Psyquiatry online Brazil
polbr
Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Novembro de 2015 - Vol.20 - Nº 11

Psicanálise em debate

SABINA SPIELREIN, FREUD E RENATA CROMBERG – UM DIÁLOGO PRODUTIVO (*)

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

Resenha de: Cromberg Renata, “Sabina Spielrein – uma pioneira da psicanálise” – Obras Completas, volume 1. São Paulo: Livros da Matriz, 2014, 400 p.

 

O livro de Renata Cromberg sobre Sabina Spielrein é um empreendimento de fôlego no resgate dessa pioneira da psicanálise que ficou muito tempo no degredo, sobrevivendo em referências na correspondência entre Freud e Jung e na nota de pé de página do sexto capitulo de “Além do principio do Prazer” - o que, convenhamos, não é de pouca monta.

Aldo Carotenuto, em livro renomado, relata como a redescobriu nos anos 70 do século passado e a trouxe de volta para as atenções gerais.

Proveniente de uma abastada família russa, Spielrein desenvolveu um quadro psiquiátrico significativo que justificou seu encaminhamento para o hospital Burghölzli, chefiado por Bleuler em Zurique, onde Jung começava a  clinicar. Sua inteligência e florida sintomatologia fez com que Jung visse nela a paciente ideal para experimentar o novo método proposto por Freud. O tratamento foi um sucesso e logo Spielrein estava ocupando o lugar de assistente de seu analista e tendo com ele um envolvimento afetivo, além de ingressar  na faculdade de medicina.  Como era previsível, o caso amoroso teve uma evolução tumultuada e Spielrein recorreu a Freud como mediador, o que o deixou em posição delicada, pois precisava resguardar Jung de um escândalo que poderia atingir também a própria psicanálise, ao mesmo tempo em que não podia ignorar as acusações e queixas que ela trazia. Estabelecendo-se como analista e produzindo teoricamente, Spielrein ficou mais um período na Suíça e voltou para a Rússia onde se ligou à universidade de Moscou, implantou a psicanálise e a praticou até ser ela condenada como “ciência burguesa”, portanto proibida. Impedida de exercê-la, voltou a trabalhar como médica no caos provocado pela Segunda Guerra Mundial e terminou por ser assassinada, junto com suas duas filhas, pelos soldados alemães durante a invasão da URSS. Sua intensa vida deu margem a dois filmes de sucesso: “Jornada da alma” (“Prendime l’anima”, 2003) de Roberto Faenza e “Um método perigoso” (“A dangerous method”, 2011) de David Cronenberg.

De forma exaustiva, Cromberg discorre sobre todos esses dados. Ressalta a importância da clínica com psicóticos desenvolvida por Spierein no Burghölzi e sua produção teórica, na qual se sobressai o texto “A destruição como origem do devir”, que prenuncia aquilo que logo depois Freud conceituaria como “pulsão de morte”. A seu ver, o papel de mediador que Freud foi forçado a exercer entre Spielrein e Jung o teria motivado a escrever os trabalhos sobre técnica psicanalítica, especialmente aqueles sobre o amor de transferência.

Cromberg considera que as graves distorções na apreciação da vida e obra de Spielrein se devem à excessiva ênfase no caso amoroso com Jung e à pecha de doente mental que lhe foi pespegada - esquizofrenia, psicose histérica com traços esquizoides, masoquismo – fazendo com que ficasse num segundo plano suas atividades como psicanalista. Uma mulher que fez conquistas pessoais e profissionais marcantes, cujo pensamento influenciou Freud, Jung, Luria, Vigotsky e Piaget (de quem foi analista), não pode ter seus méritos subestimados, diz ela. Só pode ser considerada como sintomática sua ausência nas biografias canônicas de Freud, como as de Ernest Jones, Paul Rosen e Max Schur. Spielrein faz uma pequena aparição no livro de Peter Gay e Elizabeth Roudinesco se estende um pouco mais sobre sua figura.

Na extensa pesquisa que fez, Cromberg diz ter encontrado abundante material sobre a pessoa de Spielrein, mas constatou que, até 2008, havia apenas 3 artigos dedicados a análise de seus trabalhos teóricos, cuja única publicação completa se deu em 2002, em alemão.

O livro de Cromberg é o primeiro de uma trilogia que compõe um bem elaborado projeto editorial. O segundo trará artigos de Spielrein e o terceiro constará de estudos sobre sua relação com Jung e Freud, acompanhados de interpretações sobre o ostracismo ao qual foi relegada por tanto tempo.

Nesse volume, além dos textos de Cromberg, temos 3 artigos de Spielrein. Aquele que desperta mais curiosidade é o mais famoso, “A destruição como origem do devir”, que especula sobre destruição, transformação e criação.

É importante – como faz Cromberg – situar o momento histórico em que Spielrein o escreve. Num debate fortemente estimulado por Jung, observava-se que nos psicóticos havia uma retirada da libido do mundo externo e seu posterior reinvestimento no próprio ego. Com isso se anulava a dicotomia agônica e conflitiva defendida por Freud entre pulsão sexual e pulsão do ego (não sexual, de autoconservacao e preservação da espécie) e ficava favorecida a tese monista de Jung de uma forca vital única, dessexualizada.  Conhecemos a solução encontrada por Freud, que abandona a antiga antinomia e a substitui por outra, entre pulsão de vida (Eros) e pulsão de morte (Tânatos).

Spielrein se instala exatamente nesse território, tentando defender simultaneamente as ideias de Jung e Freud, enfatizando aquilo que as unia. Reconhece haver uma libido do ego, que o faz desejar o prazer e se preservar numa autoconservação, mas aponta para existência de outras pulsões em busca de satisfação além das eróticas. O ego deseja também a própria aniquilação, dissolução e desaparecimento, ao mesmo tempo em que deseja se discriminar do todo informe, o que implica em sofrimento e dor. Para equacionar o problema, Spielrein se apoia na diferença entre as pulsões de autoconservação e de conservação da espécie. 

A pulsão de autoconservação é regida pela discriminação e diferenciação individual. A pulsão da conservação da espécie tende à dissolução na matéria original, à assimilação ao genérico. A primeira é simples e positiva, a segunda precisa dissolver o antigo para que o novo apareça; há um lado positivo e negativo, é ambivalente. A pulsão de autoconservação é estática, a pulsão de conservação da espécie é dinâmica, anseia pela transformação.

É interessante observar que embora a distinção entre autoconservação e preservação da espécie, esteja hoje em dia um tanto esquecida, ela é o tema central do interessante filme de ficção cientifica “Interestelar” (“Interstellar”, 2014) de Christopher Nolan, no qual a humanidade está em vias de extinção e se impõe o conflito entre os interesses do individuo e os da espécie.

Para Spielrein o ego decorre da diferenciação, discriminação e separação de um todo amorfo inicial, um magma original, essência oceânica, o mar, a mãe. Afirma que quanto mais próximo da consciência, os conteúdos psíquicos se mostram como configurações discriminadas e pessoais e querem assim se conservar. Ao se aprofundar rumo ao inconsciente, o ego tende a se dissolver no indiscriminado, no genérico, no típico. O ego deixa de ser “eu” e passa a ser “nós”, “eles” – concepção que  parece ecoar o inconsciente “coletivo” e “arquetípico’ de Jung. Para acomodar esse estrato do psiquismo diferente do inconsciente reprimido, Spielrein propõe a existência do “subliminar”, uma outra região do aparelho psíquico, além das estabelecidas por Freud (Consciente, Pré-consciente e Inconsciente).

O ego estaria dividido e conflituado permanentemente entre o desejo de se preservar e de se fundir no magma materno. A progressiva perda da discriminação e mergulho nesse todo indiscriminado, no “reino das mães”, está na origem na produção da obra de arte e da psicose.

 A destruição – tal como entende Spielrein - está mais ligada a esse retorno ao indiscriminado, o mergulho de volta à mãe, o que aponta para situações de transformações e recriações, renascimento. É nesse sentido que fala “a destruição como origem do devir”. A meu ver, é uma visão diferente daquela expressa por Freud, centrada na manifestação da destrutividade, da agressividade, da violência, do efetivo aniquilamento que não tolera a manifestação da vida.  

Ao teorizar sobre o complexo de dissolução do ego no magma originário, Spielrein está sublinhando a importância primordial da mãe nos processos de constituição do sujeito.

Embora a identificação primária com a mãe já fosse formulada e intuída por vários analistas que trabalhavam com a esquizofrenia e a psicose maníaco- depressiva - como Abraham, Bleuler, Jung e Landauer, Cromberg acredita que a contribuição de Spielrein foi decisiva para fortalecer essa vertente do pensamento psicanalítico, que se manifesta na obra do próprio Freud a partir de 1920, na obra de Melanie Klein  e na de Lacan, ao falar do “complexo do desmame”, do “estágio do espelho” e do que chama de “primeira fase do Édipo”, quando há uma alienação – identificação – com o desejo da mãe.   Segundo Cromberg, as formulações de Pontalis sobre a identificação primária com a mãe, são as que mais se aproximam da contribuição fundamental teórica de Spielrein: “(...) ali onde o sujeito só se sente existir numa relação secreta, apaixonada, com o objeto primário amado-odiado  de maneira igualmente desmedida. Esse objeto, esse lugar de atração e repulsa inextricavelmente unidas, para dar-lhe um nome, nós o chamaremos “mãe arcaica” e o fato é que ele certamente tem a ver com a mãe, porém menos com sua figura real ou imaginária do que com seu desconhecido íntimo, que não é seu desejo, mas aquilo que a ocupa por dentro e fica eternamente fora de qualquer alcance; é o inacessível, o inconquistável, mas do que o perdido, ao qual não há como renunciar”(p.314).

Cromberg estabelece um permanente diálogo com Freud e Spielrein, comparando e cotejando as opiniões dessa com as posteriores formulações lapidares de Freud, ao mesmo tempo em que expressa suas próprias ideias. 

Nesse sentido, é importante a forma como Cromberg enfatiza a importância da questão da feminilidade em psicanálise. A seu ver, após um “namoro com o falicismo de uma posição masculina que lhe permitiu acesso ao simbólico e direitos civis e sociais”, a mulher caminha para uma “positivação de sua feminilidade, a uma vivência do gozo feminino como outro, como regenerador, criador em si e sua feminilidade não mais confinada ao exercício fálico da maternidade. Essa passa a ser valorizada como paradigma de potência criadora e alimentadora” (p. 350).

 

(*) Publicado na revista IDE da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – número  60 – 2º. Semestre 2015


TOP