Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Julho de 2015 - Vol.20 - Nº 7 Psicanálise em debate SOBRE A MENTIRA
Sérgio
Telles A universalidade da mentira é afirmada por Koyré quando diz: “Certamente, o homem é definido por sua capacidade de falar, da qual decorre a possibilidade de mentir; e - com licença de Porfírio – é a mentira, muito mais do que o riso, o que caracteriza o homem”. Um tipo especial de mentira salta aos olhos de qualquer um no Brasil de hoje, a mentira política. Desmandos do governo e escândalos comprovados se sucedem de forma vertiginosa, suscitando do poder respostas que nos fazem recorrer novamente a Koyré, quando dizia: “Nunca houve tanta mentira como em nossos dias. Nunca a mentira foi tão desavergonhada, tão sistemática, tão ininterrupta”. Koyré escreveu seu livro “The Political Function of the Modern Lie”[1], fonte das citações acima, no inicio dos anos 40, quando a manipulação da linguagem e os mecanismos da propaganda política realizada por nazistas estavam no auge. Nessa
mesma linha é o livro “A Violação das Massas pela Propaganda Política” de
Serguei Tchakhotine[2],
um dos maiores estudiosos das técnicas de controle de massa usadas pelos
nazistas. Seu livro foi censurado na URSS, que assim tacitamente admitia fazer uso
dos mesmos métodos. No livro, Tchakhotine descreve os discursos repetitivos,
simplistas, uniformes e maniqueístas (“nós” contra “eles”, “bons” e “maus”, “pais”
e “filhos”), que apelam ora para a persuasão, ora para a emoção, manipulando
afetos básicos, como a agressividade, a sexualidade, as ligações grupais e
familiares. Difundidos amplamente, tais discursos desinformam a população ao negar
os fatos e criar ficções que substituem a incômoda realidade. No nazismo, o uso
de signos, hinos e insígnias estabelecia identificações coletivas. Provocando
fascinação, as grandes encenações teatrais das multidões, os cenários e a
retórica eram instrumentos para excitar a violência das massas ou deixá-las submissas,
sob controle. Pode parecer exagero comparar a propaganda do governo com os procedimentos de controle de massa totalitário, mas o discurso de ambos tem semelhanças marcantes. Não é à toa que João Santana, o marqueteiro-mor do PT, declarou em entrevista que Serguei Tchakhotine era “um de seus autores prediletos no marketing político”[3]. Quem sabe a incongruente aplicação de técnicas de controle totalitário de massa numa democracia, ainda que jovem e titubeante como a nossa, talvez explique o impasse atual do PT, o dissociação desastrada de sua comunicação com a sociedade, a rejeição que provoca em crescentes parcelas da população. Mas é preciso lembrar que a mentira política, exacerbada ao
máximo nos regimes totalitários, é parte inalienável do discurso político em
geral, como diz Hanna Arendt[4]:
“As mentiras
sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do
ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista. Por que será assim?
O que isso significa quanto à natureza e dignidade do campo político por um
lado, quanto à natureza e dignidade da verdade e da boa fé por outro lado?”. Arendt
acredita que na modernidade teria havido uma mutação na história da mentira,
pois ela tornou-se “completa e definitiva” no campo político, tendo chegado a
um extremo que transforma a própria história em mentira absoluta: “A possibilidade da mentira
completa e definitiva, que era desconhecida em épocas anteriores, é o perigo
que nasce da manipulação moderna dos fatos. (...) A tradicional mentira
política, tão proeminente na história da diplomacia e dos negócios de estado,
costumava dizer respeito ou a verdadeiros segredos – dados que nunca haviam
sido expostos ao público – ou intenções (...) Ao contrário, as mentiras
políticas modernas lidam eficientemente com coisas que definitivamente não são
segredos e sim conhecidas praticamente por todos. Isso é óbvio no caso em que
se reescreve a história contemporânea na frente daqueles que a testemunharam”. Os
acontecimentos políticos atuais ilustram à perfeição essa afirmação. A mentira política tem um equivalente no campo da economia, que é a propaganda comercial, como diz Koyré. Usando conhecimentos da psicologia comportamental e da psicanálise, ela faz promessas irrealísticas para estimular o consumo. Com ela convivemos cotidianamente sem lhe oferecer nenhuma oposição efetiva. Todos sabemos que quase sempre ela é abusiva e enganosa. “Mesmo assim” seguimos seus apelos, como diz Manoni[5]. Derrida, em “História da mentira – prolegômenos”[6], entende a mentira como uma contingência humana, indissociável das práticas sociais. Discriminando-a do erro e da ignorância, afirma que o contrário da mentira não é a verdade e sim a veracidade, o querer falar a verdade, o não querer enganar. Mentir, então, se caracteriza pelo deliberado empenho de enganar o outro. Derrida dá continuidade a um fundamental debate filosófico sobre a mentira, cujos protagonistas foram Kant, Benjamin Constant e Schopenhauer[7]. Enquanto Kant, a partir de seu imperativo categórico, afirmava que não se deve mentir em nenhuma circunstância pois isso abalaria o contrato social, Benjamin Constant retrucava, afirmando que esse princípio geral abstrato, apesar de correto, não podia ser aplicado sem levar em conta as inúmeras situações que autorizam o uso da mentira, especialmente nos casos em que a ameaça concreta exercida pela coerção, a força e o poder do outro não dão alternativas ao sujeito. Para salvar sua vida, o sujeito tem o direito, senão o dever, de mentir. Essa defesa ao direito à mentira recebe um reforço significativo com Schopenhauer, que, baseando-se no pessimismo antropológico de Hobbes, mostra que o estado natural entre os homens não é o desejo de paz e harmonia e sim a guerra de todos contra todos. Em sendo assim, frente às ameaças sempre iminentes que os outros representam, o sujeito deve usar de todas as armas para se defender, entre elas a astúcia e a mentira. Numa chave menor, não se pode negar que a chamada “mentira piedosa” é um lubrificante nas emperradas engrenagens do relacionamento pessoal, facilitando o contato entre nós, eternos porcos-espinhos, que nos ferimos tanto em nossa busca da tão almejada intimidade e proximidade com o outro. A questão da mentira adquire uma maior complexidade quando se introduz a dimensão do inconsciente. Levando-se em conta as distinções propostas por Derrida, não se pode dizer que o sujeito mente para si mesmo. Seria mais apropriado afirmar que o sujeito vive em estado de erro e ignorância, em permanente engano, por estar estruturalmente impossibilitado de conhecer uma importante dimensão de seu próprio psiquismo. Na clínica, mentira e verdade são categorias que o analista deixa
em suspenso, pois procura interpretar os conteúdos inconscientes que emergem no
discurso do analisando. O analista sabe que a “verdade” e a “realidade” trazidas pelo analisando estarão sempre distorcidas
por seus desejos e fantasias, embora seja decisivo para o andamento da análise que
ele possa aferir o nível dessas distorções, se neurótico ou psicótico. Ao explicar para o analisando a regra básica da livre associação, Freud estabelecia a dimensão ética do contrato analítico. Cabe ao analisando dizer tudo aquilo que lhe ocorra na mente no correr da sessão, sem impedimentos. Ou seja, não deve mentir, deve falar a verdade. Compete ao analista ouvir sem desaprovação ou censura moral e procurar interpretar [8]. Sabemos que ao tentar seguir tal orientação, o analisando se depara com a impossibilidade de cumpri-la à risca, pois é justamente então que se erguem todas as barreiras resistenciais, especialmente as transferenciais. Essa dificuldade não é um empecilho ao trabalho analítico, é parte importante do próprio trabalho - a analise dos mecanismos de defesa. Paradoxalmente, no momento em que o paciente pode finalmente cumprir plenamente com a regra fundamental da associação livre ele está em condições de alta, pois foram integradas todas as partes reprimidas, cindidas, negadas, e ele pode agora transitar internamente sem maiores obstáculos, sem precisar produzir e alimentar sintomas para dar vazão a seus conflitos internos. Ao analista interessa a verdade do desejo do analisando e que ele (analisando) a reconheça como tal. Isso significa que o analisando saiba lidar com seus próprios desejos sexuais e agressivos, sem mais necessitar projetá-los no outro, nem se submeter aos mandatos sádicos do superego e do ideal do ego. O reconhecimento da onipresença multifacetada da mentira nas relações humanas não anula sua conotação perversa e menos ainda a necessidade de contrapor-lhe a verdade. (*) Artigo publicado na revista “Percurso”, no. 53 – 2015 [1] Koyre, Alexander, “The Political
Function of the Modern Lie” - Contemporary Jewish Record – Vol. VIII, 1945, The
American Jewish Committee – NewYork, NY, disponivel na rede em: https://nasepblog.files.wordpress.com/2012/08/koyre-the-political-function-of-the-modern-lie-1945.pdf [2] Disponível na rede em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/violacao.html [3] http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2013/10/bjoao-santanab-o-homem-que-elegeu-seis-presidentes.html [4] Arendt, Hanna – “Entre o passado e o futuro” – capítulo “Verdade e política” – Editora Perspectiva – São Paulo – 7º. Edição, 352p. [5] Manoni, O. – “Chaves para o imaginário” – Editora Vozes, Petrópolis, 1973, p.9-34 [7] Puente, Fernando Rey (organizador) – “Os filósofos e a mentira”- Editora UFMG, Belo Horizonte, 2002, 85p. [8] Thompson, M. Guy, “The Ethics of
Psychoanalysis: an introduction”, Psychoanalytic Review, 86 (4), August 1999
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