Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Setembro de 2015 - Vol.20 - Nº 9 Psiquiatria Forense POTENCIAIS IMPLICAÇÕES FORENSES DOS TRANSTORNOS NEUROCOGNITIVOS NO ÂMBITO DAS PERÍCIAS CRIMINAIS
Gabriela de Moraes Costa Introdução A avaliação da imputabilidade ou responsabilidade
penal nos portadores de Transtornos Neurocognitivos é
um tema de crescente interesse para a psiquiatria e para os operadores do
direito. O julgamento da presença de declínio em habilidades e sua interação
com o comportamento criminal impõem grandes desafios ao perito, frente à
complexa natureza dessas avaliações, as quais tornar-se-ão
cada vez mais frequentes mediante o acelerado
envelhecimento populacional. No presente manuscrito serão discutidos aspectos
relevantes no âmbito das perícias criminais, envolvendo potenciais implicações
forenses de alguns desses transtornos. Transtornos
neurocognitivos Estima-se que o número de indivíduos acima dos 65 anos
de idade no mundo irá aumentar de 524 milhões em 2010 para cerca de 1,5 bilhão em 2050, com o maior crescimento ocorrendo nos
países em desenvolvimento (WHO, 2011). Nessa
esfera, a categoria dos Transtornos Neurocognitivos
terá dramático impacto. Tais patologias são descritas na quinta edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - 5) e englobam os
seguintes transtornos (APA, 2013): · Delirium · Transtorno
neurocognitivos leves · Transtornos
neurocognitivos maiores O Delirium é uma
síndrome cerebral orgânica aguda, transitória, de início súbito e tendendo a um
curso flutuante ao longo do dia; caracteriza-se por piora global da cognição,
redução do nível de consciência e déficit atencional,
podendo haver alteração da atividade motora e/ou desordem do ciclo sono-vigília
(INOUYE et al, 2014). Em todas as patologias acima, o sujeito apresenta
déficits na função cognitiva, em maior ou menor grau, os quais são adquiridos,
em vez de transtornos do desenvolvimento. Assim, a disfunção cognitiva, central
ao diagnóstico, representa um declínio em relação ao funcionamento cognitivo
prévio. Ressalta-se, ainda, que tais transtornos podem ou não serem
acompanhados de prejuízo funcional. É justamente a presença de interferência na
independência para a realização das atividades de vida diária o que diferencia
um transtorno neurocognitivo leve de um maior (esse
último também denominado demência) (APA, 2013). Conforme enfatiza a Associação Psiquiátrica Americana,
os Transtornos neurocognitivos são únicos entre as
categorias do DSM-5, na medida em que são síndromes para as quais a etiologia
subjacente, não raro também a etiologia, pode ser potencialmente determinada.
Por exemplo, os Transtornos leves e maiores podem dever-se aos seguintes (APA,
2013): · Doença de Alzheimer · Degeneração lobar frontotemporal · Doença vascular · Doença com corpos de Lewy · Doença de Parkinson · Lesão cerebral traumática · Infecção por HIV · Decorrentes do uso de
substância/medicamento · Doença de Huntington · Doença priônica
· Outra condição médica Atividade
criminal e transtornos neurocognitivos A associação entre Transtornos Neurocognitivos
e comportamentos transgressores é fruto de fatores individuais e contextuais,
os quais vão desde a presença de crítica de morbidade e adesão ao tratamento,
até a disponibilidade e qualidade de tratamento psiquiátrico, suporte social e
segurança pública. Nesse continuum, o Transtorno Neurocognitivo
pode ser visto como um facilitador de comportamento criminoso, mas não, por si
só, como gerador deste.
(MYNEN G, 2013) Acentua-se que cada caso deve ser minuciosamente
estudado, em função da grande variabilidade clínica encontrada nesses
transtornos, acompanhados de maior ou menor grau de comprometimento das funções
mentais, podendo ou não influenciar a prática criminosa e atuar como
modificadores da responsabilidade penal. No entanto, somente a concomitância de
prejuízo nas capacidades intelectiva e volitiva tem o condão de gerar a
inimputabilidade. (MYNEN
G, 2013) Ao proceder-se à perícia de imputabilidade penal nos
portadores Transtornos Neurocognitivos, deve-se
verificar a presença dos seguintes fatores (MYNEN G, 2013; TABORDA, JGV &
CHALUB, 2012): · Informações acerca da
biografia do réu e análise de seus prontuários médicos · Comportamento do réu à época
do delito · Documentos policiais e
relatos de testemunhas informando a presença de determinadas características do
ato criminoso: a) subtaneidade da ação b) ferocidade em sua execução c) curta duração ou término brusco d) ausência de cúmplice e) ausência de ocultação de evidências f) presença de automatismos g) reminiscências mnêmicas confusas ou parciais
dos fatos ao tempo de seu acometimento ou logo após o mesmo h) alterações no nível de consciência i) comportamento bizarro, imprevisível ou desorganizado j) presença de dissimulação k) presença de remorso l) ausência de motivos plausíveis m) ausência de premeditação Não raras vezes a literatura tem associado um
comportamento violento pretérito a atos violentos futuros. Ainda que tal
correlação deva ser apreciada, em populações geriátricas atos infracionais violentos são comumente cometidos em
indivíduos sem histórico de violência. Nesses casos são correlatos os delitos e
os Transtornos Neurocognitivos, principalmente na
vigência de sintomas delirantes (LEWIS
et al,
2006). Delírios
são notórios fatores de risco para a prática de crimes violentos. Por exemplo,
o epônimo Síndrome de Othello,
originado da tragédia Shakespeariana, faz referência aos delírios de
ciúmes e infidelidade, sintomas amiúde presentes nos Transtornos Neurocognitivos e implicados em diversos crimes. Os
Transtornos Neurocognitivos maiores ou leves Frontotemporal ou Devidos à Doença de Alzheimer são os mais
comumente associados a delírios dessa ordem, com implicações em ameaças e
homicídios perpetrados contra o cônjuge, o rival ou pessoas consideradas
cúmplices do suposto traidor (CIPRIANI G et
al, 2012). Portadores de lesões no córtex pré-frontal ventromedial ou orbitofrontal
podem apresentar níveis elevados de agressividade e descaso com as regras
sociais e morais, pressupondo-se que essas áreas sejam importantes correlatos
neuronais da conduta moral. Quando restarem evidentes a relação cronológica
entre a lesão cerebral e o comportamento aberrante do examinando, levando à prática
do ato delitivo e estando abolidas as capacidades cognitivas e volitivas, o
mesmo poderá vir a ser considerado inimputável (CIARAMELLI E et al,
2007). Os
psiquiatras forenses Dr. Hindley Nick e Harvey
Gordon do renomado hospital forense inglês de segurança máxima Broadmoor demonstraram os principais fatores
associados à conduta heteroagressiva em portadores
de Transtornos Neurocognitivos
maiores (HINDLEY & GORDON, 2000): · Evidência de disfunção em lobo
frontal, incluindo mudanças na personalidade e tendência a comportamentos
desinibidos ou antissociais · Abuso de álcool · Toxicidade medicamentosa · Transtornos clínicos ou
psiquiátricos graves comórbidos · Presença de sintomas psicóticos,
em especial de ordem paranoide · Evidência de disfunção em lobo temporal · Conflitos interpessoais atuais · Mudanças súbitas no ambiente do
paciente · Episódio grave de agressão a
terceiros após início do processo demencial Acerca
dos Transtornos Neurocognitivos leves e maiores
induzidos por medicamento, destacam-se os indutores do sono
não-benzodiazepínicos ou drogas Z, como o zolpidem.
Esses medicamentos têm sido vistos como potencialmente mais seguros do que os
benzodiazepínicos e, portanto, vêm sendo amplamente utilizados no tratamento da
insônia, especialmente em populações geriátricas. Todavia, exercem efeitos
consideráveis sobre as habilidades psicomotoras e visuoespaciais,
como atenção sustentada, atenção seletiva, velocidade de processamento,
planejamento, flexibilidade cognitiva, percepção visual, práxis e gnosia. Ademais, os prejuízos provocados pelo zolpidem na cognição podem se estender além da meia-vida do
fármaco (em torno de 2,5 horas) (GUNJA, 2013; BOCCA et al, 2011). A literatura
forense relata diversos casos de alegação de diminuição da capacidade de entendimento
e/ou determinação decorrente de delirium
hiperativo induzidos por fármacos como o zolpidem,
ingeridos antes da prática de ações delituosas (incluindo homicídios). Os
perpetradores apresentavam sintomas como: desinibição, alterações sensoperceptivas, agressividade, amnésia anterógrada e
automatismos (GUNJA, 2013; DALEY et
al, 2011). Tais casos configuram um enorme desafio ao
perito, indo desde as dificuldades em comprovar que o autor ingeriu a medicação
antes do crime quando na ausência de testes toxicológicos, até a avaliação das
motivações para o ato criminoso. Assim, é tarefa do
psiquiatra forense investigar se havia desconhecimento dos possíveis efeitos
adversos do fármaco sobre o raciocínio e o comportamento por parte de quem os
ingeriu, a presença do comportamento aberrante involuntário, bem como de
prejuízo na compreensão da ilicitude dos atos, certificando-se do nexo causal
entre os mesmos e a ingesta medicamentosa.
Nesse sentido, a investigação da vida pretérita do sujeito é primordial, englobando
histórico delituoso, relação temporal entre a ingesta
do fármaco e o comportamento apresentado, incluindo, preferencialmente, uma
entrevista com o médico prescritor. Enfatiza-se
a necessária a exclusão pelo perito de outras causas para o crime, abarcando-se
a possiblidade de simulação. (DALEY et al,
2011)
Os
Transtornos Neurocognitivos podem ser vistos como um facilitadores do comportamento criminoso, mas não, por si
só, como geradores deste. Quando restarem
evidentes a relação cronológica entre o Transtorno Neurocognitivo
e o comportamento aberrante do examinando, levando à prática do ato delitivo e
estando abolidas as capacidades cognitivas e volitivas, o mesmo poderá vir a
ser considerado inimputável. (MYNEN, 2013; TABORDA & CHALUB, 2012; DE PÁDUA
et al,
2012) Referências bibliográficas AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION. In: Diagnostic and statistical manual of mental
disorders. 5th ed. Washington (DC): American Psychiatric Press; 2013. BOCCA, ML; MARIE, S; LELONG-BOULOUARD, V; BERTRAN, F;
COUQUE, C; DESFEMMES, T; BERTHELON, C; AMATO, JN; MOESSINGER, M;
PAILLET-LOILIER, M; COQUEREL, A; DENISE, P. (2-11) - Zolpidem
and zopiclone impair similarly monotonous driving
performance after a single nighttime intake in aged subjects. Psychopharmacology (Berl).
214(3):699-706. CIARAMELLI, E; MUCCIOLI, M; LÀDAVAS, E; DI PELLEGRINO,
G. (2007) - Selective deficit in personal moral judgement
following damage to ventromedial prefrontal cortex.
SCAN. 2:84-92. CIPRIANI, G; VEDOVELLO, M; NUTI, A; DI FIORINO, A.
(2012) - Dangerous passion: Othello syndrome and dementia. Psychiatry
Clin Neurosci.
66:467-473. DALEY, C; MCNIEDEL, DE; BINDER, RL.
(2011) - “I did what?” Zolpidem and the Courts. J Am Acad
Psychiatry. 39:535-542. DE
PÁDUA, AC; COSTA, GM; GODINHO, CC; TABORDA, JGV. Transtornos Mentais Orgânicos.
P 319. GUNJA,
N. (2013) - In the Zzz zone: the effects of z-drugs
on human performance and driving. J Med Toxicol.
9:163-171. HINDLEY, N; GORDON, H. (2000) - The elderly, dementia,
aggression and risk assessment. Int. J. Geriat.
Psychiatry.15:254-259. INOUYE, SK; WESTENDORP, RGJ;
SACZYNSKI, JS. (2014) - Delirium in elderly
people. Lancet. 383(9920):911-22. LEWIS, CF; FIELDS, C; RAINEY, E. (2006) - A study of
geriatric forensic evaluees: who are the violent
elderly? J Am Acad Psychiatry Law. 34(3):324-32. MEYNEN, G. (2013) - A neurolaw
perspective on psychiatric assessments of criminal responsibility:
decision-making, mental disorder, and the brain. In J Law Psychiatry.36:93-99. TABORDA,
JGV; CHALUB, M. Perícia de Imputabilidade Penal. In: Psiquiatria Forense. 2ª
ed. Porto Alegre: Artmed; 2012. P 139. WORLD HEALTH ORGANIZATION.
Global Health and Aging. National
Institute on Aging and National Institutes of Health. NIH
Publication no. 11-7737; 2011.
|