Psyquiatry online Brazil
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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2014 - Vol.19 - Nº 1

Psiquiatria Forense

NOVAS PERSPECTIVAS PARA O TRATAMENTO DO PACIENTE COM TRANSTORNO MENTAL EM CONFLITO COM A LEI?

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP; Psiquiatra do CAISM da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.


Não é novidade para ninguém que a assistência prestada ao doente mental infrator, em todo o país, é calamitosa. Recentemente, entidades representativas de classe, órgãos de defesa dos direitos humanos, pesquisadores da área de saúde mental vêm investigando e denunciando essa realidade. O expediente da medida de segurança, que é destinado ao indivíduo que não dispõe de aptidão para responder pelas conseqüências jurídico-penais de sua infração devido a um transtorno mental, tem sido aplicado sem oferecer ao paciente qualquer perspectiva de recuperação, trazendo consigo apenas um viés segregacionista.

A medida de segurança de internação está longe de oferecer ao doente mental infrator tratamento apropriado e possibilidade de reabilitação e reintegração familiar e social. O pacientes internados nos manicômios judiciários Brasil afora são relegados a sua própria sorte em locais que se parecem mais com cárcere do que com hospitais, sendo verdadeiras prisões sem tratamento.

Em 2010, após mais de um ano de trabalho, o Grupo de Trabalho para Estudo das Políticas Referentes à Psiquiatria Forense do Departamento de Ética e Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria divulgou os resultados da série de visitas que realizou em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico em vários Estados do país. Foram vistoriados instituições nos Estados de Estados de São Paulo, Amazonas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pará e Rio de Janeiro, além do Distrito Federal, perfazendo nove hospitais de custódia. Os achados foram alarmantes. Problemas graves foram identificados nas mais variadas esferas do funcionamento dos hospitais de custódia. No que tange à estrutura arquitetônica, a organização dos espaços nos hospitais visitados assemelhavam-se mais a instituições prisionais do que a estabelecimentos de tratamento e reinserção social. No que diz respeito ao atendimento médico, o relatório elaborado pelo grupo da Associação Brasileira de Psiquiatria mostrou o que segue: “Em todas as unidades visitadas, a relação número de pacientes X equipe técnica estava de- sequilibrada. Os profissionais que atuam nos HCTPs sofrem com demanda excessiva no atendimento. Além do número de pacientes que cada médico precisa tratar e cuidar, o mesmo profissional é responsável pelo Laudo de Cessação de Periculosidade, o que é contra os princípios da psiquiatria forense. Os especialistas que realizam perícias para verificar cessação de periculosidade estão sobrecarregados. Há casos de psiquiatras com agendamentos para 2015 (lembrar que o relatório foi produzido em 2010). Isso significa que mesmo que um paciente já esteja recuperado, terá de esperar cinco anos para ser examinado e receber o laudo que certifica sua condição”. Por fim, no que concerne à reinserção social do paciente, o Grupo de Trabalho verificou, nos poucos hospitais que reali- zam a chamada “alta progressiva”, baixa efetividade dos programas, devido à falta de acompanhamento por profissionais qualificados. Ademais, a reinserção familiar e social dos pacientes era bastante comprometida, pois não havia qualquer integração entre os equipamentos de saúde, para onde os pacientes eram encaminhados no pós-alta, e os hospitais de custódia. Além disso, após a alta dos pacientes, não havia também qualquer tipo de acompanhamento ou continuidade do tratamento iniciado nos hospitais de custódia, o que aumentava as chances de recorrência clínica e reincidência delitiva, fazendo com que os pacientes retornassem aos manicômios judiciários. Esse foi o cenário encontrado e denunciado pela Associação Brasileira de Psiquiatria naquela ocasião.

Mais recentemente, no ano de 2011, o Instituto Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e o Ministério da Justiça publicaram levantamento do censo que realizaram nos pacientes internados em todos os manicômios judiciários do país. O censo foi coordenado pela antropóloga, professora e pesquisadora Débora Diniz, tendo sido o primeiro trabalho realizado deste tipo no pais. Os dados realmente impressionam. Cerca de 740 pacientes, dentre os 3.989 que cumpriam medida de segurança  nos 23 hospitais de custódia e três alas de internação do país, em 2011, não deveriam estar internados. Parte deles já conviviam com a “periculosidade cessada”, outro grupo estava com internação sem processo judicial ou já havia recebido o benefício judicial da alta ou desinternação progressiva. Quando se consideravam também os indivíduos internados com laudos psiquiátricos ou exames de cessação de periculosidade em atraso, havia um contingente de 1.194 pessoas em situação temporária ou em medida de segurança com internação irregular. Esses indivíduos representavam cerca de 30,0% de toda a população de doentes mentais infratores internados.

Os dois estudos apresentados acima, conduzidos por entidades e profissionais totalmente idôneos, mostram uma realidade de descaso e desassistência para com os pacientes em medida de segurança privados de liberdade e custodiados pelo Estado. Contra a situação exposta acima, apenas atitudes isoladas foram tomadas, não havendo, até então, uma política pública focada neste assunto. Então, no início deste ano de 2014, o Ministério da Saúde publicou as Portarias 94 e 95, que tratam justamente da atenção e assistência ao doente mental infrator. As referidas instituem um serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde.

De acordo com a Portaria 94, em seu Artigo 1 o, fica instituído no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, vinculado à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)”. O referido serviço será composto pela Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), que deverá ser constituída por equipe interdisciplinar, composta por cinco profissionais com diferentes formações.

Em seu Artigo 2o, a Portaria delibera que “é considerada beneficiária do serviço consignado nesta norma a pessoa que, presumidamente ou comprovadamente, apresente transtorno mental e que esteja em conflito com a Lei, sob as seguintes condições: com inquérito policial em curso, sob custódia da justiça criminal ou em liberdade; ou, com processo criminal, e em cumprimento de pena privativa de liberdade ou prisão provisória ou respondendo em liberdade, e que tenha o incidente de insanidade mental instaurado; ou em cumprimento de medida de segurança; ou sob liberação condicional da medida de segurança; ou, com medida de segurança extinta e necessidade expressa pela justiça criminal ou pelo SUS de garantia de sustentabilidade do projeto terapêutico singular”. Desse modo, além dos pacientes em medida de segurança, a Portaria objetiva abarcar em seus cuidados todos os pacientes que apresentarem situação de conflito com a lei, ampliando a assistência a esses indivíduos.

Para execução dessa política, um Grupo Condutor Estadual deverá ser constituído. Tal Grupo poderá contar com a participação de representantes do Tribunal de Justiça, do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública Estadual, da Secretaria Estadual de Assistência Social ou congênere, de instâncias de controle social, em âmbito estadual, sendo preferencialmente dos Conselhos de Saúde, de Assistência Social, de Políticas Sobre Drogas ou congênere e de Direitos Humanos ou congênere. Com isso, os vários atores que trabalham com os pacientes com transtornos mentais em conflito com a lei poderão participar da implementação dessa política pública no âmbito dos Estados. O Grupo Gestor deverá elaborar uma estratégia estadual para atenção à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, e contribuir para a sua implementação. Os Estados e o Distrito Federal terão um prazo de até 180 dias, a partir da data da habilitação do seu primeiro serviço, para apresentação do Plano de Ação para redirecionamento dos modelos de atenção à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei ao Ministério da Saúde.

Já a Portaria 95 do Ministério da Saúde dispõe sobre o financiamento do serviço de avaliação e acompanhamento às medidas terapêuticas aplicáveis ao paciente judiciário, no âmbito do Sistema Único de Saúde.

Obviamente que problemas vários podem aparecer na implementação de uma política pública tão abrangente e audaciosa como essa. Porém, vale o voto de confiança, já que essa é a primeira vez que o Poder Público produz uma política consistente para tratar da assistência ao doente mental infrator. Além disso, traz o problema para a esfera da Saúde, onde realmente deve estar. Esperamos apenas que esse Programa não sucumba a questões ideológicas, como vem acontecendo ao longo dos últimos tempos com tantos outros Programas interessantes na área da saúde mental. Desejamos, assim, que o referido Programa possa se balizar em aspectos técnicos, o que, com certeza, trará enormes ganhos aos pacientes, aos seus familiares e à sociedade como um todo.


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