Psyquiatry online Brazil
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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2014 - Vol.19 - Nº 10

História da Psiquiatria

VIVÊNCIAS EM CONGRESSOS: MINHAS AVENTURAS NO II SEMINÁRIO ESTUDANTIL LATINO-AMERICANO DE PSICOLOGIA MÉDICA

Walmor J.Piccinini

    Retornando de Brasília onde participamos do grandioso e excelente XXXII Congresso Brasileiro de Psiquiatria caio na realidade de apresentar meu texto para Psiquiatria Online Brasil deste mês de outubro. Já participei de muitos Congressos, mas do primeiro nunca esqueceremos. Depois de participar de um congresso gigante, com mais de seis mil participantes vou contar algumas histórias do meu primeiro congresso.

    Já faz tempo, foi em 1962. Na ocasião eu era estudante de medicina e atendente psiquiátrico na Clínica Pinel de Porto Alegre. Estimulado pelo Professor Marcelo Blaya resolvi contar minha experiência no contato com os doentes mentais. Daí surgiu um pequeno artigo que depois foi publicado nos Arquivos da Clínica Pinel de Porto Alegre sob o título “Experiências de um estudante de medicina num hospital psiquiátrico”. (Arq. Clín. Pinel, 1962, v2, n3 116-121). Este pequeno congresso foi o “II Seminário Estudantil Latino-Americano de Psicologia Médica”.  O organizador foi o Professor Hernan Davanzo Corte, um psicanalista chileno contratado para ser professor de psiquiatria da jovem Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.  Jovem mesmo, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto começou a funcionar efetivamente em 1952 sob a direção de Zeferino Vaz. Na época ela representava um ideal a ser atingido pelas outras Escolas de Medicina. Campus numa antiga fazenda de café, professores recrutados em várias partes do mundo e tempo integral geográfico.  Para quem gostava de ensino de qualidade e novas idéias, a faculdade de Medicina de Ribeirão era um alento.

Do site da faculdade extraímos algumas informações: “O embrião da estrutura didático-filosófica da FMRP estribou-se no conjunto de proposições elaborado pelo Congresso Pan-Americano de Educação Médica, realizado em Lima, no ano de 1951: 1) sistematização da educação médica: a) curso normal de ciências médicas, b) curso de pós-graduação; 2) tendência para medicina preventiva; 3) alicerçar-se na clínica médica; 4) ministrar cursos normais para as disciplinas essenciais; 5) adotar sistema departamental: fusão das cátedras de clínica médica em Departamento de Clínica Médica e as de clínica cirúrgica em Departamento de Cirurgia e suas respectivas interações com laboratórios de patologia; 6) número de matrículas limitado, ou seja, proporcional à capacidade didática; 7) obrigatoriedade do internato; 8) seleção de alunos com critérios científico, moral e psicológico.

Seu início não foi fácil, embora tenha recebido autorização para funcionar em 1948 teve oposição de professores da USP/SP e por isso só em 1952 começou a funcionar livremente. Este assunto pode ser objeto de outro relato, vamos nos ater ao congresso.

Como atendente psiquiátrico ganhava pouco mais que o salário mínimo da época. Conseguir dinheiro para a viagem era uma tarefa hercúlea. Consegui comprar as passagens de ônibus e mais uns trocados para alimentação. A viagem era Porto Alegre São Paulo capital e demorava umas 20 horas, depois se pegava outro ônibus para Ribeirão Preto e eram mais quatro ou 5 horas.  Em Ribeirão não lembro bem, mas acho que tivemos alojamento.  Tudo teria sido perfeito se agosto não tivesse trinta e um dias. Sai de Ribeirão para São Paulo no dia 30 de madrugada, cheguei à capital no dia 30 de manhã e minha passagem para Porto Alegre seria no dia 31. Minha situação ficou assim, desembarcado na Estação Rodoviária, não consegui alterar minha passagem e tinha que ficar um dia e uma noite em São Paulo. Deixei a mala num depósito e me fui para o “centro”, Praça da República. Lá tinham cinemas com sessões contínuas dia e noite. Com o pouco dinheiro que dispunha, entrei num cinema com o plano de passar o dia e a noite lá dentro. O filme era um faroeste dos diabos, pouca história e muito tiro, a primeira sessão até que agüentei, na metade da segunda cheguei à conclusão que por mais que a cidade me assustasse não iria conseguir passar tantas horas assistindo aquele filme ruim e barulhento. Meio temeroso com o que iria enfrentar sai a caminhar pela praça. É bom esclarecer que naquela época a Praça da República era um lugar agradável, circulavam famílias, estudantes e turistas, bem diferente de hoje que virou reduto de uma fauna indescritível.  Caminhando pela praça aconteceu o improvável, alguém a me chamar pelo nome. Uma voz me chamou “Piccinini” e me deparei com um rapaz que conheci em Encantado no tempo que ia passar as férias na casa dos meus avôs. Não o conhecia bem, mas naquelas alturas, era um fio de esperança. Perguntou o que fazia em São Paulo. Contei minha história e como era quase meio-dia perguntou se não estava com fome. É claro que estava com fome, mas não tinha dinheiro. Aí ele ri e me diz que era caixa de uma lanchonete de um tio e me convidou para almoçar por lá, o que fiz com gosto, depois me alojou em seu pequeno apartamento que ficava próximo. Tive um teto e comida na grande metrópole e no dia seguinte embarquei para Porto Alegre.  Não sei como é agora, mas na época eram umas 20 horas de viagem. Várias paradas e eu firme no meu assento, o pessoal descia para lanches e eu só olhava. Meu companheiro na poltrona ao lado era um viajante comercial e o papo era bem humorado. Já de manhã, em São Marcos, próximo a Caxias do Sul, os companheiros de viagem descem para o café da manhã e depois Porto Alegre, minha última parada. Aí o viajante comenta comigo, você não vai tomar café e eu dizendo que não tinha apetite etc. Até que diante da insistência eu contei que não tinha dinheiro. E meu companheiro de papo, disse-me, vem é por minha conta. Em resumo, cheguei a Porto Alegre bem alimentado e feliz com minha viagem a Ribeirão Preto.

As lembranças do congresso são esparsas, lembro ter conhecido o Professor Luiz Cerqueira e o Flávio Fortes D´Andrea, ambos já falecidos. Não garanto que fosse professor, talvez fosse ainda estudante, mas era inquieto e muito criativo. Fazia experiências com slides coloridos em que o observador construía uma imagem, era quase um Rorschach, mas colorido e dinâmico. O Flávio tinha fama de excêntrico, mas teve uma vida muito produtiva, com muitos livros publicados, foi uma pessoa especial.  Não lembro se meu trabalho teve repercussão ou não, lembro dos comentários amistosos do Cerqueira e desde lá estabelecemos uma amizade que depois cresceu com suas freqüentes idas a Porto Alegre e nos inúmeros congressos que participei com ele.

Sobre meu trabalho na Clínica Pinel já fiz vários relatos, um deles foi o seguinte: “Em 1960 comecei a estudar medicina e a necessidade de trabalhar me levou a ser atendente psiquiátrico na Clínica Pinel de Porto Alegre. A CP iniciou suas atividades em 28 de março de 1960 e eu comecei a trabalhar em primeiro de junho do mesmo ano.  Era um hospital de orientação dinâmica e que atuava com equipe multidisciplinar. O trabalho era muito compatível com o trabalho de enfermagem,  desde dar banho e cuidar da higiene dos pacientes até participar de grupos operativos e atividades lúdicas. Acompanhar paciente nas férias ou em sua casa foi mais um extra na atividade do dia a dia do hospital. Devo ter sido o primeiro Acompanhante Terapêutico do país. Esta atividade depois foi desenvolvida em Buenos Aires (Eduardo Kalina e ATs)e de lá saiu um livro que foi à bíblia dos ATs nos anos 70.  Esta minha experiência serviu, também, para apresentar meu primeiro trabalho científico no Congresso Latinoamericano de Psicologia Médica realizado em Ribeirão Preto no ano de 1962”.

    Neste congresso tive a oportunidade de ter contato com o Professor Zeferino Vaz que foi o primeiro diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (1952-64). Depois foi para Campinas e desenvolveu a Faculdade de medicina da Unicamp. Acho que foi um os grandes nomes da Medicina Brasileira do século passado. Não teve medo de se aproximar da Fundação Rockfeller de quem recebeu suporte para as inovações no ensino médico.

    Tem um ditado popular que diz que pau que nasce torto nunca vai endireitar. O oposto também é verdadeiro, a Faculdade de Medicina nasceu e cresceu dentro de um espírito inovador e até hoje permanece como uma das grandes instituições de ensino médico do país.


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