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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Dezembro de 2015 - Vol.20 - Nº 12

Psicanálise em debate

MEU AMIGO HINDU, de Hector Babenco

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

 “Meu amigo hindu”, novo filme de Babenco, retoma uma questão de grande interesse em artes narrativas como literatura e cinema, que é a importância dos elementos biográficos na obra do autor, a maneira como transita entre ficção e realidade.

Mais do que nunca é difícil traçar as fronteiras entre esses dois campos, pois os autores produzem obras que, apesar de serem muito próximas da autobiografia, a transcendem na medida em que se dão liberdades ficcionais incompatíveis com aquela, como ocorre com as chamadas “autoficções”. Vemos isso no cinema com Fellini, especialmente em 8 ½ e, de forma mais radical, na literatura do norueguês Karl Ove Kanusgard que tem produzido uma espécie de hiperautobiografia, expondo minuciosamente sua intimidade e a de sua família, criando com isso problemas éticos complicados.

A esse respeito Milan Kundera disse em “The art of novel“ (1986): “O romancista demole a casa de sua vida e usa os tijolos para construir outra casa: a do romance. Do que se depreende que os biógrafos do romancista desfazem o que o romancista fez, e refazem o que ele desfez. O trabalho deles, altamente negativo do ponto de vista da arte, não pode iluminar nem o valor nem o significado do romance”.

Kundera estabelece a importância central dos elementos biográficos na criação de uma obra de ficção, mas afirma que procurá-los ali é um erro, desde que ela deve ser julgada por outros parâmetros e critérios. Ele está correto ao dizer que o biógrafo não ilumina o valor ou o significado da obra, pois as informações por ele trazidas não são necessárias para usufruí-la e apreciá-la. Mas isso não quer dizer que o trabalho do biógrafo seja vão, pois ele interessa aos estudiosos dos mecanismos de criação, ocupados em compreender a maneira pela qual o autor transformou seus traumas em objetos estéticos.

No cinema e na literatura é comum a confusão entre personagem e autor, especialmente entre narrador e autor. Um dos artifícios da ficção é justamente criar uma verossimilhança que fisga o leitor, provoca identificações do público com os personagens, escamoteia o efetivo caráter irreal da obra.

Babenco situa seu filme no centro dessa questão, ao colocar nele episódios de sua vida conhecidos pelo grande público, como o fato de ter vencido uma dura e longa batalha contra um câncer linfático, durante a qual viu seu casamento se desfazer e posteriormente, curado, encontrou um novo amor.

Obras como a de Babenco, que se situam muito próximas da experiência vivencial do autor, podem correr o risco de serem confundidas pelo leitor ou espectador como um relato factual, supostamente de fácil realização e, por isso mesmo, de menor valor se comparado a uma outra classificada como ficcional, na qual a capacidade criativa do autor é prontamente comprovada e reconhecida. É claro que essa postura é equivocada, dado que mesmo o registro propriamente biográfico segue padrões estabelecidos e está longe de ser uma mera descrição informativa, sem preocupações estéticas. Isso fica ainda mais complexo na medida em que o autor trate o material biográfico usando das diversas formas a seu dispor, como a narrativa autobiográfica, a nao ficcional, a autoficção, o roman à clef.

Atualmente essa possível confusão é ainda mais facilitada pela cultura de massa, que rompe os limites entre público e privado e a indústria do entretenimento, que fornece de forma sistemática suprimentos diários de factoides sobre a vida das celebridades. Sob esse aspecto, não é indiferente, no contexto do filme de Babenco, que Barbara Paz seja uma figura de alta visibilidade, conhecida estrela global e participante de um reality show de grande sucesso quando em exibição. Sua presença no filme permite assim outros níveis de leitura, contrapondo a exposição do artista no reality show e na obra de arte de cunho autobiográfico.   

Assim, a ousadia de Babenco em utilizar no filme fatos conhecidos sobre sua pessoa, numa propositada confusão entre vida e arte, personagem e autor, pode  absorver a atenção e curiosidade do espectador nesse sentido, que somente num momento segundo se aperceberia das qualidades da película e da trama firme e bem urdida que dá sustentação ao drama central.

De fato, o roteiro de Babenco trabalha com um duplo conflito dramático. O primeiro, manifesto, é, como vimos, o aparecimento do câncer, a ameaça da morte, a luta do personagem para continuar vivendo e produzindo.  O segundo, latente, decorre de sua novela familiar. O filme abre com os três irmãos esperando a notícia do falecimento do pai, “um grande contador de histórias”, diz no enterro um amigo (Rabino Henry Sobel, em cameo role). As dificuldades da relação pai-filho ficam insinuadas no fato de o personagem “ter de pegar o avião” e não esperar pelo cumprimento dos ritos fúnebres. No desenrolar da ação, são mostradas as rivalidades fraternas, a presença forte da mãe, os amigos, a profissão, os problemas amorosos. Percebemos que ao lado dos graves problemas trazidos pelo câncer, o personagem tinha outro tipo de sofrimento - a culpa por ter deixado o lar paterno numa pequena cidade e saído em busca de seu caminho mundo a fora. Acusava-se de ter abandonado a família quando dele ela mais precisava. Assim, ao alívio proporcionado pela recuperação da saúde física corresponde a paz trazida pela reconciliação com a família, um dos momentos mais comoventes do filme.

Cinematograficamente, Babenco exibe completo domínio da linguagem e demais peculiaridades do ofício - uma bem sucedida preocupação formal visível na sequência de enquadramentos, planos e movimentos de câmara; um roteiro bem afiado; uma eficiente trilha sonora; referências fílmicas que o cinéfilo de pronto reconhece; uma excelente direção do elenco forte e bem integrado.

É curioso que Babenco tenha escolhido um titulo que evoca mundos exóticos e distantes para seu filme que fala do que lhe é mais intimo e próximo. Talvez com isso revele a tentativa de sair de si mesmo e de seu entorno, de se afastar da experiência devastadora que ameaçava destruí-lo.

Ao mesmo tempo, ao mencionar o amigo hindu, Babenco se reporta a momentos de extraordinária vulnerabilidade, nos quais a morte estava muito próxima, mostrando seu ilimitado poder sobre todos, homens e mulheres, velhos e crianças. E é justamente nessas circunstâncias que Babenco reencontra sua capacidade de narrar, valioso dom que estabelece um traço de identificação com o pai, tido como um “grande contador de histórias”. Naqueles duros momentos, o poder liberador de contar histórias se revela com toda a força, possibilitando driblar a angústia ao inventar novos mundos, escapar de uma realidade insuportável, recompor forças para continuar lutando.  

Falamos antes da íntima relação entre biografia e ficção nas artes narrativas. Por que um autor precisa tanto contar a história de sua vida, disfarçada em maior ou menor grau pela ficção? Mas seria ele muito diferente das demais pessoas?  Não gostam todas elas de contar os pequenos e grandes fatos de suas vidas para alguém próximo, que as escute com atenção e simpatia? Ao contar suas vidas, não estariam elas procurando dar-lhes um sentido, representar e simbolizar os traumas vividos para melhor poder contê-los? Aquele que as ouve serve de testemunho, ele lhes dá fé, convalida uma experiência que de outra forma poderia se perder na insignificância, no sem sentido. A diferença do autor com o comum dos homens é que ele conta sua história com muito mais engenho e arte e tem como testemunho não uma pessoa só e sim o grande público. Isso é parte do que acontece numa psicanálise, onde o analista, a partir do relato informe e confuso que recebe inicialmente do paciente, o ajuda a encontrar os eixos básicos de sua história, fazendo com que ele possa finalmente dela se apropriar.

Na história que Babenco nos conta, a morte mais parece um caixeiro viajante, um funcionário subalterno de uma multinacional, bem diferente da figura imponente e assustadora de Bergman. Condizente com nossos tempos agnósticos, portanto despida de toda transcendência, a morte não nos leva mais para o paraíso ou para o inferno, ela simplesmente nos elimina do jogo da vida. Essa mudança não diminui muito (talvez até o potencialize) o terror que ela inspira, que se não transparece em sua aparência corriqueira, surge de forma brutal na grotesca figura de sua amante. 

“Meu amigo hindu” começa com a morte do pai e termina numa exibição de grande força vital, com Barbara Paz dançando “Singing in the rain”. Assim Babenco comemora o triunfo (sempre incerto e temporário) da vida sobre a morte, celebra o amor e, ao mesmo tempo, declara sua paixão pelo cinema. 

Não é raro que diretores homenageiem o cinema citando cenas de antigos musicais norte-americanos. Tais filmes não tinham grandes pretensões artísticas ou autorais, eram produtos comerciais que pretendiam apenas divertir o grande público. Que tenham transcendido esse estreito objetivo e se constituído como ícones da cultura do século XX mostra como pode variar ao longo do tempo a avaliação de uma criação artística.

Certamente as plateias atuais e futuras saberão reconhecer o valor de “Meu amigo hindu”, sóbria e bem lapidada meditação de Babenco sobre a condição humana.


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