam, sentem, refletem, e não somente na palavra vazia e
destrutiva. O ciberespaço servindo para filtrar o excesso de angústia,
transformar a quantidade em algo de qualidade, um afeto consciente e conectado.
Afeto conectado consigo próprio “em acesso” à sua
subjetividade, onde indivíduo tomando consciência de si. Frente a um trauma tão intenso quanto este de descobrir-se portador de
uma doença crônica e terminal, os afetos tornam-se transbordantes, às vezes
indistinguíveis, dificultando o acesso à subjetividade. Neste sentido, o
ciberespaço serve para transformar essa quantidade de afetos em qualidade,
através da palavra que contém afeto, da troca com outros indivíduos conectados,
dos olhos do outro. Assim, o ciberespaço vem a serviço da reconstrução do
sujeito, que foi inundado por uma condição física que de certa forma limita sua
expressão como indivíduo. O ciberespaço como acesso à sua subjetividade, seu
mundo interno, sua consciência de si. REFERÊNCIAS Cyrulnik, B.; Cabral, S. Resiliência: Ações Pela Reinstauração de Um Futuro. In: A Resiliência em Questão: Perspectivas
Teóricas, Pesquisa e Intervenção. Renata Maria Coimbra e Normanda Araújo de
Morais (organizadoras). Porto Alegre, Artmed: 2015. Gabbard, G. O. Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica
– 4ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2006 Gurgel, W.
B.; Kovács, M. J.; Mochel, E. G.; Nakasu, C. T.;
Portugal, P. K. P. Luto Virtual: O
Processo de Elaboração do Luto no Ciberespaço. Caderno de Pesquisa, v.18,
n.1, 2011. McWilliams. N. Diagnóstico Psicanalítico: Entendendo a
Estrutura da Personalidade no Processo Clínico - 2ª Edição. Porto Alegre:
Artmed, 2014. Mendonça, Noeli. Diário de Uma
Espera: Informações e Experiências Vividas por Uma Candidata ao Transplante
Pulmonar. Disponível em: https://noeliwordpress.wordpress.com/author/noelimendonca/.
Acesso em: 15 set. 2016. Regina,
Kátia. Dias de Fibra – FC. Disponível
em: https://www.facebook.com/diasdefibrafc. Acesso em:
15 set. 2016. Sordi, A. O.; Manfro, G. G.; Hauck, S. O Conceito
de Resiliência: Diferentes Olhares. Revista Brasileira de Psicoterapia
2011; 13(2): 115-132. Gutfreind, C. O Luto Contemporâneo. Jornal da Brasileira de Porto Alegre 2014; 18 (01) número 01: 11. Verzoni, A.; Lisboa, C. Formas de Subjetivação Contemporâneas e as Especificidades da Geração
Y. Revista Subjetividades 2015; 15(3): 457-466. Yalom, I. D. Psicoterapia de Grupo: Teoria e Prática.
Porto Alegre: Artmed, 2006. Worden, J. W. Aconselhamento do Luto e Terapia do Luto: Um Manual para Profissionais
da Saúde Mental. São Paulo: Rocca, 2013.
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