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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2015 - Vol.20 - Nº 1

História da Psiquiatria

A CRISE NO MODELO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA NO BRASIL

Walmor J.Piccinini

    Nas minhas férias, com mais tempo de assistir TV tive o dissabor de assistir sucessivas reportagens sobre desvios de conduta de médicos e empresários ligados à medicina. Não bastasse a ação do governo afrontando as instituições médicas e seus associados, somos obrigados a assistir profissionais da medicina delinquentes dando motivos para os inimigos da profissão. Aqui cabe um registro de um velho professor meu, quando comentava certas atitudes isoladas de maus médicos. Ele me dizia; “não existe classe médica, existe a profissão de médico, exercida por indivíduos de todas as classes inclusive alguns desclassificados”.

     Para coibir estes desclassificados existiam os CRM e o CFM, o tempo foi me mostrando que estes órgãos cumprem suas obrigações rotineiramente, nunca se aparelharam ou nunca tiveram respaldo legal para agir ativamente. Geralmente sua ação ocorre somente em caso de ser provocada. Não é meu objetivo questionar nossos órgãos reguladores, deixo isto para outros estudiosos especialistas no assunto. Neste pequeno trabalho vou tentar entender o que se passa nas relações do médico com seu paciente e com a sociedade em geral.

    Para definir alguns pontos importantes vou me basear no Guia da Relação médico-paciente de 2001 do CREMESP  que pode ser encontrado em;

http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Publicacoes&acao=detalhes&cod_publicacao=4

O Guia tem dezesseis páginas muito instrutivas tanto para médicos como para os pacientes. Vou me limitar a alguns pontos que retirei do mesmo. O Juramento do Médico e alguns aspectos da relação médico-paciente:

 Juramento do Médico (Declaração de Genebra*)

No momento de me tornar um profissional médico: Prometo solenemente dedicar a minha vida a serviço da Humanidade. Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu paciente será minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do paciente, respeitarei os segredos que a mim foram confiados. Manterei, por todos os meios ao meu alcance, a honra da profissão médica. Os meus colegas médicos serão meus irmãos. Não deixarei de exercer meu dever de tratar o paciente em função de idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições sociais ou econômicas. Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. Faço essas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra. * Adotada em 1948 e revista em 1994 pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial. (Guia Cremesp)

 

 

    As expectativas em relação ao médico e a medicina são cada vez maiores, segundo alguns pensadores, quanto mais se ampliam os conhecimentos médicos, maior a insatisfação da população em geral com os mesmos.

 

Por maiores que sejam os progressos da medicina ela não consegue dar a imortalidade e a felicidade geral para todos e nem vai conseguir. Quando enfrentamos um caso de difícil solução ou mesmo de solução impossível, sempre existe a queixa que poderíamos fazer mais. Culpa nossa por nos assumirmos como membros do Olimpo, da Imprensa que acentua os fracassos em detrimentos das conquistas ou da idealização mágica do médico-feiticeiro que tem uma ligação direta com deus.

Existe hoje, portanto, uma enorme expectativa de que a Medicina possa resolver tudo. Mesmo que as conquistas científicas sejam velozes e promissoras, ainda faltam respostas para muitas situações”.

“Se, por um lado, dominamos exames precisos e procedimentos complexos, realizamos transplantes e deciframos genes, por outro temos, por vezes, deixado de lado aspectos elementares da relação humana. Já a ausência de políticas públicas eficazes, a deterioração dos serviços de saúde e das relações de trabalho, as deficiências do ensino médico, dentre outros fatores, geram problemas que poderiam ser evitados”.

“1. O que melhora a relação médico-paciente

Por parte do médico:

- Prestar um atendimento humanizado, marcado pelo bom relacionamento pessoal e pela dedicação de tempo e atenção necessários. - Saber ouvir o paciente, esclarecendo dúvidas e compreendendo suas expectativas, com registro adequado de todas as informações no prontuário. - Explicar detalhadamente, de forma simples e objetiva, o diagnóstico e o tratamento para que o paciente entenda claramente a doença, os benefícios do tratamento e também as possíveis complicações e prognósticos. - Após o devido esclarecimento, deixar que o paciente escolha o tratamento sempre que existir mais de uma alternativa. Ao prescrever medicamentos, dar a opção do genérico, sempre que possível. - Atualizarem-se constantemente por meio de participação em congressos, estudo de publicações especializadas, cursos, reuniões clínicas, fóruns de discussão na internet etc. - Ter consciência dos limites da Medicina e falar a verdade para o paciente diante da inexistência ou pouca eficácia de um tratamento. - Estar disponível nas situações de urgência, sabendo que essa disponibilidade requer administração flexível das atividades. - Indicar o paciente a outro médico sempre que o tratamento exigir conhecimentos que não sejam de sua especialidade ou capacidade, ou quando ocorrer problemas que comprometam a relação médico-paciente. - Reforçar a luta das entidades representativas da classe médica (Conselhos, Sindicatos e Associações) prestando informações sobre condições precárias de trabalho e de remuneração e participando dos movimentos e ações coletivas. Por parte do paciente:

- Lembrar-se de que, como qualquer outro ser humano, o médico tem virtudes e defeitos, observando que o trabalho médico é uma atividade naturalmente desgastante. - Considerar cada médico principalmente por suas qualidades, lembrando que em todas as áreas existem bons e maus profissionais. Ter claro que o julgamento de toda a classe médica por conta de um mau médico não faz sentido. - Não exigir o impossível do médico, que só pode oferecer o que a ciência e a Medicina desenvolveram. Da mesma forma, jamais culpar o médico pela doença. - Respeitar a autonomia profissional e os limites de atuação do médico. Ele não pode ser responsabilizado, por exemplo, por todas as falhas dos serviços de saúde, muitas vezes sucateado por seus gestores. Nesse sentido, é direito do paciente denunciar e reivindicar para que o Estado cumpra sua obrigação. Existem órgãos competentes para isso, como os Conselhos de Saúde e o Ministério Público, além da direção dos próprios serviços. - Não exigir dos médicos exames e medicamentos desnecessários, lembrando que o sucesso do tratamento está muito mais na relação de confiança que se pode estabelecer com o médico. - Seguir as prescrições médicas (recomendações, dosagens, horários etc.) e evitar a automedicação. - Ter consciência dos seus direitos (tratados a seguir).

2. Os direitos do paciente

Abandono Após iniciado o tratamento o médico não pode abandonar o paciente, a não ser que tenham ocorrido fatos que comprometam a relação médico-paciente e o desempenho profissional e desde que assegurada à continuidade na assistência prestada.

Acompanhante O paciente tem o direito de ser acompanhado por pessoa por ele indicada, se assim desejar, nas consultas, internações, exames pré-natais e no momento do parto; receber do profissional adequado, presente no local, auxílio imediato e oportuno para a melhoria do conforto e bem-estar.

Alta O médico pode negar-se a conceder alta a paciente sob seus cuidados quando considerar que isso pode acarretar-lhe risco de vida. Se o paciente ou familiar decidirem pela alta sem parecer favorável do médico, devem responsabilizar-se por escrito. “Nesse caso, o médico tem o direito de passar o caso para outro profissional indicado ou aceito pelo paciente ou família”.

Anestesia Receber anestesia em todas as situações indicadas. Recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.

Atendimento digno O paciente tem direito a um atendimento digno, atencioso e respeitoso, sendo identificado e tratado pelo nome ou sobrenome. O paciente não pode ser identificado ou tratado por números, códigos, ou de modo genérico, desrespeitoso ou preconceituoso.

Autonomia Consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados.

Criança A criança, ao ser internada, terá em seu prontuário a relação das pessoas que poderão acompanhá-la integralmente durante o período de internação.

Exames. É vedada a realização de exames compulsórios, sem autorização do paciente, como condição necessária para internação hospitalar, exames pré-admissionais ou periódicos e ainda em estabelecimentos prisionais e de ensino.

Gravação O paciente tem o direito de gravar a consulta, caso tenha dificuldade em assimilar as informações necessárias para seguir determinado tratamento.

Identificação Poder identificar as pessoas responsáveis direta e indiretamente por sua assistência, por meio de crachás visíveis, legíveis e que contenham o nome completo, a função e o cargo do profissional, assim como o nome da instituição.

Informação O paciente deve receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre hipóteses diagnósticas; diagnósticos realizados; exames solicitados; ações terapêuticas, riscos, benefícios e inconvenientes das medidas propostas e duração prevista do tratamento. No caso de procedimentos diagnósticos e terapêuticos invasivos, deve ser informado sobre a necessidade ou não de anestesia; o tipo de anestesia a ser aplicada; o instrumental a ser utilizado; as partes do corpo afetadas; os efeitos colaterais; os riscos e as consequências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; os exames e as condutas a que será submetido; a finalidade dos materiais coletados para exame; as alternativas de diagnósticos e terapêuticas existentes, no serviço onde está sendo realizado o atendimento ou em outros serviços, além do que mais julgar necessário.

Medicação Ter anotado no prontuário, principalmente se estiver inconsciente durante o atendimento, todas as medicações, com dosagens utilizadas; e registro da quantidade de sangue recebida e dos dados que permitam identificar a sua origem, sorologias efetuadas e prazo de validade.

Morte O paciente tem o direito de optar pelo local de morte (conforme Lei Estadual válida para os hospitais do Estado de São Paulo).

Pesquisa Ser prévia e expressamente informado, quando o tratamento proposto for experimental ou fizer parte de pesquisa, que deve seguir rigorosamente as normas regulamentadoras de experimentos com seres humanos no país e ser aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do hospital ou instituição.

Prontuário Ter acesso, a qualquer momento, ao seu prontuário médico, recebendo por escrito o diagnóstico e o tratamento indicado, com a identificação do nome do profissional e o número de registro no órgão de regulamentação e controle da profissão.

Receituário Receber as receitas com o nome genérico dos medicamentos prescritos, datilografadas ou em letra legível, sem a utilização de códigos ou abreviaturas, com o nome, assinatura do profissional e número de registro no órgão de controle e regulamentação da profissão.

Recusa O paciente pode desejar não ser informado do seu estado de saúde, devendo indicar quem deve receber a informação em seu lugar.

Respeito Ter assegurado, durante as consultas, internações, procedimentos diagnósticos e terapêuticos, a satisfação de necessidades, a integridade física, a privacidade, a individualidade, o respeito aos valores éticos e culturais, a confidencialidade de toda e qualquer informação pessoal, e a segurança do procedimento; ter um local digno e adequado para o atendimento; receber ou recusar assistência moral, psicológica, social ou religiosa.

Sangue Conhecer a procedência do sangue e dos hemoderivados e poder verificar, antes de recebê-los, os carimbos que atestaram origem, sorologias efetuadas e prazo de validade.

Segunda opinião. Direito de procurar uma segunda opinião ou parecer de um outro médico sobre o seu estado de saúde.

Sigilo Ter resguardado o segredo sobre dados pessoais, por meio da manutenção do sigilo profissional, desde que não acarrete riscos à terceiros ou à saúde pública.

Fontes: Lei Estadual (São Paulo) Nº 10.241, de 17/03/1999 Pareceres dos Conselhos de Medicina Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

3. Os direitos do médico

- Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, raça, sexo,nacionalidade, cor, opção sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza. - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas reconhecidamente aceitas e respeitando as normas legais vigentes no país. - Apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais ao paciente, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à Comissão de Ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição. - Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar o paciente. - Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina. - Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados com ou sem caráter filantrópico, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas da instituição. - Requerer desagravo público ao Conselho Regional de Medicina quando atingido no exercício de sua profissão. - Dedicar ao paciente, quando trabalhar com relação de emprego, o tempo que sua experiência e capacidade profissional recomendarem para o desempenho de sua atividade, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas prejudique o paciente. - Recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. Fonte: Código de Ética Médica Capítulo II - Direitos do Médico - Artigos 20 a 28

4. Prontuário médico e consentimento do paciente

Dois instrumentos são fundamentais para assegurar a boa relação entre médico e paciente: o prontuário médico e o termo de consentimento livre e esclarecido do paciente.

Prontuário

O prontuário deve conter, de forma legível, identificação do paciente; evolução médica diária (no caso de internação); evoluções de enfermagem e de outros profissionais assistentes; exames laboratoriais, radiológicos e outros; raciocínio médico, hipóteses diagnósticas e diagnóstico definitivo; conduta terapêutica, prescrições

médicas, descrições cirúrgicas, fichas anestésicas, resumo de alta, fichas de atendimento ambulatorial e/ou atendimento de urgência, folhas de observação médica e boletins médicos.

O prontuário deve ser guardado por um período de pelo menos dez anos podendo, no final desse tempo, ser armazenado em qualquer meio que possibilite sua reconstituição. O paciente tem direito de acesso ao prontuário. Sem o consentimento do paciente, o médico não poderá revelar o conteúdo de prontuário ou ficha médica, a não ser por dever legal. Se o pedido for feito pelos familiares, será necessária a autorização expressa do paciente.

No caso de óbito, o laudo deverá revelar o diagnóstico, o procedimento do médico e a causa mortis. Para sua eventual defesa judicial, o médico poderá apresentar o prontuário médico à autoridade competente.

Consentimento livre e esclarecido

O médico tem o dever de informar ao paciente sobre os riscos do ato médico, dos procedimentos e das consequências dos medicamentos que forem prescritos.

O termo de consentimento livre e esclarecido tem como finalidade formalizar ou documentar o médico e o paciente sobre as consequências e os riscos do ato médico. Pode ser realizado verbalmente, transcrito no prontuário ou simplificado a termo em um documento.

O termo não pode ser imposto, não exclui nenhuma responsabilidade do médico e não tem valor para evitar possível pedido de indenização futura. Deve ser apresentado em linguagem acessível e simples e, após o entendimento, pode ser assinado pelo paciente e pelo médico, se a opção for pelo documento escrito.

Não existe modelo de termo de consentimento, que deve ser elaborado pelas instituições de saúde, submetido à avaliação da Comissão de Ética Médica e, quando necessário, ao próprio Conselho Regional de Medicina.

No caso de pesquisa clínica, envolvendo medicamento ou tratamento ainda em teste, o consentimento é rigoroso e deve seguir as normas da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. (Guia Cremesp).

    O Conselho Federal de Medicina disponibiliza no seu Portal Médico o Código de Ética Médica http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp

    Enfim não é por falta de normas, de divulgação, de pregação que ocorrem as falhas pessoais no exercício da medicina. Devemos considerar a possibilidade de que as mudanças são tão rápidas que, mesmo os Conselhos, têm dificuldade em acompanhá-las. A Revista Veja, em reportagem de Cecília Araújo (http://veja.abril.com.br/blog/10-mais/ciencia/as-10-maiores-descobertas-da-historia-da-medicina/) fez um resumo do livro do Professor Jofre M. de Rezende sobre os maiores progressos da medicina nos últimos cem anos. Mesmo tendo omitido algumas áreas como a Anestesia e a Psiquiatria a lista dá uma ideia da complexidade do assunto.

10. Transplantes de órgãos.

Os transplantes inicialmente se resumiam a um único órgão: o rim. Atualmente, já se é possível transplantar coração, pulmão, fígado, tecido pancreático e medula óssea. No futuro, certamente, outros órgãos também poderão ser substituídos. O sucesso dos transplantes se deve, antes de tudo, à imunologia, pela descoberta dos antígenos de histocompatilidade, e à farmacologia, pela obtenção de drogas imunossupressoras. O uso de próteses também tende a se expandir em diferentes especialidades, pela disponibilidade de materiais inertes e duráveis, incapazes de provocar reações teciduais.

9. Grandes progressos nos atos cirúrgicos – com destaque para a cirurgia cardíaca, a neurocirurgia e a oftalmologia – foram possíveis graças à colaboração de outras disciplinas, como a anestesiologia, a neurofisiologia, a bacteriologia e a imunologia. O coração, antes intocável, tornou-se um órgão acessível, graças à introdução da circulação extracorpórea, que permitiu a correção das malformações congênitas, a revascularização e outros tipos de operações. Já a neurocirurgia e a oftalmologia se beneficiaram com o uso dos raios laser.

8. A fecundação artificial do óvulo em laboratório e o implante intrauterino do ovo fecundado são uma façanha sem paralelo na história da reprodução humana. A partir dessa descoberta, acredita-se que o caminho esteja aberto para que se possa conseguir, no futuro, o desenvolvimento do embrião fora do ventre materno. Já a clonagem de animais pela manipulação celular mostrou ser possível a clonagem de seres humanos, enquanto as células-tronco provaram seu potencial no tratamento de muitas doenças degenerativas.

7. O campo da engenharia genética deu origem a um acontecimento promissor: a determinação da estrutura do DNA – base de toda matéria viva e responsável pela transmissão do código genético. Mais tarde, reveladas as chamadas enzimas de restrição, capazes de fragmentar a molécula do DNA, tornou-se possível alterar o código genético de uma célula, introduzindo nela um segmento de DNA de outra totalmente diferente. A engenharia genética já colabora para a produção de hormônios, enzimas e vacinas, e prevê-se que sua atuação se amplie consideravelmente no futuro.

6. A fibroendoscopia foi um grande progresso nos métodos diagnósticos porque substituiu os então utilizados aparelhos metálicos, rígidos e cheios de limitações. Em 1958, foi publicado o primeiro trabalho sobre a utilização de fibra óptica em endoscopia, resolvendo um dos problemas aparentemente insolúveis: o da curvatura da luz. A novidade possibilitou a obtenção das imagens antes não alcançadas. Vinte anos depois, a fibroendoscopia foi superada pela videoendoscopia.

5. Técnicas de Alta Sensibilidade. Os laboratórios desenvolveram técnicas de alta sensibilidade que contribuíram para o diagnóstico clínico. Um exemplo foi o radioimunoensaio (que depois evoluiu para o método imunoenzimático), que permitiu detectar substâncias em concentrações infinitamente pequenas nos líquidos orgânicos e nos tecidos. Algumas dessas substâncias são os hormônios, os peptídios, os neurotransmissores, os antígenos e os anticorpos. Pela descoberta do radioimunoensaio, Rosalyn Yallow recebeu o prêmio Nobel de 1974. Ela foi à segunda mulher a receber essa distinção em Fisiologia e Medicina.

 

4. A descoberta dos raios-X, no final do século XIX, e sua aplicação com fins diagnósticos, no início do século XX, constituíram um marco importante na história da medicina. Seu sucesso levou à busca de outros métodos diagnósticos por imagens, que resultou no surgimento da ultrassonografia, método de larga aplicação, sobretudo em obstetrícia; da tomografia computadorizada, cuja alta resolução permitiu o diagnóstico de lesões não detectáveis pelos métodos anteriores; e da ressonância nuclear magnética, capaz de gerar imagens nítidas das áreas magnetizadas, substituindo outros exames mais agressivos.

3. Síntese de hormônios e vitaminas. O isolamento e a determinação da estrutura química de hormônios possibilitou a síntese de grande parte deles em laboratório. Dois exemplos práticos são a composição artificial da insulina, usada no tratamento da diabetes mellitus, e da cortisona, de grande poder anti-inflamatório e imunossupressor. A descoberta das vitaminas, por sua vez, revolucionou a prevenção e o tratamento das doenças resultantes de carências específicas desses elementos: escorbuto, beribéri, pelagra e raquitismo, raramente encontradas hoje em dia.

2. A descoberta dos antibióticos, na primeira metade do século XX, reduziu drasticamente as taxas de mortalidade. Se até então doenças como pneumonia e febre tifoide matavam milhares de pessoas no mundo todo, elas passaram a ser controladas a partir daí. Moléstias de difícil tratamento no passado, como sífilis, tuberculose e lepra, também puderam ser curadas graças aos antibióticos. Entretanto, algumas bactérias terminaram por criar resistência à substância, o que incentivou uma busca continuada de novos tratamentos.

1. A maior contribuição da medicina à saúde foi no campo da prevenção das doenças, por meio da imunização em massa e das ações desenvolvidas sobre o meio ambiente. Doenças como tétano, difteria, coqueluche, sarampo, poliomielite, febre amarela e hepatite B já podem ser evitadas graças à existência de vacinas eficazes. Medidas voltadas para o meio ambiente, como saneamento básico, hábitos de higiene e melhoria das habitações, também contribuíram em larga escala para a elevação do nível de saúde a partir do século XX.

    Algumas áreas da medicina se tornaram eminentemente técnica, a figura do paciente é quase um acessório. Se acrescentarmos os intermediários entre o médico e seu paciente, fica distante a clássica relação médico-paciente com continuidade, conhecimento mútuo e profundo respeito entre ambas às partes.  Os clínicos em geral, entre eles os psiquiatras são os guardiões desta relação. A prática psiquiátrica, influenciada pela prática analítica preserva esta relação como fundamental no tratamento. Existem psiquiátricas que trabalham preferencialmente como prescritores e a relação fica reduzida ao efeito positivo ou negativo dos psicofármacos.

     Uma realidade que desafia os bons médicos é a redução constante dos valores recebidos e a tentativa de adaptar-se aos novos tempos reduzindo a duração das consultas, restringindo o contato com seu paciente. Se por um lado os planos de saúde aumentaram o público alvo da medicina, por outro lado a pressão de redução de custos atingiu profundamente a relação médico paciente. Hoje em dia os prestadores de serviços, clínicas, hospitais, despersonalizaram o médico e os utilizam sem qualquer culpa ou pudor com o objetivo de manter seus serviços rentáveis. Assim temos um atendimento em volume que tornam muito difícil a relação médico-paciente. Nas especialidades, em muitas delas ela é praticamente inexistente. O profissional trabalha numa linha de montagem e sua preocupação é que ela seja alimentada continuamente. Nos EUA, no tempo que morei por lá, acompanhei vários acidentes em que ocorreu a cirurgia na perna errada, extração de órgão errado e acidentes similares. Volto para o Brasil e vejo os mesmos acidentes acontecerem. Cirurgião que nunca viu o paciente, entra na sala, opera o lhe mandam operar e depois o erro é contatado.

    O que me consola é que tem muito médico dedicado, atento, preocupado com seu paciente. Diante das notícias ruins lembrei-me de um querido amigo, precocemente falecido que escreveu anos atrás sua visão de um médico. Trata-se do psiquiatra Cláudio Duque do Recife que nos brindou com a seguinte história:

O velho clínico

Description: http://www.polbr.med.br/ano05/lbp1105e.jpg

Cláudio Duque - médico psiquiatra (1948-2005)

http://www.polbr.med.br/ano05/wal1105.php


Publicado no (a): Portal Médico- Em: 21/10/2005

Há alguns anos fui chamado para atender, em casa, um clínico geral já passado dos 80 que estava com uma doença grave e crônica. Vinha apresentando episódios de turvação da consciência, especialmente "sundowning", com alucinações cenestésicas e delírios. Tratava-se de um dos mais ilustres médicos do estado, com quem me consultei uma vez quando ainda estudante e cuja família tem amizade com a minha. Na ocasião da minha consulta fiquei impressionado com o exame meticuloso que me fez e com a firmeza com que disse que eu não tinha nada além de uma virose dessas corriqueiras. 

Fui vê-lo no tempo de que dispunha, sábado de manhã, numa casa no subúrbio. Ao chegar, como sempre faço, tentei sentir o ambiente e fiquei muito impressionado sem saber direito por que. Era uma casa grande, moderna, confortável, sem o menor sinal de luxo, e onde as coisas se harmonizavam como se tivessem todas nascidas lá; como um jardim ao mesmo tempo bem cuidado e sem jardineiro que o podasse. As coisas simplesmente estavam lá. Havia silêncio. E havia um painel com um poema que eu lia discretamente sempre que entrava e saía. Toda às vezes me emocionava. Era o retrato daquela casa. Simplicidade, emoção silenciosa e força inesgotável. Filhos e netos sempre circulavam ou estavam em suas ocupações. Mesmo com 30 anos de profissão, desde o início me senti como principiante, recém-formado, diante dos quase 60 anos da convivência daquele ambiente com a medicina. Quando entrei, a atitude de todos foi de alegria silenciosa e um respeito tão grande que me senti minha carteira do CRM crescer no bolso. O que ouvi da fala de todos, mesmo silenciosos, foi: "Que bom, chegou o médico!". Percebi então que não era eu quem chegava, era a medicina que entrava pelo jardim e era assim que a medicina era recebida e habitava aquela casa. Poucas vezes na vida me senti tão orgulhoso de ser médico, porque estava recebendo por tabela o respeito à profissão que o então enfermo havia ensinado a eles. Pensei: essa é a casa de um médico, é assim que os médicos devem viver, é numa casa assim que devem morrer. Foi quando encontrei o paciente na sala. 

Nunca havia visto um doente grave com tanta dignidade e serenidade. Usava o pijama como um almirante se orgulha da farda. Percebi seu respeito por todos os pijamas que havia encontrado na vida. Olhou-me serenamente, sem me reconhecer, com a voz fraca, sussurrante, perguntou se eu estava bem e começou a relatar, com todos os detalhes, o seu sofrimento. Falou com a sinceridade e a confiança que merecera a vida toda. Ouvi, perguntei, respondeu, acrescentou. Disse-lhe o que achava e como pretendia ajudá-lo. Ouviu com curiosidade e otimismo. Aceitou sem nada comentar. Sorriu, olhando-me nos olhos. Éramos aliados contra a dor e a morte. 

Visitei-o todos os sábados pela manhã durante mais de um ano. Depois, amiudava ou espaçava as visitas conforme o seu estado exigisse. Não lhe fiz uma só visita da qual não saísse emocionado, não raro com os olhos molhados. Era o contato direto com a sacralidade de uma coisa que tinha um link direto com Hipócrates e que eu via pelo mundo afora se desvanecendo como um riacho minguado na terra seca e estéril do dia-a-dia. 

Sua esposa, simples, bonita e sorridente, me tratava com se fosse da família e eu era do time do marido, era da confraria universal dos lutadores contra a morte, irmãos para sempre. Ela sempre assistia às consultas, deixava-nos à sós um pouco e depois confidenciava sobre o estado e o comportamento dele. Uma vez, reconheci que um dos medicamentos não estava funcionando e resolvi mudar. Ela me disse que ele ia achar bom, pois não simpatizava com a droga desde o início, mas que proibira qualquer pessoa da família de sequer mencionar o fato; eu era o médico e o médico deve ter toda a liberdade de escolha do tratamento. 

Outra vez, ao relatar suas alucinações, comentou pensativo: "agora entendo o que alguns pacientes me diziam; quando eu ouvir alguém me contar uma coisa dessas, vou encarar de uma forma diferente, só vivendo é que a gente sabe mesmo como é". Esse "quando alguém me contar" na hora me pareceu tudo menos uma negação do fato óbvio de que não voltaria a clinicar e não ouviria mais queixa alguma. Ouvi como um recado, uma lição, bem assim: 
"
você pensa que algum dia vai parar de aprender a ouvir os seus pacientes?".

Coincidiu um dia de quando eu chegar ele estar sendo examinado pelo neurologista. Contemporâneo dele, já teria atendido juntos dois mil e trinta pacientes. O velho neurologista não tinha boas notícias. Olhavam-se nos olhos com cumplicidade. Sabiam do que estavam falando. A situação era a mesma de tantas vezes, ser com um deles não faria diferença. Era "a luta", a medicina funcionando como devia funcionar. 

Em março do ano passado saiu uma portaria da ANVISA desaconselhando o uso em idosos de um medicamento com que ele estava se dando muito bem. Comuniquei-lhe imediatamente a razão da mudança do remédio. Não lamentou, disse apenas que ainda bem que nada de mal tinha acontecido. Assisti a trocas de roupa, sessões de fisioterapia, mudança de posição na cama, manobras para preparação de banho, transporte nos braços de enfermeiro da sala para o quarto e vice-versa e jamais o ouvir se lamentar de qualquer incômodo nem deixar de agradecer a mim e aos outros por qualquer melhora. 

Numa das primeiras consultas, percebi que a esposa, muito discreta e encabuladamente, tentava introduzir na conversa o assunto dos meus honorários. Respondi com a mesma moeda; falando de outros assuntos dei a entender que não cobrava de colegas. Nunca mais se falou no assunto. Os médicos do tempo dele se tratavam assim. 

Estava em sistema de “home” hospital. Todos os resultados de laboratório e as evoluções lhe eram apresentados. Lia e comentava com naturalidade. Estava em casa. No final de cada consulta me apresentavam o prontuário, importante ali como se fosse à bíblia de Gutemberg. Mesmo depois de centenas de blocos rabiscados, na primeira prescrição minha mão vacilou como na primeira emergência do primeiro plantão. Fiz a letra mais bonita que consegui, reli e conferi trezentas e quatorze vezes e ainda não fiquei tranquilo. A medicina devia ser sempre assim.

Este ano ele finalmente venceu a morte. Foi-se em paz, com naturalidade, sem desespero. A Dama da Foice, brutal e tenebrosa, não teve vez naquela casa. A partida foi digna e em harmonia. A medicina dele venceu mais uma vez.

Desculpem ter-me alongado tanto, mas na última terça-feira, 18 de outubro, acordei me lembrando do velho médico.


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