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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Setembro de 2015 - Vol.20 - Nº 9

Psiquiatria Forense

POTENCIAIS IMPLICAÇÕES FORENSES DOS TRANSTORNOS NEUROCOGNITIVOS NO ÂMBITO DAS PERÍCIAS CRIMINAIS

Gabriela de Moraes Costa

Psiquiatra (RQE 24476) – Residência médica em Psiquiatria na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (2009-2012); Psiquiatra Forense (RQE 25406) - Residência médica em Psiquiatria Forense na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre/Instituto Psiquiátrico Forense Dr. Maurício Cardoso (2012-2013); Mestre em Farmacologia/Neuropsicofarmacologia – Universidade Federal de Santa Maria - RS (2013-2015); Ex-professor substituto de Psiquiatria – Universidade Federal de Santa Maria - RS (2013-2015); Médica Psiquiatra do Hospital Universitário de Santa Maria - RS (2014-2015); Professora do curso de Medicina do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria - RS (2015)

Introdução

A avaliação da imputabilidade ou responsabilidade penal nos portadores de Transtornos Neurocognitivos é um tema de crescente interesse para a psiquiatria e para os operadores do direito. O julgamento da presença de declínio em habilidades e sua interação com o comportamento criminal impõem grandes desafios ao perito, frente à complexa natureza dessas avaliações, as quais tornar-se-ão cada vez mais frequentes mediante o acelerado envelhecimento populacional.

No presente manuscrito serão discutidos aspectos relevantes no âmbito das perícias criminais, envolvendo potenciais implicações forenses de alguns desses transtornos.

 

Transtornos neurocognitivos

                       

Estima-se que o número de indivíduos acima dos 65 anos de idade no mundo irá aumentar de 524 milhões em 2010 para cerca de 1,5 bilhão em 2050, com o maior crescimento ocorrendo nos países em desenvolvimento (WHO, 2011).

Nessa esfera, a categoria dos Transtornos Neurocognitivos terá dramático impacto. Tais patologias são descritas na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - 5) e englobam os seguintes transtornos (APA, 2013):

·    Delirium

·    Transtorno neurocognitivos leves

·    Transtornos neurocognitivos maiores

O Delirium é uma síndrome cerebral orgânica aguda, transitória, de início súbito e tendendo a um curso flutuante ao longo do dia; caracteriza-se por piora global da cognição, redução do nível de consciência e déficit atencional, podendo haver alteração da atividade motora e/ou desordem do ciclo sono-vigília (INOUYE et al, 2014).

Em todas as patologias acima, o sujeito apresenta déficits na função cognitiva, em maior ou menor grau, os quais são adquiridos, em vez de transtornos do desenvolvimento. Assim, a disfunção cognitiva, central ao diagnóstico, representa um declínio em relação ao funcionamento cognitivo prévio. Ressalta-se, ainda, que tais transtornos podem ou não serem acompanhados de prejuízo funcional. É justamente a presença de interferência na independência para a realização das atividades de vida diária o que diferencia um transtorno neurocognitivo leve de um maior (esse último também denominado demência) (APA, 2013).

Conforme enfatiza a Associação Psiquiátrica Americana, os Transtornos neurocognitivos são únicos entre as categorias do DSM-5, na medida em que são síndromes para as quais a etiologia subjacente, não raro também a etiologia, pode ser potencialmente determinada. Por exemplo, os Transtornos leves e maiores podem dever-se aos seguintes (APA, 2013):

·    Doença de Alzheimer

·    Degeneração lobar frontotemporal

·    Doença vascular

·    Doença com corpos de Lewy

·    Doença de Parkinson

·    Lesão cerebral traumática

·    Infecção por HIV

·    Decorrentes do uso de substância/medicamento

·    Doença de Huntington

·    Doença priônica

·    Outra condição médica

 

Atividade criminal e transtornos neurocognitivos   

 

A associação entre Transtornos Neurocognitivos e comportamentos transgressores é fruto de fatores individuais e contextuais, os quais vão desde a presença de crítica de morbidade e adesão ao tratamento, até a disponibilidade e qualidade de tratamento psiquiátrico, suporte social e segurança pública. Nesse continuum, o Transtorno Neurocognitivo pode ser visto como um facilitador de comportamento criminoso, mas não, por si só, como gerador deste. (MYNEN G, 2013)

Acentua-se que cada caso deve ser minuciosamente estudado, em função da grande variabilidade clínica encontrada nesses transtornos, acompanhados de maior ou menor grau de comprometimento das funções mentais, podendo ou não influenciar a prática criminosa e atuar como modificadores da responsabilidade penal. No entanto, somente a concomitância de prejuízo nas capacidades intelectiva e volitiva tem o condão de gerar a inimputabilidade. (MYNEN G, 2013)

Ao proceder-se à perícia de imputabilidade penal nos portadores Transtornos Neurocognitivos, deve-se verificar a presença dos seguintes fatores (MYNEN G, 2013; TABORDA, JGV & CHALUB, 2012):

·    Informações acerca da biografia do réu e análise de seus prontuários médicos

·    Comportamento do réu à época do delito

·    Documentos policiais e relatos de testemunhas informando a presença de determinadas características do ato criminoso:

a)   subtaneidade da ação

b)   ferocidade em sua execução

c)   curta duração ou término brusco

d)   ausência de cúmplice

e)   ausência de ocultação de evidências

f)   presença de automatismos

g)   reminiscências mnêmicas confusas ou parciais dos fatos ao tempo de seu acometimento ou logo após o mesmo

h)   alterações no nível de consciência

i)    comportamento bizarro, imprevisível ou desorganizado

j)    presença de dissimulação

k)   presença de remorso

l)    ausência de motivos plausíveis

m)  ausência de premeditação

 

Não raras vezes a literatura tem associado um comportamento violento pretérito a atos violentos futuros. Ainda que tal correlação deva ser apreciada, em populações geriátricas atos infracionais violentos são comumente cometidos em indivíduos sem histórico de violência. Nesses casos são correlatos os delitos e os Transtornos Neurocognitivos, principalmente na vigência de sintomas delirantes (LEWIS et al, 2006).

Delírios são notórios fatores de risco para a prática de crimes violentos. Por exemplo, o epônimo Síndrome de Othello, originado da tragédia Shakespeariana, faz referência aos delírios de ciúmes e infidelidade, sintomas amiúde presentes nos Transtornos Neurocognitivos e implicados em diversos crimes. Os Transtornos Neurocognitivos maiores ou leves Frontotemporal ou Devidos à Doença de Alzheimer são os mais comumente associados a delírios dessa ordem, com implicações em ameaças e homicídios perpetrados contra o cônjuge, o rival ou pessoas consideradas cúmplices do suposto traidor (CIPRIANI G et al, 2012).

Portadores de lesões no córtex pré-frontal ventromedial ou orbitofrontal podem apresentar níveis elevados de agressividade e descaso com as regras sociais e morais, pressupondo-se que essas áreas sejam importantes correlatos neuronais da conduta moral. Quando restarem evidentes a relação cronológica entre a lesão cerebral e o comportamento aberrante do examinando, levando à prática do ato delitivo e estando abolidas as capacidades cognitivas e volitivas, o mesmo poderá vir a ser considerado inimputável (CIARAMELLI E et al, 2007).

Os psiquiatras forenses Dr. Hindley Nick e Harvey Gordon do renomado hospital forense inglês de segurança máxima Broadmoor demonstraram os principais fatores associados à conduta heteroagressiva em portadores de  Transtornos Neurocognitivos maiores (HINDLEY & GORDON, 2000):

·    Evidência de disfunção em lobo frontal, incluindo mudanças na personalidade e tendência a comportamentos desinibidos ou antissociais

·    Abuso de álcool

·    Toxicidade medicamentosa

·    Transtornos clínicos ou psiquiátricos graves comórbidos

·    Presença de sintomas psicóticos, em especial de ordem paranoide

·    Evidência de disfunção em lobo temporal

·    Conflitos interpessoais atuais

·    Mudanças súbitas no ambiente do paciente

·    Episódio grave de agressão a terceiros após início do processo demencial

 

Acerca dos Transtornos Neurocognitivos leves e maiores induzidos por medicamento, destacam-se os indutores do sono não-benzodiazepínicos ou drogas Z, como o zolpidem. Esses medicamentos têm sido vistos como potencialmente mais seguros do que os benzodiazepínicos e, portanto, vêm sendo amplamente utilizados no tratamento da insônia, especialmente em populações geriátricas. Todavia, exercem efeitos consideráveis sobre as habilidades psicomotoras e visuoespaciais, como atenção sustentada, atenção seletiva, velocidade de processamento, planejamento, flexibilidade cognitiva, percepção visual, práxis e gnosia. Ademais, os prejuízos provocados pelo zolpidem na cognição podem se estender além da meia-vida do fármaco (em torno de 2,5 horas) (GUNJA, 2013; BOCCA et al, 2011). A literatura forense relata diversos casos de alegação de diminuição da capacidade de entendimento e/ou determinação decorrente de delirium hiperativo induzidos por fármacos como o zolpidem, ingeridos antes da prática de ações delituosas (incluindo homicídios). Os perpetradores apresentavam sintomas como: desinibição, alterações sensoperceptivas, agressividade, amnésia anterógrada e automatismos (GUNJA, 2013; DALEY et al, 2011). Tais casos configuram um enorme desafio ao perito, indo desde as dificuldades em comprovar que o autor ingeriu a medicação antes do crime quando na ausência de testes toxicológicos, até a avaliação das motivações para o ato criminoso. Assim, é tarefa do psiquiatra forense investigar se havia desconhecimento dos possíveis efeitos adversos do fármaco sobre o raciocínio e o comportamento por parte de quem os ingeriu, a presença do comportamento aberrante involuntário, bem como de prejuízo na compreensão da ilicitude dos atos, certificando-se do nexo causal entre os mesmos e a ingesta medicamentosa. Nesse sentido, a investigação da vida pretérita do sujeito é primordial, englobando histórico delituoso, relação temporal entre a ingesta do fármaco e o comportamento apresentado, incluindo, preferencialmente, uma entrevista com o médico prescritor.

Enfatiza-se a necessária a exclusão pelo perito de outras causas para o crime, abarcando-se a possiblidade de simulação. (DALEY et al, 2011)


Conclusão

Os Transtornos Neurocognitivos podem ser vistos como um facilitadores do comportamento criminoso, mas não, por si só, como geradores deste. Quando restarem evidentes a relação cronológica entre o Transtorno Neurocognitivo e o comportamento aberrante do examinando, levando à prática do ato delitivo e estando abolidas as capacidades cognitivas e volitivas, o mesmo poderá vir a ser considerado inimputável. (MYNEN, 2013; TABORDA & CHALUB, 2012; DE PÁDUA et al, 2012)

 

Referências bibliográficas

 

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