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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2014 - Vol.19 - Nº 2

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

TEORIA DOS JOGOS E VIOLÊNCIA

Fernando Portela Câmara
Guilherme Cardoso Portela Câmara


Em artigo anterior apresentamos o jogo chicken como modelo do conflito atualmente dominante na política de saúde mental brasileira (Câmara e Câmara, 2010). Uma estratégia associada ao jogo chicken, é a brinkmanship (algo como “diplomacia temerária”, termo criado por Dulles durante a guerra fria), onde abdicamos de todo esforço de negociação e avançamos sobre o adversário forçando-o a recuar. No jogo chiken, em que ambos participantes avançam com o carro um em direção ao outra a toda velocidade, um dos jogadores remove a direção do carro e a joga fora, mostrando a todos o que fez, com isto obrigando o outro jogador a desviar racionalmente para salvar sua vida (Câmara e Câmara, 2010). A estratégia brinkmanship foi usada por Bob Kennedy na crise dos mísseis de Cuba com total sucesso; seu desconhecimento pelo governo brasileiro levou o país a amargar uma derrota diplomática ao apoiar a política nuclear do Irã e também ao pressionar a junta governante nicaragüense a reintegrar o presidente deposto Zelaya (em ambos os casos a estratégia brinkmanship foi usada contra o Brasil).

Na teoria dos jogos os participantes não fazem acordos prévios e jogam em função do melhor ganho para si, que dependerá do jogo dos outros participantes. Em chicken uma das estratégias tem um custo alto que é a injúria em que os jogadores inflige um ao outro quando ambos não desviam. O custo é maior que o benefício, daí o valor negativo do ganho (se o custo não for maior que o benefício, o jogo será do tipo dilema do prisioneiro). Em sociobiologia e dinâmica evolucionária de populações, usa-se uma modalidade de chicken conhecida como o jogo do falcão e pombo, para denotar um comportamento de compartilhamento de recursos (pombos) e um de agressividade em que se tira o recurso do outro numa ação violenta (falcões). A matriz abaixo generaliza este jogo:

 

B

Pombo

Falcão

A

Pombo

V/2

0

Falcão

V

(V-C)/2

 

Onde V é o valor disputado e C é o custo da disputa. Se V > C, então temos um jogo de coordenação (dilema do prisioneiro), mas se C > V, então temos um jogo de anti-coordenação (chicken ou falcão e pombo). Pombos repartem ente si o recurso, cabendo a cada um V/2; falcão toma todo o recurso de pombo ficando com o butim (V); e falcões disputam entre si com um custo de injúrias devido a luta ([V-C]/2). Pombos não conseguem se desenvolver numa sociedade de falcões, e a introdução de alguns falcões em uma sociedade de pombos a torna instável e pode leva-la à extinção, prevalecendo os falcões. Isto fica bem evidente quando aplicamos a equação do replicador ao modelo (ver NOTA 1). Contudo, a excessiva agressividade dos falcões leva sua própria população a se tornar instável com risco de extinção. A situação modelada tem analogia com o estado de barbárie que nos fala Thomas Hobbes em “Leviatã”.

O jogo falcão e pombo implica em ações que são de natureza comportamental, e neste sentido ele difere do jogo chicken, que descreve apenas uma competição em que se mede forças ou resistência emocional. Portanto, falcão e pombo é o modelo de jogo mais adequado para se analisar questões sociais onde a violência é um dos elementos presentes.

No Brasil, a violência que tanto nos preocupa é de ordem institucional e se caracteriza como um jogo anti-coordenação. Vamos considerar uma situação hipotética em que bandidos se apoderam de uma cidade, e que eles são modelados como falcões e os cidadãos como pombos. Em um estado de barbárie, a população é agredida e espoliada, e entre os bandidos há disputas e mortalidade alta. Esta situação é instável para a existência organizada dos bandidos, como pode ser deduzido com a equação do replicador (Nota 1). Contudo, é possível que ambos convivam em proporções equilibradas e neste caso temos um equilíbrio Nash misto.

Como chicken, falcão e pombo também possui três equilíbrios Nash: dois deles simétricos e correlacionados, emergindo de estratégias puras, e um deles assimétrico e não correlacionado, decorrente de estratégias mistas (ver Nota 2). Este último caracteriza uma estratégia evolucionariamente estável que torna a população resistente a invasão por outras estratégias. No equilíbrio Nash misto a população pode se encontrar em um dos dois estados seguintes:

1.      A população é uma mistura de pombos e falcões, cidadãos e bandidos. Falcões disputam entre si, mas precisam dos ordeiros e produtivos pombos para garantir sua sobrevivência, e então passam a explorar a população para seu proveito. O coronelismo, a corrupção política, o populismo, o capitalismo na sua forma mais primitiva, surgem nesta condição e procurarão se perpetuar pela truculência dos falcões. Pombos e falcões convivem em uma relação em que os primeiros são explorados pelos segundos e dominados pelo medo e violência. Não há progresso ou desenvolvimento social e econômico nesta perspectiva. Isto é a violência, de ordem social e política, na sua forma primitiva, que alimenta todas as demais formas de convivência violenta na sociedade.

2.      No segundo caso, temos uma dinâmica em que os próprios indivíduos aprendem a ser algo pombo e algo falcão e assim equilibram suas atitudes ou comportamento. Em outras palavras, o jogo falcão e pombo passa a ser jogado como estratégia mista. Esta situação gera uma dinâmica populacional evolucionariamente estável, e modela sociedades que se desenvolverem livremente pela iniciativa dos cidadãos e tendem pra uma economia de livre mercado competitiva. Tais sociedades se caracterizam por serem equilibradamente competitivas e cooperativas.

Nestas sociedades os falcões definem as regras políticas e controlam a economia, controlam a população mantendo-a sob sua tutela e tornando-a dependente dos recursos do governo. Isto pode acontecer com um país, uma prefeitura ou mesmo uma comunidade, e é o substrato da violência. Outro fator é a corrupção dos órgãos encarregados em manter a lei e a ordem. Por exemplo, os traficantes movimentam uma economia paralela que não é regulamentada e que é gerada do produto do tráfico, e paralelamente de seqüestros, contrabando, e “pedágios”. Não sendo regulamentado ou tributado, este dinheiro é ilegal e, assim, é de “quem o pegar” e por isso é defendido e disputado por bandidos ou facções rivais. Tais sociedades em que cidadãos são intimidados e dominados e a corrupção de quadrilhas organizadas, às vezes infiltrados no Estado, é a principal causa da violência social e do incentivo à criminalidade.

Os acordos entre políticos que buscam votos e bandidos que dominam comunidades estimulam e mantêm a violência quando estes últimos também passam a eleger seus próprios membros para cargos de representatividade política. Esses acordos solapam a sociedade e a escraviza para o benefício econômico e político dos falcões, e mostram uma divisão de poder entre lideranças sociais e bandidos. O cidadão é então levado a transgredir as leis porque o relativismo moral em que vive distorce a noção de lei e ordem, enquanto o bandido garante sua existência encontrando brechas na lei e nas regras sociais.

Esta situação não de barbárie, pois o Estado existe e tem o poder de ordenação, bastando para isto reconduzir as instituições, uma vez corrompidas, ao seu papel de regulador da ordem social, jurídica e econômica. O ponto essencial aqui é entender o jogo que mantém o bandido em curso, e que deve garantir seu poder pela intimidação brutal e a descumprimento de leis pela corrupção. No estado atual em que a sociedade brasileira atingiu limites in suportáveis de violência em todos os níveis, ela passa agora a ser violenta e, como estamos começando a ver, partindo para estratégias brinkmanship como processo de sobrevivência. Pombos estão se tornando falcões.

Notas

Nota 1: a equação do replicador é uma expressão matemática que define o sucesso reprodutivo de uma espécie em relação às demais que com ela utiliza os mesmos recursos disponíveis. Isto não se refere necessariamente um ente vivo, mas qualquer coisa que se multiplique e esteja sujeita a competição, como, p. ex., o mercado de ações.

Nota 2: os jogos podem ser de coordenação, como no caso do dilema do prisioneiro, ou de anti-coordenação, como é o caso do chicken. Os primeiros só tem um equilíbrio Nash e os segundos três, considerando que jogam dois participantes. Nos jogos de coordenação ambos os parceiros usam a mesma estratégia e chegam a um só equilíbrio; ambos compartilham o mesmo recurso. Nos jogos de anti-coordenação, ambos participantes podem jogar diferentes estratégias (trocando as mesmas, daí porque é um jogo simétrico correlacionado) e rivalizam os recursos entre si.


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