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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2014 - Vol.19 - Nº 4

Psicologia Clínica

CONSIDERAÇÕES FENOMENOLÓGICAS SOBRE A ESTRANHEZA NO TRATAMENTO DA ESQUIZOFRENIA

Braz Dario Werneck Filho
Terapeuta Cognitivo-Comportamental
Mestre em Psicologia
Terapeuta Familiar


Introdução

Estranheza talvez seja uma das principais sensações que um terapeuta experimenta frente a um paciente que em breve venha a ser diagnosticado como esquizofrênico. Em minha experiência clínica, venho observando o que sinto na relação com alguns pacientes, o que me dá a ideia de uma dificuldade relacional bastante peculiar.

            Tal dificuldade, obviamente, deve ser mais um instrumento de trabalho do que um empecilho para o tratamento. No entanto, é muito importante o cuidado para que a troca de experiências subjetivas seja construtiva, pois acredito que o terapeuta sempre estará pisando em um terreno cujas propriedades ele não vivencia em sua experiência própria, diferente das dificuldades no tratamento com pacientes neuróticos, onde o problema muitas vezes reside justamente na identificação ou no reconhecimento de si que o terapeuta experimenta às vezes, quando ouve as experiências relatadas pelos pacientes.

            Este trabalho pretende explorar alguns aspectos dessa estranheza que, segundo minha vivência clínica, aparece tanto no paciente quanto no terapeuta. No paciente porque ele vive num mundo que não compartilha o seu jeito de ser e de estar. No terapeuta, porque o seu paciente apresenta sobre o mundo e as pessoas verdades completamente diferentes daquelas construídas pelo terapeuta em toda a sua vida. Essas verdades estranhas, no entanto, são tão verdadeiras do ponto de vista existencial quanto as verdades do profissional.

            Além disso, considero que , em última instância, podemos e devemos procurar formas estranhas para lidar com  os indivíduos estranhos. Isto, é claro, se o objetivo for adquirir maior possibilidade de convivência e ampliação existencial dos pacientes e de suas famílias.

            A partir

da visita conceitual às referências oficiais de que dispomos e às referências que considero pessoalmente as mais interessantes (Bleuler, Minkowski e Binswanger) no que se refere à esquizofrenia, pretendo trazer uma reflexão que possa servir de apoio a investigações futuras.

 

Referências Oficiais

Por mais que tentemos manter uma atuação distanciada dos manuais estatísticos ou dos códigos diagnósticos, não há como negar a necessidade de trabalharmos tendo-os como referência. Eu mesmo venho observando, ao longo do tempo, o quanto pode me ajudar uma consulta à CID X e ao DSM – V. A partir do momento em que consegui definir o papel que os manuais teriam em minha atuação clínica, passei a utilizar os dois referenciais médicos principais com maior desenvoltura e com menos preconceito.

            Atualmente, a celeuma do chamado Ato Médico coloca nós, psicólogos, em situações por vezes delicada. A melhor estratégia que encontrei até hoje foi a de manter estreito contato com médicos psiquiatras de confiança e de mente aberta para a discussão e, por causa do vínculo de confiança, trabalhar como parceiro no tratamento do paciente.

            No caso da esquizofrenia, o diagnóstico de um médico não só me parece imprescindível, como também me vem sendo impossível trabalhar com um paciente esquizofrênico e sua família, sem ter como base a orientação de um psiquiatra, principalmente, no que tange à medicação. Assim, as minhas opiniões e os meus estudos na área da psicopatologia geralmente são discutidos em cada caso com o  médico do paciente. Tais discussões têm se mostrado verdadeiramente promissoras e construtivas.

            Voltando à questão das referências oficiais, temos no DSM V e na CID X as duas referências oficiais para o diagnóstico da esquizofrenia. No caso do DSM V, a esquizofrenia vem descrita como um transtorno que engloba afeto inadequado, humor disfórico, ansiedade e fobias. (DSM V, pg, 101). Mas também, um pouco mais adiante, a descrição cita uma espécie de comportamento que pode ser um dos grandes causadores de estranheza nos indivíduos não psicóticos: uma espécie de tendência a atender a estímulos irrelevantes dando-lhes grande importância e déficit na capacidade de inferir as intenções dos outros (ibidem).

            Já no caso da CID X, o nosso interesse se volta para a questão do afeto inadequado ou embotado (CID X, pg 85). Qualquer uma dessas diferenças afetivas, quando presente de forma constante no modo de ser e de interagir do indivíduo, levam a uma certa bizarrice nas relações, o que acaba sendo mola propulsora para a segregação e para o preconceito.

            Tais descrições nos mostram como o que chamamos aqui de estranheza do indivíduo esquizofrênico aparece com regularidade nesses pacientes. Assim sendo, mesmo as referências que consideramos mais pragmáticas do que clínicas, mais objetivas do que preocupadas com a subjetividade, oferecem uma ideia de como é uma convivência estranha a que temos com os esquizofrênicos.

 

Sobre a visão de Bleuler

A grande contribuição de Eugene Bleuler para o trabalho com pacientes esquizofrênicos se mostra tão atual que poderia ser levada para uma discussão clínica dos dias de hoje.

O autor fala sobre a complexidade no que se refere a sintomas exclusivos da esquizofrenia. Essa complexidade fica mais clara nas palavras abaixo:

Mas, precisamente no caso da esquizofrenia, grande número de fenômenos que oscilam fortemente no interior dos limites daquilo a que chamamos, senão são, pelo menos “não patológico no plano mental”, encontram-se em primeiro plano nos casos mais ligeiros. (Bleuler, 2005; pg. 341).

 

Bleuler esclarece a natureza dos sintomas que ele mesmo chama de propriamente  esquizofrênicos, dizendo que tais sintomas não são aqueles tão bizarros e, por isso, notáveis, mas sintomas que são exageros e deformações de processos normais (ibidem).

Com isso, parece que faz sentido a ideia de que a estranheza do paciente esquizofrênico não esteja nos delírios ou alucinações, necessariamente, mas no que os pacientes nos provocam, como se o entendimento real, ou algo como uma consensualidade quanto aos eventos do mundo fosse impossível.

            Outra contribuição impar de Bleuler fala sobre a importância do contexto psicológico em que os sintomas se apresentam. Não nos serve a avaliação de um sintoma isolado, mas sim da consideração das circunstâncias psicológicas em que ele ocorre, considerando o todo existencial do paciente. Nas palavras do autor “o que importa, por isso, é menos o sintoma isolado, em si mesmo, do que a sua intensidade e extensão, e sobretudo a sua relação com o ambiente psicológico” (ibidem).

            Mais adiante, o autor torna mais clara a necessidade de uma atitude cada vez mais voltada para a complexidade do que de uma avaliação quantitativa de sinais e sintomas objetivos. Segundo Bleuler:

 

Os sintomas esquizofrênicos não estão forçosamente presentes a todo instante. Em nenhuma outra doença mental, senão na esquizofrenia, podemos tão pouco contar antecipadamente ver num dado momento este ou aquele sintoma patológico preciso. Mesmo nos casos evoluídos, que habitualmente parecem estúpidos, a perturbação afetiva e a alteração característica das associações podem não ser demonstráveis num dado momento. Não poderemos colocar o diagnóstico com certeza em todos os casos, mesmo por meio de um exame aprofundado de várias horas. (ibidem, pg. 343).

 

            A ideia de estranheza trazida neste trabalho diz respeito justamente a algumas situações em que o paciente esquizofrênico não se comporta de forma bizarra, sem, por isso, chegar a integrar-se subjetivamente aos ambientes que frequenta. Consideramos que a relatividade da sintomatologia aqui descrita possa servir como argumento para a possibilidade de circulação e de convívio desses pacientes na sociedade. Para que possamos ter uma sociedade em que os pacientes internados sejam minoria, eles precisam ser tratados. Cada caso deve ser avaliado a cada momento, a despeito do fechamento do diagnóstico, pois cada paciente apresenta uma forma de existir peculiar, individual, que deve ser acompanhada, justamente por estar inequivocamente sujeita a episódios graves de estranheza.

 

Alguns comentários sobre a visão de Minkowski

Outra contribuição muito importante para o trato com pacientes esquizofrênicos está presente na obra de Minkowski. Assim como Bleuler, Minkowski traz a questão sobre a dificuldade de se encontrar algum sinal que seja característico, constante e claro na esquizofrenia.

            A dimensão existencial acaba se configurando muito importante nas ideias desse autor, com relação ao diagnóstico e ao estudo da esquizofrenia. Não podermos encontrar  tal sintoma ou sinal essencial volta a nos levar a um caminho clínico complexo, porém revelador. O primeiro passo, no entanto, é abandonar a expectativa simplista de encontrarmos uma característica que seja definidora do diagnóstico a qualquer momento. Nas palavras abaixo, podemos observar esta concepção:

 

Sin embargo, las nociones comunes de la psicología se manifiestan rápidamente insuficientes. Al tomar como punto de partida la tríada tradicional: inteligencia, sentimiento, voluntad nos damos cuenta de que el transtorno em questión no puede resumire em ninguna de estas facultades. Ni la abulia, ni la indiferencia, ni la falta de emotividad, ni siquiera el debilitamiento intelectual, son característicos de la demencia precoz. Se trata más bien de eclipses electivos de cada una de estas facultades, que se producen com respecto a ciertas situaciones ambientales, que de su abolición global. (Minkowski, 1927/2000. Pg. 85.).

 

            No tratamento, por meio da relação que estabelecemos com esses pacientes, certamente vamos experimentar a estranheza que deles faz parte, porque tal estranheza diz respeito aos nossos padrões. Mas também, mais do que a estranheza e a bizarrice, estaremos vulneráveis ao que não é bizarro, e que também faz parte do existir esquizofrênico. Muitas vezes, como tenho visto, a parte mais difícil é lidar com o que não é louco no modus vivendi de um louco. É ali que algo se faz incômodo para nós e precisamos de alguma metodologia para que o momento não nos leve a questionar desmedidamente o diagnóstico, ou mesmo a formular hipótese absurdas que levam muitas vezes familiares mal orientados a optar por tratamentos que se revelam completamente ineficazes depois de algum tempo.

            A vivência do tempo extensivo, do contato prolongado, da relação continuada, ou seja, tudo que traga a ideia de um processo se faz necessária para que seja possível validarmos nossos critérios de avaliação.

            A estranheza que experimentamos e que testemunhamos na convivência com o paciente esquizofrênico será, em última instância, um dos principais elementos para o diagnóstico e a proposta terapêutica adequada.

 

Sobre a visão de Binswanger

Binswanger traz conceitos muito importantes para a prática clínica, quando fala sobre extravagância, excentricidade e amaneiramento.

            Considero que os três termos possam ser parte da estranheza que um indivíduo esquizofrênico apresenta. Nas investigações clinicas de Binswanger, a excentricidade tem lugar de destaque. Alguns detalhes são mesmo muito importantes e coerentes com a proposta deste trabalho. Entretanto, um detalhe chama a atenção por ser uma das bases teóricas inspiradoras da terapia cognitiva fenomenológica que venho propondo: a ideia de que o mais importante é a compreensão da vida do paciente, considerado o seu todo existencial, antes de nos perguntarmos se ele é esquizofrênico, ou mesmo se é um psicótico. Como nas palavras abaixo:

 

Em ligação com isso, lembremos mais uma vez o fato de que tiramos propositalmente os nossos casos exemplares não somente da esquizofrenia (o paciente Hae., o historiador, o instituteur), mas também do domínio da esquizoidia (...) e do “normal” de um ponto de vista psicopatológico. (...) Dever-se-ia mostrar assim que a essência da excentricidade precisa ser procurada e encontrada além da separação da psicose, da psicopatia e da normalidade, a saber, no fundamento do ser humano em geral. (Binswanger; pg. 93).

 

            Nestas palavras, o autor deixa claro que não é o mais importante a questão formal do diagnóstico, mas sim, a questão funcional. Devemos procurar a essência de cada problema, de cada modo de existir. A estranheza que venho trazer para discussão é uma consequência relacional. O louco só é estranho porque alguém o classificou assim. Está fora dos padrões. O quão fora estará não é a questão aqui.

            Vale ressaltar também, que por meio dessas palavras, concebemos um substrato teórico para a ideia de que nem só os loucos são estranhos, ou excêntricos, ou extravagantes. Assim, nossos pacientes teoricamente não-loucos podem visitar os consultórios sem temer a pecha de insanos.

            Para Binswanger, a extravagância, a excentricidade e o amaneiramento constituem o que ele chama de formas de existência malograda. Esse malogro existencial é, em minha concepção, endossado pelos fracassos relacionais dos indivíduos com tais características.

            Algo que faz parte da essência deste estudo é a convicção de que os pacientes esquizofrênicos apresentam manifestações tão humanas quanto os pacientes histéricos ou obsessivos etc. O problema é que o preconceito contra o sujeito psicótico ainda o inferioriza como pessoa. Penso que ter limitações como cidadão, por causa das consequências prática que sua existência extravagante causa, seja diferente de ser limitado como ser humano.

            A estranheza é algo elementar que faz com que os pacientes simplesmente não se encaixem no modo como os responsáveis organizam o mundo. Uma vez sem encaixe, passam a não ter serventia.

            É esta apenas uma das ideias contra as quais acho justo lutar.

 

 

Referências bibliográficas

 

Binswanger, L.  Três formas de existência malograda: extravagância, excentricidade e amaneiramento. Rio de Janeiro ZAHAR

Bleuler, E. Dementia Praecox: ou Grupo das Esquizofrenias. Climepsi, Lisboa. (2005)

CID 10 – Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento. ARTMED, Porto Alegre. (1993).

DSM V – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre, ARTMED (2014).

Minkowski, E. La Esquizofrenia: Psicopatología de los esquizoides y los esquizofrenicos. Fondo de Cultura Economica, Mexico – DF. (2000).


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