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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2014 - Vol.19 - Nº 9

Psicanálise em debate

PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN, de Lynne Ramsay

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

“Precisamos falar sobre Kevin” (2011), grande filme de Lynne Ramsay baseado na novela de Lionel Shriver, tem uma estrutura narrativa fragmentada que o transforma num quebra cabeças estimulante para o espectador.

O filme começa com as imagens orgiásticas de La Tomatina, o festival espanhol de tomate sediado numa cidade na Valência.  Êxtase sexual, onde uma multidão seminua se espoja e refocila na massa de tomate, num frenesi vermelho que lembra sangue e paixão, morte e sexo.

Apesar das dúvidas a respeito da estabilidade da relação (“prometa que nunca mais vai embora”) e do desejo de procriar (“tem certeza que quer, que é seguro?”) um jovem casal vai em frente e concebe um filho.

Um dos constituintes do casal é, como diz um pôster numa livraria, a  “legendária” Eva Katchadurian, mulher independente, aventureira, famosa autora de livros de turismo, desbravadora de mundos exóticos, dona de um perfil distante da rotina domesticidade caseira.

Esse lado “estrangeiro” de Eva aparece em seu próprio sobrenome, que indica a descendência de imigrantes, o que talvez ligue seu amor pelas viagens a questões transgeracionais, a história de sua família deixando a terra natal e procurando outras para viver.  

Ao contrario das demais grávidas, que se entrosam e discutem as mudanças provocadas pela gestação, Eva se fecha e isola, dá mostras de depressão e constrangimento, não parece entusiasmada ou alegre com as perspectivas de ser mãe. No parto, a médica pede que ela “pare de resistir”, como se lutasse para impedir o nascimento da criança.

Desde o inicio, Eva mostra grande dificuldade em se relacionar com o filho. Dura, artificial, sem espontaneidade, claramente se esforça para ser carinhosa, mas se desespera pois não consegue acalmar a criança. Prefere ouvir o som da britadeira a seu choro ininterrupto, que denuncia sua incapacidade de ninar.

Desde o inicio se instala um descompasso terrível entre mãe e filho, não há uma efetiva interação entre eles. A criança desenvolve um relacionamento peculiar e desafiador com Eva. Recusa-se a falar com ela de forma adequada, bem como rejeita o treinamento das funções excretoras.

Ao não conter as fezes, Kevin força a mãe a limpá-lo. É um exemplo típico da ambivalência anal, ao mesmo tempo em que exige atenção e amor da mãe, Kevin a agride e tenta controlá-la. Numa ocasião, enraivecida, Eva o joga com violência contra a parede, provocando-lhe uma fratura no braço. Kevin não denuncia a mãe para o pai, mas passa a chantageá-la. De alguma forma, o episódio ilustra a relação perversa entre os dois, a constituição de um segredo que exclui o pai. 

A insatisfação de Eva é permanente, mas aumenta quando o marido compra uma casa nos arredores de Manhattan. A ida para os subúrbios é para Eva o equivalente a uma descida aos infernos, como mostra seu rosto na cena em que deixa o apartamento, descendo no elevador. 

Ao se mudarem para a casa, ela decora seu escritório com mapas, evocação de seu passado de viajante e exploradora. É um dos poucos momentos em que se mostra feliz no novo lar. O filho inicialmente a ridiculariza e depois risca todo o papel. Eva não corrige os estragos provocados por Kevin e parece desistir da decoração geral da casa, deixando-a fria, despojada, pouco acolhedora.

A atitude agressiva e disruptiva de Kevin aparece apenas com a mãe e não com o pai, que, por esse motivo, não consegue acompanhar as preocupações de Eva.

Ela engravida novamente e o marido só se apercebe quando Kevin observa que a mãe está gorda.  Nasce uma menininha, com quem também parece ter uma relação difícil e distante.

Kevin maltrata a irmã e seria o provável causador de dois graves acidentes – a morte de pequenino animal da irmã no triturador da pia e, pior, a cegueira em um dos olhos dela.

A hostilidade de Kevin transparece em vários episódios, ao rejeitar as aproximações da mãe, seus convites para jantar, ao se masturbar ostensiva e ofensivamente em sua presença, ao lhe manipular o computador por ter ela tentado invadir sua privacidade.

As dificuldades se ampliam e ameaçam a estabilidade da família. Kevin presencia uma conversa dos pais onde falam de uma possível separação e ele se responsabiliza, dizendo ser o “contexto” daquela situação.

Kevin então planeja e executa um grande massacre. Depois de matar pai e irmã em casa, vai para a escola e mata vários colegas e funcionários.  

É curioso que a arma usada por Kevin no massacre é o arco e flecha, esporte que praticava com grande habilidade e pelo qual passara a se interessar anos antes, num dos poucos momentos em que aceirara a aproximação da mãe, que lia para ele a história de Robin Hood. Aquilo que poderia ser uma lembrança amorosa do relacionamento com a mãe é a matriz de sua maior destrutividade.

Consumado o atentado, Kevin é preso. Eva deixa a grande casa e vai morar num lugar humilde, perto da prisão para onde ele fora enviado. Conhecedores de sua identidade, os moradores do lugar sempre que podem agridem Eva física e moralmente. Sua casa e seu carro são sistematicamente pichados de vermelho, forma de rememorar o banho de sangue desenvolvido por Kevin na cidade ao matar seus colegas e professores.

Eva se submete a toda sorte de humilhação, sem revides.

Porque faria isso? Apesar de formalmente inocente, sente-se culpada frente ao filho e a comunidade e se oferece como culpada a ser punida? Será por isso que age como uma demente Lady Macbeth, tentando lavar a tinta vermelha, apagar a mancha de sangue?

Chama a atenção o episódio do ataque que as crianças lhe fazem no Halloween. Eva se mostra apavorada e incapaz de atender aos pedidos que elas lhe fazem. O que poderia estar em jogo é a dificuldade de lidar com a voracidade. Levando em conta a dificuldade de Eva em lidar com o filho, poderíamos pensar que um dos motivos para tanto seria seu pavor à própria voracidade, das fantasias canibalísticas arcaicas projetada no filho, que atacariam e destruiriam seu seio materno. Leve-se em conta que ela, de fato, não tinha nada para oferecer às  crianças. É como se ela se visse apenas como a criança faminta e raivosa, não conseguisse ocupar o lugar da mãe provedora.

É interessante salientar que apesar do permanente conflito de Kevin com mãe, ele não a mata, como fez com o pai e a irmã, com quem tinha aparentemente um relacionamento menos tempestuoso. Isso indica uma grande ambivalência, pois a poupa, mas, deixando-a viva, pereniza seu sofrimento.

Na cena final, Eva vai visitar Kevin dois anos após os assassinatos, ocasião em que vai ser transferido para um grande presídio,  Sing Sing. Finalmente ela consegue perguntar porque ele teria feito tudo aquilo. A resposta ambígua de Kevin - “pensei que sabia,  agora não estou tão certo” - é uma aguda confissão do estado mental em que estava, de ter sido levado pelos desejos inconscientes e não haver uma explicação racional para tais feitos. A confissão de sua fragilidade, que rompe sua carapaça onipotente, possibilita pela primeira vez uma aproximação afetiva com a mãe.

O filme aborda vários problemas muito importantes. Como entender a maldade humana?  Alguns nasceriam com uma dotação maior da pulsão de morte? Como o desejo dos pais vai modular e formatar as forças pulsionais?

Estarão os adultos – homens e mulheres – capacitados para exercerem as funções paterna e materna de forma natural e espontânea? Todos podem e devem almejar isso? São obrigados a isso?  Podem escolher ter ou não filhos? Qual a pressão interna ou externa para exercer tais funções? Que identificações possibilitam ou não essa configuração? 

No filme, essas questões ficam em aberto. Nele, a presença do pai é mais apagada, mas a própria Eva parece assumir grande parcela de culpa pela tragédia, atribuído-a, de alguma forma, a sua dificuldade em assumir a função materna, tão presa que estava a modelos mais próximos ao estereotipo masculino – o explorador, o viajante, o desbravador – alimentando com o filho um modelo competitivo e rivalizador, numa disputa para ver quem sairia vencedor da luta.

Note-se que há uma única menção à identificação de Eva com a figura materna. Sua mãe lhe telefona no dia de Natal, depois de acontecida a matança, e ela recusa o convite para passarem juntos.


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