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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

Dezembro de 2015 - Vol.20 - Nº 12

Psiquiatria Forense

PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) JULGOU CONSTITUCIONAL A CONCESSÃO DE INDULTO A SUJEITO SUBMETIDO À MEDIDA DE SEGURANÇA

Quirino Cordeiro (1)
Rafael Bernardon Ribeiro (2)
Hilda Clotilde Penteado Morana (3)

(1) Psiquiatra Forense; Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Professor Afiliado do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Coordenador do Grupo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica da EPM-UNIFESP

(2) Psiquiatra Forense; Professor Instrutor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Assessor da Chefia de Gabinete da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo

(3) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP; Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo


O indulto presidencial é uma tradição brasileira publicada anualmente, por meio de um Decreto Federal, à época do Natal, daí o nome que recebe de indulto natalino. Essa benesse é uma herança portuguesa, que foi incorporada na primeira Constituição brasileira, datada de 1824, sendo hoje uma prerrogativa presidencial prevista nessa mesma legislação1. Em 2008, o indulto presidencial, que antes era restrito aos criminosos que eram condenados e apenados, foi estendido também para pacientes submetidos à medida de segurança, de acordo com o Decreto 6.076, como segue abaixo:

Art. 1º - É concedido indulto: VIII - aos submetidos a medida de segurança que, até 25 de dezembro de 2008, tenham suportado privação da liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei 7.210, de 1984, por período igual ao tempo da condenação, mantido o direito de assistência nos termos do art. 196 da Constituição.2 

Então, desde 2008, a possibilidade de concessão de indulto presidencial para pacientes em medida de segurança tem sido renovada todos os anos.

Segundo o Código Penal Brasileiro, de 1940 e revisado em 1984, quando o réu é incapaz de entender o caráter ilícito de sua ação ou omissão, ou incapaz de autodeterminação de acordo com tal entendimento, é considerado inimputável:

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.3

Em contrapartida, o atual sistema penal brasileiro, denominado de vicariante ou unitário, prevê que, ao imputável, uma vez provada a acusação, deve ocorrer a condenação e a pena consequentemente deve ser aplicada.

Já, no caso do inimputável deve ser aplicada a medida de segurança, sendo o agente absolvido de maneira imprópria. Desse modo, o sujeito não é apenado, já que medida de segurança é uma sanção penal, porém não é pena.

No que tange às medidas de segurança, elas são classificadas em detentivas e restritivas. O agente inimputável, que teria como pena a reclusão/prisão, caso fosse apenado, uma vez tendo a sua periculosidade presumida por lei, deverá ser internado (medida de segurança detentiva). Se, por seu turno, o crime possuir como pena a detenção, o indivíduo poderá receber tratamento ambulatorial, a critério do juízo (medida de segurança restritiva):

Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação. Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.3

Em seu Art. 98, o Código Penal brasileiro coloca ainda a possibilidade de aplicação de medida de segurança aos que apresentam “perturbação de saúde mental”, como por exemplo os psicopatas, por considerá-los semi-imputáveis:

Art. 98 - Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo anterior e respectivos §§ 1º a 4º.3,4

De acordo ainda com o Código Penal brasileiro, há cessação da medida de segurança, e do consequente tratamento psiquiátrico compulsório que a acompanha, somente após a realização de avaliação médica pericial. Isso, pois há necessidade de verificar se o indivíduo apresenta condições clínicas para retomar seu convívio, precisando passar, assim, por avaliação psiquiátrica pericial para tanto:

Art. 97 - § 1º: A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade.3

No entanto, como apresentado acima, a partir de 2008, com a promulgação do Decreto Federal que passou a indultar pacientes em medida de segurança, não houve mais necessidade da realização de avaliação médica para a cessação da medida de segurança e consequente alta hospitalar dos pacientes que a cumprem em regime de internação2. Assim sendo, sujeitos em medida de segurança podem sair dos Hospitais de Custódia sem necessidade de qualquer tipo de avaliação técnica sustentando tal situação.

Já há algum tempo o indulto presidencial para pacientes em medida de segurança tem sido confirmado pelas cortes superiores do país. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no julgamento do Agravo em Execução 70033455783/2009, manifestou-se pela legitimidade da extensão do indulto aos internados em cumprimento de medida de segurança, nos termos do Art. 1º, inciso VIII, do Decreto natalino 6.706/1998. De acordo com seu entendimento, não haveria restrição constitucional à concessão de indulto pelo Presidente da República aos sujeitos submetidos à medida de segurança, uma vez que esta é um tipo de sanção penal e, por isso, fica sujeita ao limite temporal de cumprimento do Art. 75 do Código Penal. Diante disso, foi interposto recurso extraordinário no Superior Tribunal de Justiça, com base no Art. 102, inciso III, alínea a, da Constituição da República, contra a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No entanto, a decisão da Ministra Carmen Lúcia negou seguimento ao recurso interposto, em agosto de 2010.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em Acórdão publicado em 19 de julho de 2011, proferido pela 16ª Câmara de Direito Criminal, decidiu favoravelmente ao indulto para indivíduo em medida de segurança hospitalar. A seguinte argumentação sustentou a decisão:

(...) Não há que se falar em inconstitucionalidade de tal dispositivo, pois a exemplo do anterior Decreto 6.706/08, o Decreto em comento manteve a inovação de permitir o indulto aos sentenciados em medida de segurança, desfazendo assim a tendência de concessão somente àqueles que cumprem pena privativa de liberdade. Cabe ressaltar, por oportuno, que a legislação pátria, nos termos do inciso XLVII, do artigo 5º, da Lei Maior, veda o caráter perpétuo das penas, ressaltando-se que, conforme lição do I. Professor Celso Delmanto e outros, na obra “Código Penal Comentado”, “As medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis ou semi-imputáveis, de internação ou tratamento ambulatorial (arts. 96 e ss.), regem-se, no que couber, pelos mesmos postulados da pena (LEP, artigo 42), mesmo porque, em sua essência, têm natureza de pena” (7ª edição, p. 127).

Acórdãos posteriores também mantiveram essa mesma posição frente ao indulto para indivíduos em medida de segurança. No Superior Tribunal de Justiça, a Quinta Turma concedeu de ofício habeas corpus em favor de sujeito que, após ter cometido homicídio, foi absolvido, com imposição de medida de segurança. A Quinta Turma não conheceu do habeas corpus impetrado pela defesa, mas determinou, de ofício, que o juízo das execuções analisasse a situação do indivíduo à vista do Decreto Presidencial, que concedeu indulto em 2011.

No entanto, apesar dos posicionamentos das cortes superiores apresentadas acima, não tem havido unanimidade sobre o tema. No ano de 2014, um grupo de psiquiatras do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo enviou proposta ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), com o objetivo de abolir o indulto presidencial para pacientes em medida de segurança. Outros segmentos sociais também têm se mostrado preocupados com essa situação. O Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (CAO-CRIM), no ano de 2014, também defendeu a supressão da medida de segurança do Decreto de indulto presidencial, de acordo com o texto que segue:

A sanção penal é gênero da qual são espécies pena e medida de segurança, que possuem natureza jurídica diversa. Como cediço, a aplicação da medida de segurança se alicerça em um juízo positivo de periculosidade, e a sua execução deve se estender até a cessação da periculosidade. A concessão de indulto àqueles que cumprem medida de segurança significa a interrupção abrupta do tratamento de pessoas que se mostram perigosas à coletividade, o que implica provável regressão do estado psíquico, colocando-as em risco, assim como os demais membros da sociedade. Ademais, cumpre ressaltar que o STF reconheceu a existência de repercussão geral em Recurso Extraordinário no qual é discutida justamente a amplitude do poder conferido ao Chefe de Estado para a concessão de indulto aos sentenciados em cumprimento de medida de segurança. Diante do quanto exposto, e por se tratar de matéria pendente de análise pela Suprema Corte, conforme RE nº 628.658/RS, salutar a não concessão do indulto àqueles que cumprem medida de segurança.6

Vale ressaltar que no Recurso Extraordinário, comentado na manifestação acima do Ministério Público do Estado de São Paulo, foi justamente contestada a extensão dos poderes conferidos ao Presidente da República pelo Art. 84, XII, da Constituição da República, para indultar pacientes submetidos à medida de segurança7.

O fato é que, ao longo das últimas edições do Decreto de indulto presidencial, as normas para a concessão desse instituto jurídico têm sido cada vez mais abrangentes. Assim, a concessão de indulto presidencial a pacientes em medida de segurança não é o único despautério do Decreto. Vários problemas técnicos e jurídicos têm surgido para a concretização das várias possibilidades de aplicação de indulto na execução penal.

No entanto, no dia 05 de novembro deste ano de 2015, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, considerou constitucional o indulto presidencial concedido aos indivíduos submetidos à medida de segurança. De acordo com o entendimento do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 628.658/RS (já apresentado acima), com repercussão geral conhecida, a medida de segurança, apesar de não ser pena, também é medida de natureza penal, portanto também pode ser sujeita ao indulto. O Plenário da Corte fixou o que segue: “Reveste-se de legitimidade jurídica a concessão pelo presidente da República do benefício constitucional do indulto – Constituição Federal, artigo 84, XII – que traduz expressão do poder de graça do Estado, mesmo se se tratar de indulgência destinada a favorecer pessoa que, em razão de sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade, sofre medida de segurança, ainda que de caráter pessoal e detentivo”. Segundo o relator do Recurso Extraordinário, ministro Marco Aurélio Mello, “o Presidente da República, ao implementar o indulto a internados em medida de segurança, nos moldes do Decreto 6.706/1998, não extrapolou o permissivo constitucional”. No caso julgado, o Ministério Público do Rio Grande do Sul havia recorrido ao STF contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). O Ministério Público alegava que a medida de segurança trata-se de medida de natureza terapêutica, cuja aferição depende de avaliação técnica. Assim sendo, com o julgamento, foi negado provimento ao recurso do Ministério Público8.

Vale ressaltar, no entanto, que o Decreto Presidencial de Indulto para sujeitos em medida de segurança, bem como as decisões dos tribunais superiores levantam questões importantes, que merecem ser discutidas pela comunidade psiquiátrica e jurídica do país. Em primeiro lugar, os pacientes em medida de segurança são enviados para um Hospital de Custódia para tratamento, e não para castigo. Sob o aspecto legal (Código Penal e Lei 10.216/2001, que é a lei regulamentadora da assistência em saúde mental no país), é garantido aos doentes mentais o direito a tratamento, de acordo com suas necessidades específicas5. Assim, o paciente em medida de segurança internado em Hospital de Custódia, supõe-se, está em processo terapêutico. A lógica é de tratamento, e não de punição. Assim sendo, indultar paciente psiquiátrico durante um tratamento médico em Hospital de Custódia equivale a retirar de hospital convencional paciente com doença clínica em evolução (por exemplo, pneumonia, infarto ou diabetes descompensada), sem alta médica. Nessa situação, o prejuízo é do paciente. Ademais, os critérios do indulto presidencial são objetivos, e não fazem diferença entre o paciente pouco ou nada agressivo, como um psicótico controlado, e o paciente com transtorno de personalidade grave, psicopata, agressor sexual ou matador em série, que apresenta grave risco para o conjunto social. Nessa situação, o prejuízo é da sociedade.

Outro aspecto que vale a pena ser apresentado neste artigo é que muitos magistrados que indultam indivíduos em medida de segurança têm oficiado as Secretarias Estaduais de Saúde para que os indultados saiam dos Hospitais de Custódia e sejam encaminhados para hospitais psiquiátricos comuns. Na verdade, tal situação na prática não muda em nada a situação do paciente indultado, pois, apesar de receber a benesse legal, não ganha a liberdade de fato. É uma verdadeira hipocrisia. Ora, se o magistrado está convencido de que determinado sujeito pode ser indultado, pois que o ponha em liberdade, não arrumando subterfúgios para mantê-lo ainda apartado do convívio social. Já do ponto de vista do sistema de saúde, tal situação acaba expondo a extremo risco pacientes e funcionários de hospitais psiquiátricos comuns, por conta da obrigatoriedade do convívio com pacientes forenses graves, em ambientes hospitalares inapropriados para tanto. Isso demonstra uma postura, no mínimo, irresponsável por parte de algumas autoridades judiciais.

Diante do exposto acima, o fato de o STF ter julgado constitucional a concessão de indulto a indivíduos em medida de segurança acaba legalizando a grande sorte de absurdos que tem envolvido o tema no país.

 

 

Referência Bibliográfica:

1.       Ribeiro RB, Cordeiro Q, Taborda JG. Presidential pardon and mentally ill offenders detained in forensic hospitals. Rev Bras Psiquiatr. 2014;36:95.

2.       Brasil, Presidência da República, Casa Civil. Decreto 6.706 [Internet]. Diário Oficial da União, 22 dezembro 2008. [cited 2015 Dez 18]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6706.htm

3.       Brasil, Presidência da República, Casa Civil. Lei 7.209 [Internet]. Diário Oficial da União, 11 julho 1984. [cited 2015 Dez 18]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7209.htm

4.       Cordeiro Q, Lima, MGA. Medida de segurança: uma questão de saúde e ética. São Paulo: CREMESP; 2013.

5.       Brasil, Presidência da República, Casa Civil. Lei 10.216 [Internet]. Diário Oficial da União, 6 abril 2001. [cited 2015 Dez 18]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

6.       Ministério Público do Estado de São Paulo, Núcleo de Comunicação Social. MP-SP apresenta sugestões para a concessão do indulto 2014 para condenados [Internet]. 2014 Aug 25 [cited 2015 Dez 18].

          http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/noticias/noticia?id_noticia=12338577&id_grupo=%20118&id_style=1

7.       Brasil, Presidência da República, Casa Civil. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. 1988 Oct 5 [cited 2015 Dez 18]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

8.  Supremo Tribunal Federal. [Internet]. 2015 Dec 05 [cited 2015 Dez 18]. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=303260


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