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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Junho de 2015 - Vol.20 - Nº 6

Psicanálise em debate

UM HOMEM, UMA MULHER

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

A capacidade de transcendência do ser humano. O lutar para transformar a realidade. A não acomodação com o que parece ser o destino imutável e irreversível. O enfrentar obstáculos e superá-los. A coragem de desafiar limites impossíveis de ser transpostos. O empenho em conseguir um determinado objetivo.

São características e qualidades altamente valorizadas, indispensáveis para a consecução de grandes conquistas na ciência, na arte, na busca do conhecimento, no anseio de autoafirmação.

Pensaríamos o mesmo quando o que está em jogo é a própria sexualidade, o próprio gênero?

É o que me fez pensar ao ver essas duas fotos.  À esquerda, Lea T, o transexual brasileiro filho de Toninho Cerezo que, em 201l, foi colocado entre as 50 top models do mundo e que posteriormente fez a cirurgia para mudança do sexo. À direita, Aidyan Dowling, uma transexual feminina que há poucos dias ingressou no disputado concurso, que se encerra em novembro próximo, para ser a capa da conhecida revista norte-americana “Men’s Health”, onde homens exibem o abdome “tanquinho”, sarado em muitas horas de academia. Aidyan não fez ainda a cirurgia definitiva.

Esses personagens que se consomem numa luta ininterrupta contra o corpo até plasmá-lo dentro de uma imagem ideal levantam uma grave questão – exercem eles um direito que deve ser respeitado ou estão mergulhados numa ilusão que deveria ser interpretada?

Não é fácil responder à pergunta sem se emaranhar num cipoal de princípios, convicções, preconceitos, concepções de mundo. Mas a complexidade da questão não deveria nos impedir de pensá-la, não só examinando as dimensões jurídicas, médicas e políticas nela envolvidas, como também as teorias psicanalíticas.

As modificações no corpo do transgênero não seriam possíveis sem o concurso da medicina. O ponto central aqui seria enfatizar que o fato de ser tecnicamente possível realizar determinadas intervenções no corpo humano não deve ser confundido com a autorização ética e humanitária que a legitimaria. 

A moral e a lei, inseguras sobre os benefícios ou malefícios que tais práticas teriam no tecido social, hesitantemente deixam que elas abandonem a clandestinidade e saiam à luz do dia.   

É inegável que muitas vezes o contexto social responde com extrema violência ao transexual, a ponto de colocar em risco sua integridade física ou mesmo sua vida.

O temor expresso nessa reação tem raízes profundas. A personalidade de cada um é como uma colcha de retalhos de identificações constitutivas que se estabelecem na infância e que continuam a se acumular no correr da vida, disso decorrendo inclusive a identidade sexual.  Essa colagem é permanentemente reforçada pelos estereótipos calcados nas representações socioculturais dos sexos. Caso essas representações fiquem debilitadas, surge o pânico de que a colagem identificatória se desfaça deixando o sujeito desorganizado, confuso, sem referenciais fixos e estruturantes. Sob esse prisma, a figura do transexual pode ser vista por alguns como ameaçadora, pois evoca a possibilidade de infirmar suas próprias identidades sexuais. 

No que diz respeito aos próprios transexuais, muitas interrogações se abrem. Como terão se constituído suas identificações, como terá se instalado a implacável imagem de um corpo ideal que se opõe à realidade do próprio sexo? Terá sido pago um preço alto demais moldar o corpo numa evanescente  imagem idealizada do sexo oposto?    

Observando as fotos de Lea T e Aidyan Dowling, penso no quanto de sofrimento físico e mental terá sido enfrentado para que uma realidade incontornável fosse aparentemente vencida. Estariam eles mais felizes ao realizarem a tão esperada transformação ou teriam se dado conta de que a completude buscada é um sonho inalcançável?


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