Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Janeiro de 2014 - Vol.19 - Nº 1 Psicanálise em debate TRÊS ATAÚDES Sérgio
Telles O falecimento tem uma face
privada manifesta no sentimento de perda daqueles que conviviam com o morto e
uma irrevogável dimensão pública concretizada na cerimônia do funeral. Algumas mortes são acontecimentos
de grande repercussão, gerando notícias nos meios de comunicações. Outras são
quase clandestinas, das quais só se toma conhecimento tempos depois, por acaso.
Ah, Fulano, morreu! Não diga, foi há pouco? Não, não, faz muito tempo! Na página dos obituários algumas
mortes são proclamadas em espaçosos anúncios fúnebres, que expressam a
amplitude do poder social, financeiro ou político do morto e procuram fazer
crer que a dor que elas provocaram, chorada seguramente entre veludos negros e
suntuosos brocados, é infinitamente maior do que a
sentida pelos familiares daqueles cuja morte mal se percebe, espremida que está
na lista de falecidos do dia. Quando alguém pensa sobre a
própria morte, faz um balanço de sua vida para si mesmo. Se
imagina o próprio funeral, pensa em como os outros avaliam sua
vida. Ambas especulações são intimidantes,
embora, no mundo de aparências em que vivemos, a segunda possa parecer mais vexaminosa, desde que muitos veem
no funeral uma forma de aquilatar a importância do falecido. Nesse sentido,
algumas questões se impõem. Como as pessoas se comportariam no velório? Tudo
aconteceria dentro do convencionalmente esperado? Os familiares demonstrariam o
devido pesar? Os amigos estariam presentes em quantidade e qualidade
condizentes com as expectativas gerais? Marina Abramovic
é a extraordinária praticante de um tipo evanescente e peculiar de arte, a performance art. Ao contrário das obras de
artes – um livro, um quadro, uma peça musical – que, ao serem finalizadas, se
desprendem da pessoa do artista e seguem vida autônoma, a performance art,
tal como realizada por Marina Abramovic, apoia-se inteiramente na corporeidade
do artista. É com a concretude e materialidade densa da carne que Marina
Abramovic expressa suas simbolizações e sublimações. Nisso sua arte se aproxima
da dança, que usa o corpo da mesma forma. Não fossem os registros (fotos,
filmes, vídeos etc), as manifestações dessa
modalidade de arte ficariam restritas ao público presente no momento da
apresentação do(s) artista(s). Sobre Marina Abramovic
vimos há pouco um excelente documentário que conseguia a proeza de mostrar de
forma simultaneamente didática e agradável as complexidades de seu processo
criativo, com o qual transforma traumas emocionais e psicológicos em obras de
arte (“Marina Abramovic – Artista presente”, de
Matthew Akers e Jeff Dupre, 2012). Atualmente (dezembro 2013) está
sendo encenado em Nova York o espetáculo “The Life and Death
of Marina Abramovic”, no
qual a artista, auxiliada pelo prestigiado dramaturgo e diretor de teatro Bob
Wilson, relembra episódios de sua vida e encena seu próprio funeral. Foi
realizado um filme sobre a apresentação, a ser lançado proximamente. Ao ler sobre o espetáculo
chamou-me atenção o fato de a cena do velório dispor de três ataúdes e não
apenas um, como era de se esperar. Mesmo dissociada do
texto da peça, que desconheço, a ideia
em si pareceu-me instigante, uma provocação jocosa, uma ruptura da solene e
inabalável circunspecção das cerimônias fúnebres. Onde está o corpo? Em qual
dos esquifes estaria a morta? Abramovic
surpreenderia os visitantes de seu velório com uma última manifestação de
humor, evocando o jogo, o inesperado movimento, a surpresa, elementos tão
característicos da vida. Com isso, os amigos sairiam reconfortados do funeral,
percebendo que se Abramovic morrera, a vida continua,
bem como sua obra. Mas talvez a reflexão mais
pertinente despertada pela presença dos três ataúdes seja a de que não somos
unos e indivisos. Quantos ataúdes seriam necessários para abrigar a
multiplicidade de personagens e mundos que estiveram acomodados num único corpo
até que a morte desfizesse a argamassa que os mantivera ligados durante a vida? Mistérios que apenas testemunhamos sem poder resolvê-los. Mas com os quais podemos brincar, como indicariam essas cenas criadas por Marina Abramovich.
|