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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2014 - Vol.19 - Nº 10

Psicologia Clínica

O ENCONTRO ENTRE PACIENTE E TERAPEUTA: AGLUTINAÇÃO E MODIFICAÇÃO MÚTUA

Braz Dario Werneck Filho
Mestre em Psicologia
Terapeuta Familiar
Terapeuta Cognitivo-Comportamental


Resumo

Este trabalho tem como objetivo principal discutir o encontro entre paciente e terapeuta e propor que seja um encontro modificador para ambos os elementos envolvidos.Outro objetivo é propor a fenomenologia como uma atitude adequada para que se conduza a terapia com tal ideia. A fenomenologia aparece como referencial teórico neste caso por conta de sua característica essencial de fazer com que o indivíduo se empreste à compreensão, não à explicação do que se lhe apresente. Questiona-se aqui a ideia da neutralidade do terapeuta, a partir da ideia de modificação mútua e da proposta de que tal modificação seja um fator de aceleração no processo terapêutico. Em vez de simplesmente se colocarem próximos no consultório, sem que o terapeuta saia modificado, ou afetado, proponho que o terapeuta se abra subjetivamente para vivenciar os afetos que o paciente lhe cause e para agir norteado por isso, o que seria uma ação autêntica.

 

Descritores: terapia, fenomenologia, autenticidade.

 

 

 

Introdução

Parece lógico e obvio dizer que o principal elemento constitutivo de uma psicoterapia seja o encontro entre paciente e terapeuta. No entanto, podemos lançar um olhar mais exigente sobre o que entendemos quando falamos sobre encontros.

            Em primeiro lugar, a discussão do tema “encontro” em psicoterapia não é uma discussão original. Entretanto, é uma discussão que nos parece muito importante, posto que ainda haja várias formas diferentes de se trabalhar em psicoterapia.

            Uma questão importante e sempre presente diz respeito à abordagem efetuada pelo profissional. Cada abordagem irá promover um tipo de encontro diferente. No caso deste trabalho, venho falar sobre uma abordagem específica, que promove um comportamento específico do terapeuta na preparação de seus atendimentos.

            Pretendo trazer para discussão, neste trabalho, uma abordagem pautada na atitude fenomenológica, que promove o comportamento de acordo com o tipo de pessoa atendida pelo profissional.

            Alguns temas secundários surgem a partir da nossa reflexão inicial, como a relação de neutralidade da qual ainda se fala na clínica psicológica; o caminho para que o terapeuta acesse a realidade vivenciada pelo seu paciente etc.

            A essência de uma proposta fenomenológica é a pluralidade. É preciso não ser um terapeuta que trabalhe da mesma forma com todos os pacientes, com uma teoria embaixo do braço, para adequar o seu paciente à sua teoria. É preciso trabalhar pelo paciente e não pela teoria. É preciso questionar e não reverenciar a teoria. É preciso dar valor à prática clínica como construtora e reconstrutora da teoria.

            Alguns desses pontos estarão presentes como pano de fundo da discussão proposta aqui. Todos eles se voltam para questões relativas à pessoa do terapeuta e ao modo como ele se coloca na relação cm o seu paciente.

            O objetivo principal deste trabalho é demonstrar a relação terapêutica como uma relação que promove modificações tanto no paciente quanto no terapeuta, enfatizando o encontro entre duas pessoas como o elemento fundamental para que tais modificações ocorram.

Além disso, interessa discutir o que o profissional costuma fazer quando se depara com uma relação de maior demanda pessoal. Defendo que a relação terapêutica deva ser mais uma relação de aglutinação do que de simples acompanhamento (justaposição). 

 

 

Referencial Teórico

A Fenomenologia é o referencial teórico norteador deste trabalho. As ideias de Husserl, Heidegger e seus seguidores compõem o que penso ser uma base filosófica para o trabalho psicoterapêutico voltado para o paciente e para as interações (todas elas) vivenciadas no contexto da psicoterapia.

            A fenomenologia se apresenta como uma forma de ser e de estar no mundo, como uma visão de mundo, como uma atitude. Há algum tempo participo de alguns debates informais com colegas de profissão que tratam a fenomenologia como uma das abordagens teóricas da psicologia. Deixando de lado o engano filosófico, temos o problema de chegarmos a pensar a fenomenologia como referência obrigatoriamente para uma terapia fenomenlógico-existencial e nada mais.

Em minha prática clínica venho observando e experimentando a fenomenologia como algo muito anterior a isso; como visão de mundo, que pode ser a visão de mundo de um psicanalista ou de um terapeuta comportamental, como é o meu caso.

            Entretanto, é necessário reconhecer que se torna muito mais simples acessar e estudar o que chamo aqui de atitude fenomenológica, se olharmos para as teorias que embasam a terapia fenomenológico-existencial ou a Gestalt terapia. Nas palavras da Psicóloga Teresinha Perez, encontramos uma boa introdução para o assunto do encontro e da relação interpessoal e intersubjetiva  em psicoterapia:

 

 

A existência humana é, em seu nível mais fundamental, inerentemente relacional. Por isso, a psicoterapia fenomenológica existencial enfatiza a relação inter-humana, de pessoa a pessoa, um ser frente a outro ser, o encontro. Encontramos referência sobre o encontro na obra de Binswanger através de um dos modos de ser a partir dos quais o Dasein se revela e que se exprimem, para ele, através da dualidade, pluralidade e singularidade. O modo dual "existe no ser-em-relação-de-reciprocidade, tanto no amor como na amizade, uma penetração de um no outro e não somente uma postura de um ao lado do outro. Essa unidade na dualidade é possível porque o princípio organizador que rege a relação entre um e outro é o encontro" (Giovanetti - 1989). Também Medard Boss, ao rejeitar o conceito de transferência, insiste na necessidade da existência de uma relação inter-humana autêntica entre o psicoterapeuta e seu cliente. (Perez, T. – Jornal online existencial).

 

Outro ponto importante tem a ver com o que se propaga como necessidade de uma postura neutra do terapeuta diante de seu paciente. De acordo com as ideias de Husserl, com a redução fenomenológica, colocamos os nossos julgamentos ente parêntesis, para que possamos nos abrir ao que o outro nos conta e, sem deixarmos de ser nós mesmos, sem interpretar um papel de terapeuta, podemos vivenciar em alguma dimensão o que se apresenta como fenômeno. Feito isso, pode ser possível apreender a essência do que acontece com aquela pessoa.

            Tal postura se baseia no método fenomenológico, proposto por Husserl e que tem inúmeras implicações na prática clínica. Nas palavras de Sampaio (2004):

 

 

Para tanto, Husserl (1947/2000) elaborou o método fenomenológico, que buscava dar exatidão à descrição da realidade. Em vez de buscar explicar a realidade, a fenomenologia procura simplesmente descrevê-la. A atitude fenomenológica consiste em indagar o que é percebido, abstendo-se dos conhecimentos a priori; consiste em questionar o que se apresenta no mundo como natural, um mundo que não tem sentido

sem uma consciência para lhe dar sentido (RIBEIRO, 1999). (...) No método fenomenológico, mesmo fazendo parte da vivência, o "eu" fica suspenso, colocado entre parênteses, em um processo chamado de redução fenomenológica. As influências de tudo o que existe a priori na consciência são minimizadas para que o fenômeno que aparece seja compreendido. Para que uma pessoa possa compreender a vivência de uma outra, precisa deixar de lado seus próprios valores e tentar entender como a outra pessoa, com suas próprias experiências, enxerga o mundo, um mundo que não é absoluto, mas resultado das vivências desta pessoa, filtrado pela sua consciência. O mundo deixa de ser existente para ser fenômeno da existência (GILES, 1937/1975). (2004; p. 03).

 

            Em minha prática clínica, venho observando as portas que se abrem             quando a abordagem do terapeuta se orienta por uma atitude fenomenológica. O problema da modificação mútua pode ser aventado quando nos deparamos com um referencial que propõe que o terapeuta deixe o seu ‘eu’ entre parênteses, no encontro terapêutico. Esta é uma questão que merece atenção especial neste estudo.

            A fenomenologia como referencial teórico-prático para qualquer tipo de terapia irá proporcionar um encontro produtivo para o paciente, pois ele experimentará uma companhia menos técnica do que humana, apesar de ainda voltada para o tratamento. Para o terapeuta, a abertura que se pode realizar a novas convivências poderá enriquecer o seu trabalho e, por que não dizer, suas vivências pessoais.

 

A questão clínica

Na prática clínica, a utilização do método fenomenológico como orientação para a psicoterapia, nos leva ao entendimento existencial do paciente. A compreensão fenomenológica se une à uma tentativa de se relacionar com o paciente que se relaciona com o mundo. A partir desse encontro é possível a construção de uma nova convivência, de um novo modo de estar no mundo por parte do paciente.

            Fenomenologia e Existencialismo podem figurar como as duas grandes escolas filosóficas orientadoras deste trabalho. Além disso, são as escolas orientadoras de uma psicopatologia voltada para a compreensão psicológica do ser humano em sofrimento ou em desordem. Mais uma vez, a tentativa de compreender como cerne do ato terapêutico da clínica fenomenológica.

            A Fenomenologia desponta, também, como demonstrado na prática de Jaspers, como referência para a psiquiatria, tornando a terapêutica psiquiátrica um tratamento que vai além do diagnóstico científico, característico da medicina como ciência natural. A orientação fenomenológica vem então, ampliar o sentido e o alcance da psicopatologia. Nas palavras de Oliveira:

 

A psicopatologia como prática psiquiátrica deve se ocupar sempre do indivíduo como um todo em sua enfermidade e deste como um caso em particular. O psiquiatra lança mão da psicopatologia para conhecer, reconhecer, caracterizar e analisar não só o sintoma, mas sim o homem e o âmbito em que se inscreve. Em psicopatologia, a dimensão clínica, intuitiva e prática, tida como “habilidades”, é de valor reconhecido em sua aplicação, mesmo que, por vezes, inacessível à metodologia da ciência. (2013; p. 24).

 

 

 

            Dessa forma, vai se construindo a maneira de trabalhar do psicoterapeuta existencial ou fenomenológico-existencial. A questão de uma atenção maior à complexidade humana está sempre presente. O tratamento deixa de ser voltado para a classificação do indvíduo. Até porque, aqueles indivíduos que não se encaixavam em nenhuma classificação psicopatológica também apresentavam, na maioria das vezes, grandes questões existenciais, passíveis de trabalho psicoterapêutico. Nas palavras de Lessa e Sá:

 

 

A grande preocupação deles era saber como se pode ter acesso à realidade existencial do paciente, já que as teorias eram muito ricas em dizer como era a sua realidade essencial, mas antes dele existir concreta e temporalmente como ser-no-mundo. Os psicoterapeutas de orientação científico-naturalista procuravam, muitas vezes, encaixar as pessoas na teoria, ao invés de voltar-se para uma descrição fenomenológica da existência singular. Essas tentativas de enquadrar os pacientes nos modelos teóricos eram pródigas em explicações do sofrimento, mas quase sempre estéreis no sentido de propiciar relações terapêuticas que promovessem transformações existenciais efetivas. (2006; p. 324).

 

 

O encontro em psicoterapia

Uma das ideias mais sustentadas no meio clínico, principalmente da clínica psicológica, gira em torna da imparcialidade. A própria abordagem gestáltica, que se orienta pela fenomenologia, ainda dá sinais de manter uma postura rígida em relação ao modo de se apresentar do terapeuta, diante de seu paciente. A clínica gestáltica se preocupa, sim, com a consideração humana do paciente como um todo. Nas palavras de Sampaio:

 

A Gestalt-terapia vai permear as reflexões sobre o tema escolhido. Ela utiliza a fenomenologia como visão de homem e como metodologia, levando seus conceitos para a prática clínica. Desta forma, o Gestalt-terapeuta busca que o cliente amplie seu nível de consciência sobre seus comportamentos, atitudes e sentimentos, possibilitando um maior contato (RODRIGUES, 2000) com eles, a fim de que possa estar no mundo de uma forma mais satisfatória. Neste contexto, a fenomenologia, com sua proposta de descrição de fatos, que acontecem não somente fora ou dentro da pessoa, mas na relação entre eles, mostrou-se bastante útil para a psicoterapia, bem como com a proposta do conceito de intencionalidade, que, segundo Forghieri (1993), seria a capacidade inerente ao ser humano de dar sentido aos fatos do mundo de maneira singular. Mas como, na sessão terapêutica, o psicólogo deve atuar? Ele é igualmente provido de intencionalidade, assim como o cliente. No entanto, o cliente é quem vai direcionar o processo terapêutico, devendo o terapeuta apenas acompanhar as possibilidades do cliente, facilitando o processo deste em direção a uma ampliação de sua consciência. É essa a discussão que será abordada ao longo do trabalho. (2004; p. 51).

 

            As considerações sobre a relação entre paciente e terapeuta formam um dos pressupostos básicos da Gestalt terapia. No entanto, a neutralidade parece também uma preocupação dos terapeutas da Gestalt. Como não compartilho esse pensamento, penso que valha a pena visitar a ideia proposta pela Gestalt sobre este tema. Ainda nas palavras de Sampaio:

 

O objetivo do presente trabalho é estabelecer uma reflexão acerca da atuação do psicólogo como terapeuta e como ser humano na prática psicoterápica. Se, por um lado, a neutralidade tão falada se mostra muito distante e inatingível, por outro, um psicólogo que esteja na sessão terapêutica falando de sua vida, tomando o espaço da sessão com seus problemas, sentimentos e opiniões próprios também é igualmente inoportuno. (Ibidem; p. 51).

 

               

            Como dito acima, acredito que a neutralidade relativa que parece sugerir a autora, pode trazer mais prejuízos que benefícios ao processo terapêutico. Exploraremos esse tema adiante.

 

 

O encontro em psicoterapia

Para quem se preocupa em ser um coadjuvante que possa contribuir para novas construções na vida dos pacientes, a ideia de um encontro é mais profunda do que simplesmente estarem paciente e terapeuta juntos em uma mesma sala.

            De acordo com o que tenho observado, o encontro entre paciente e terapeuta é o mais importante elemento integrante da psicoterapia. Talvez por isso mesmo seja um ponto tão discutido e repleto de divergências. As ideias acima expostas refletem a preocupação com o posicionamento subjetivo algo distanciado do encontro com o paciente.

            O que me parece mais importante discutir é a natureza de tal distanciamento. Quando o terapeuta evita contar suas histórias, quando evita que o paciente saiba de coisas sobre sua vida, está obviamente estabelecendo um limite. Acontece que muitas vezes o terapeuta estabelece tal limite não por uma questão que observou no paciente, ou por uma preocupação técnica com o processo terapêutico. Muitas vezes o terapeuta tem esse comportamento para proteger a si mesmo de uma relação mais profunda.

            Não haveria problema em tal procedimento, caso o terapeuta não corresse o grave risco de evitar justamente aquilo que o paciente mais precisa, quando essa necessidade for de uma vinculação mais profunda para que os seus limites existenciais sejam ampliados.

            A economia de gestos e de informações na vinculação deve ser administrada pelo terapeuta. Para que o resultado seja promissor, o profissional deve avaliar cuidadosamente a postura mais adequada ao paciente e à terapia desse paciente.

            Defendo a ideia de encontro como um processo vivenciado por paciente e terapeuta. Esse processo pode ser tão mais contundente quanto for autêntico, de ambos os lados. O terapeuta tem muito mais motivos para conter o seu próprio Eu, suas vontades, suas opiniões pessoais. Por outro lado, o paciente está em ampla desvantagem, já que é sempre cobrado como paciente a ‘falar tudo na terapia’.

            Ora, penso que nem o terapeuta precise se preservar tanto, nem o paciente precise falar tudo. A questão da obrigatoriedade, ou necessidade de que tais coisas aconteçam reprime a autenticidade e faz com que o encontro terapêutico se torne limitado.

            Minha ideia de encontro realmente promissor em terapia toma emprestado o conceito de aglutinação, já discutido por mim em trabalhos anteriores. Na minha experiência clínica, o paciente geralmente tem contas a acertar consigo mesmo, quando procura um profissional. Acontece que o próprio profissional vai se deparar com suas próprias questões. Ele pode, nesse momento, seguir em frente, como se nada tivesse acontecido. Pode também, parar, refletir e fazer esse momento se tornar o melhor momento do início da terapia.

            Sobre o conceito de aglutinação, temos a união de palavras que se modificam para formar uma terceira. A palavra aguardente por exemplo. As duas palavras fundadoras da terceira se emprestaram para a modificação, para que uma terceira fosse obtida. No caso do encontro terapêutico, penso que o terapeuta e o paciente devam se emprestar ao momento, de forma autêntica, para que outra forma de estar no mundo possa ser descoberta ou construída pelo paciente.

            O que observamos na maior parte das vezes é uma simples justaposição, quando dois elementos se juntam, mas não sofrem mudanças. Ainda é possível e talvez até mais comum, encontrarmos quem trabalhe com uma aglutinação unilateral, onde somente o paciente se modifique com a terapia.  

            Defendo a fenomenologia como abordagem inicial e como atitude para qualquer processo terapêutico, por causa do caráter principal de curiosidade simples diante do fenômeno. O profissional se preocupando mais em compreender adotará fatalmente uma postura compreensiva e não definidora,  não determinista. Ele acompanha a existência do paciente e vai vivendo durante os encontros, a realidade apresentada pelo paciente. Quanto mais autêntico e disponível for o terapeuta, mais ele vai conseguir abrir as portas que o separam de caminhos diferentes; caminhos ainda não trilhados, nem por ele, nem pelo paciente. Por isso, caminhos válidos.

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

LESSA, J. M. e NOVAES DE SÁ, R. A relação psicoterapêutica na abordagem fenomenológico-existencial in Análise Psicológica (2006), 3 (XXIV): 393-397.

 

OLIVEIRA, R. M.(org.) Seminários em psicopatologia: da psiquiatria clássica à contemporaneidade. COOPMED; Belo Horizonte, 2013.

 

PEREZ, T. Reflexões Sobre o Encontro na Relação Psicoterapêutica Fenomenológica Existencial.

 

SAMPAIO, M. M. A. Neutralidade na relação terapêutica - reflexões a partir da abordagem gestáltica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 56, n. 1, p. 49-56, 2004.

 


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