Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Julho de 2014 - Vol.19 - Nº 7 Artigo do mês
SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 7
Carlos Alberto Crespo de Souza* 1.
Introdução. No
artigo anterior – Parte 6 – foi estudado, de maneira sumária, o terceiro
capítulo do livro de Medard Boss, “Na
noite passada eu sonhei...”, denominado “A compreensão fenomenológica ou daseinanalítica
dos sonhos”. Antes
de sua apreciação, um pequeno glossário foi disposto como forma de facilitar a
leitura e compreensão de termos utilizados na fenomenologia e, por conseguinte,
no próprio artigo e nos artigos anteriores já publicados. Como foi descrito, neste capítulo, Boss
retrata e exemplifica os sonhos evolutivos de uma paciente, estudante de
medicina, tratada por ele segundo os princípios da daseinanálise. Três foram os
sonhos registrados e relevante foi o fato de que, neles, as mudanças ou
modificações dos dentes da analisanda serviram de conteúdo às suas observações.
Segundo
meu entendimento, muitos aspectos dessas observações podem ser mencionados como
significativos ao entendimento do pensamento de Boss. Reproduzo, aqui, duas
dessas observações, capazes de sintetizar seu modo especial e diferencial de praticar
a onirocrisia em conteúdos físicos existentes em sonhos. A primeira delas, ao
afirmar que a verdadeira natureza da fisicalidade humana, da corporeidade
humana, só pode ser adequadamente compreendida como imediatamente pertencente à
existência humana, como constituindo uma esfera fundamental do ser-no-mundo;
este consiste em nada mais nada menos do que a soma total do potencial inato da
pessoa para perceber e responder aos significados dos entes que se lhe deparam
no campo aberto do seu mundo. A
segunda delas, ao dizer que a corporeidade humana não é apenas mais um objeto
materialmente presente, existindo da mesma maneira que outros objetos inanimados,
materiais. Ao contrário, todos os fenômenos corporais ou físicos do ser humano
nada mais são do que a esfera corporal ou física da relação com o mundo com
qual o ser humano existe num dado momento. Qualquer tentativa de entender a
natureza de um fenômeno humano físico deve, portanto, principiar com a busca da
relação específica na qual a existência humana em questão acha-se presentemente
existindo enquanto ser-no-mundo. Todos os fenômenos físicos seriam, então,
vistos simplesmente como campos desta relação com o mundo. Outra
importante contribuição de Boss, devidamente mencionada, diz respeito ao seu
entendimento de que o conteúdo da experiência onírica constitui um indicador
excelente da efetividade ou do fracasso do tratamento daseinanalítico. Por isso,
questionei no artigo: será essa sua experiência um paradigma a ser adotado de
modo geral ou restrito tão somente à técnica da compreensão fenomenológica? Por
extensão, o sonhar poderá ser relegado para segundo plano ou totalmente
desvalorizado em outras abordagens terapêuticas? A indagação serve como
conteúdo às reflexões. O
artigo - em sua Parte 6 - contempla outras ideias de Boss a respeito dos sonhos
e da natureza humana, e tenho a certeza de que sua leitura enriquecerá em muito
a formação e as habilidades terapêuticas, aumentando o leque de estratégias no
trato com os pacientes. Seguindo
no rumo do estudo, o artigo, em sua Parte 7, contemplará o capítulo quatro do
livro de Boss, denominado de “Comparação
entre uma compreensão fenomenológica do sonhar e a ´interpretação de sonhos`
das ´psicologias profundas`”. 2.
Sobre o Capítulo
Quarto. Neste
capítulo, Boss parte do pressuposto de que duas razões básicas o levaram a
optar por fazer uma distinção entre a abordagem fenomenológica do sonhar humano
e a interpretação baseada nas teorias de sonhos mais tradicionais. Em primeiro
lugar, disse ele, tal distinção esclarecerá efetivamente a verdadeira natureza
da abordagem fenomenológica tal como é aplicada na terapia Daseinanalítica. Em
segundo lugar, uma confrontação direta da compreensão fenomenológica do sonhar,
de um lado, e interpretações de sonhos freudiano-jungianas, de outro,
confirmarão que estas últimas, na verdade, não interpretam, isto é, tornam inteligíveis
os fenômenos do sonhar em si, e sim, consistentemente, reinterpretam sem que
esta reinterpretação tenha qualquer base em fatos observáveis. Mais
adiante, em seus considerandos introdutórios, afirma: “Raramente Freud e Jung buscam a riqueza de significados inerente aos
entes oníricos em si, preferindo em vez disso impor a eles um significado de
fora, de modo a torná-los conforme a teoria prescrita”. Com
essa frase ele demarca claramente sua discordância com as interpretações
chamadas por ele de tradicionais (Freud e Jung), ao mesmo tempo em que aborda
exatamente esse diferencial, através de exemplos, neste capítulo de seu livro. 3. Exemplos comparativos. 3.1
Quanto às interpretações freudianas,
Boss descreve quatro exemplos de sonhos que foram interpretados por Freud em
situações clínicas. Por conta do espaço restrito deste artigo, somente um caso
será documentado e discutido segundo seu discernimento. O caso: Boss inicia
afirmando que na famosa obra A
Interpretação dos Sonhos, de
Freud, há um exemplo particularmente grosseiro de como se pode cometer
violência com os fenômenos oníricos ao “interpretá-los”. Relata que em seu
primeiro trabalho sobre os sonhos esse exemplo foi brevemente mencionado,
embora sem qualquer entendimento daseinanalítico. Entretanto, agora, segundo
suas palavras, “Gostaria de me dedicar a
isso”. Prosseguindo,
menciona que Freud introduziu o seu relato do sonhar identificando o sonhador
como uma mulher agorafóbica, que na vida real era mãe de uma filha de quatro
anos. Segundo Freud, ela teria tido o seguinte sonho: “A sua mãe (avó
da criança) tinha forçado a filhinha dela (sonhadora) a viajar sozinha, mandando-a
embora. Ela (a sonhadora) está então viajando num trem com a sua mãe, quando vê
a filha andando exatamente nos trilhos do trem. Ela ouve o barulho de ossos se
esmigalhando (sente-se inquieta, mas não realmente horrorizada), e então olha
para trás pela janela do trem para ver se consegue divisar algumas das partes
(da sua filha atropelada). Ela então repreende a mãe por permitir que a pequena
criança saísse sozinha”. Ao
analisar a interpretação freudiana desse sonho, Boss expressa sua
inconformidade ao escrever: “No sentido
de sugerir um instinto infantil – voyeurista – que endosse sua teoria dos
sonhos baseada nas ciências naturais e que sirva como motor universal dos
sonhos, Freud arbitrariamente altera o texto do sonhar. A afirmação da
sonhadora de que `olha para trás pela janela... para ver se consegue divisar
algumas das partes´ é modificada por Freud para tornar-se `olha de trás para
ver se consegue divisar algumas das partes´. O
expediente utilizado por Freud, como justificativa para alterar (Boss utiliza o termo violar) o contexto
onírico, foi uma associação livre que ocorreu à paciente durante a sessão
analítica seguinte, quando ela se achava de novo em estado desperto. Sobre essa
alteração, eis o que disse Boss: “O
argumento de Freud, porém, por sua vez, se baseia meramente em outra de suas
intervenções arbitrárias. Ele julgou legítimo modificar a mera sequência
temporal das chamadas associações livres, transformando-as numa cadeia de
causas e de efeitos. Onde encontra justificativa para tal alteração arbitrária,
isso Freud não nos conta. Ele simplesmente acredita que tem o direito de mudar
as palavras”. Ao
avançar no texto, o autor refere que uma vez ter Freud imposto o princípio da
causalidade na sequência temporal das associações livres, torna-se evidente que
toda associação livre posterior é o efeito, e como tal o sentido básico de cada
associação anterior. Sobre isso, manifesta: “Esta manipulação lógica dá a Freud a possibilidade de estabelecer, de
fato, uma ligação entre o componente onírico ´para trás`, em sua forma alterada
´de trás`, com um pensamento posterior da paciente, que se recordava de uma vez
ter visto de trás as partes sexuais do pai quando este se achava no banheiro; e,
assim, presumivelmente, encontrando o instinto infantil voyeurista que a sua
pressuposta teoria queria que existisse”. Novamente,
como já assinalado em outros momentos, a compreensão do texto de Boss é bastante
difícil, de modo especial quando compara sua compreensão dos fatos oníricos com
os entendimentos freudianos. Sua leitura exige atenção máxima, uma vez que
minúcias revelam a distinção entre o pensamento de ambos. Com
uma parada para obter fôlego e advertir para o que virá, seguimos adiante com o
autor. Ele mostra que Freud criou construções mentais totalmente injustificadas
ao encarar como motor básico gerador de toda a imagem onírica manifesta o
impulso voyeurista e transformou o “para trás” em “de trás”. Então, ele
questiona: “Pois ao olhar para trás não
obtemos uma visão frontal do objeto? Na realidade, não existe nada com respeito
aos entes sonhados que sugira órgãos genitais vistos de trás, e tampouco esses
entes sonhados nos levam a crer, mesmo remotamente, que mandar uma garotinha
embora deva ser explicado, segundo a prática
freudiana, como uma ameaça de castração”.
Em
sequência, Boss assinala que o que realmente está ali no campo aberto da
percepção da paciente que sonha é algo inteiramente diverso. Por algum motivo,
ela se encontra em extrema proximidade de sua mãe. E também está acorrentada à
mãe no sentido emocional, tanto que a mãe pode lhe ordenar que mande a sua
filhinha embora sozinha. Em
princípio, a sonhadora obedece sem questionar, embora a atitude coloque a filha
em grande perigo. A filha é quase imediatamente assassinada pelo próprio vagão
do trem na qual a sonhadora e sua mãe se encontram. Só depois disso é que a
sonhadora se aventura a repreender sua mãe. Segundo
Boss, ao invés de usar a chamada “técnica da associação livre” para obter a
recordação da paciente de ter visto os órgãos sexuais do pai de trás, o
analista deveria alertar a paciente para o total poder que a mãe ainda detém
sobre ela no sonhar, pois esta não a tinha convencido, no sonhar da noite
anterior, a viajar consigo pelo mesmo caminho? Mais uma vez, cedendo facilmente
às ordens da mãe, não tinha ela permitido que sua filha fosse mandada embora,
e, conforme acabou se revelando, para sua própria morte? Nas
palavras de Boss, “A aparição em sonho de
uma mãe tão poderosa já é por si só um sinal de que a sonhadora continua a
existir como uma criança desamparada. Toda a intensidade da sua dependência
infantil em relação à mãe é revelada no sonhar, quando o trem, em que ambas
estão, esmaga a sua própria filha. Essa dependência é tão grande que deixa
soterrado o potencial da paciente para se manifestar como um adulto
independente, uma mulher e mãe totalmente crescida. Pois quando sua própria
filha deixa de existir – e a criança no sonho era sua filha – ela deixa de ser
mãe”. Uma
informação adicional sobre a vida pregressa da sonhadora, fornecida por Freud,
– e deixada por fora de sua interpretação – revela que, desde pequena, ela
sentia a presença da mãe como prejudicial às suas próprias relações amorosas, forçando-a
a assumir o comportamento de um garoto. Por isso, como consequência, muitas
vezes foi acusada de ser uma menina-moleque. Tomando
por base essa informação, Boss reforça seu entendimento de que a compreensão do
sonho referido na visão Daseinanalítica não distorce nem despreza os fatos da
experiência onírica, e deve ser relatada na íntegra para a paciente desperta. Como
passo terapêutico posterior, ela deve ser indagada se recorda quaisquer situações
despertas desde sua infância até ao presente, nas quais tenha demonstrado
semelhante dependência infantil em relação à mãe, bem como escravizada por ela.
Complementando,
Boss finaliza: “Presume-se que isto ajude
a paciente a entender, pela primeira vez, que é possível comportar-se em
relação a mulheres mais velhas de maneiras radicalmente distintas da sujeição
que ela sempre conheceu, tanto na sua vida desperta quanto no seu sonhar. (...)
Uma abordagem fenomenológica teria exortado a paciente a tematizar sua
dependência em relação à mãe, o que por sua vez teria aberto os seus olhos para
sua escravização, a tal ponto que as tendências para se libertar de seus
grilhões em breve teriam aparecido em sua vida desperta”. 3.2
Quanto às interpretações junguianas,
Boss examina um artigo escrito por Jung, em 1936, com o título A Natureza dos Sonhos. Nele, Jung formulou
sua teoria dos sonhos em alguns pontos fundamentais e, de maneira prática,
inseriu um sonho concreto nesse seu trabalho. Eis o sonho: “Um homem moço sonha com uma grande serpente
que está guardando um cálice dourado
numa gruta subterrânea”. Boss ressalta que, antes de reinterpretar o
sonho à luz das suas próprias premissas teóricas, Jung cita o argumento de
Freud de que nenhum entendimento adequado de um sonho pode ser conseguido sem a
cooperação do sonhador; ele aplica, então, o procedimento que ele próprio alega
ter desenvolvido, de “captação de contexto” (aufnahme des kontextes). Este
consiste em empregar as associações do sonhador no sentido de estabelecer as
nuances de significação, nas quais os fenômenos oníricos mais se sobressaem
para o sonhador. Logo a seguir, segue a descrever Boss: Jung
tenta então demonstrar que este método tipicamente fenomenológico é inadequado
por si só, com base no mesmo exemplo concreto. A única coisa que o paciente pôde
pensar em conexão com o seu sonhar foi a vez em que viu uma cobra gigantesca
num jardim zoológico. Sobre isso, Boss cita as próprias palavras
de Jung, ao nos contar sobre o sonhador: “Além desta, ele não conseguiu fornecer
nenhuma motivação possível para o sonho, exceto a recordação dos contos de
fadas. Um contexto tão desapontador nos levaria a acreditar que o sonho, embora
repleto de poderosas emoções, possui apenas importância desprezível. Mas isto
deixaria inexplicada a sua natureza explicitamente apaixonada. Neste caso,
devemos recorrer à mitologia, onde serpentes e dragões, cavernas e tesouros
representam um rito de iniciação para o herói. Torna-se então claro que estamos
lidando com uma emoção coletiva, o que vale dizer, uma situação emocional
típica cuja natureza não é basicamente pessoal, e sim apenas secundariamente.
Trata-se de um dilema humano que é desconsiderado subjetivamente e, portanto
penetra na consciência humana objetivamente... Neste caso, o paciente-sonhador
se esforçará em vão para entender o sonho com o auxílio do contexto
cuidadosamente captado, pois esse contexto é expresso em formas mitológicas que
lhe são alienígenas, que não lhe são familiares”. A seguir, Boss faz sua crítica: “Se
examinarmos as afirmações de Jung a respeito do sonhar com mais cuidado,
descobriremos que elas estão cheias de surpresas contemplativas. Elas estão
repletas de conclusões arbitrárias que dificilmente podem ser acompanhadas. E
mais ainda, em muitos casos, elas apresentam suposições impossíveis de serem verificadas como fatos provados”. Em auxílio às suas ponderações, Boss cita
Condrau (mencionado por mim no artigo de março/2014, Parte 3) quando este
contestou, em 1967, a interpretação arbitrária que Jung faz do sonhar,
apresentando em contrapartida outra baseada no método Daseinanalítico. Portanto,
os parágrafos descritos abaixo pertencem ao pensamento de Condrau: A primeira coisa digna de menção é que, do
ponto de vista Daseinanalítico, a interpretação que Jung faz do sonho falha no
seu propósito declarado de “captar cuidadosamente” o contexto pertinente. Isso
é especialmente verdade se a palavra “contexto” é usada no seu sentido latino
original, para indicar tudo que “fala com” o assunto presente. No sentido de
perceber tal “contexto”, faz-se necessário escutar com atenção e com grande
respeito a todos os sentidos e quadros de referência que constituem a essência
do ente onírico. Para adquirir o estado apropriado de atenção, o analista
precisa encorajar repetidamente o sonhador desperto a visualizar os entes que
apareceram à luz da sua existência onírica, e então descrever aquilo que
visualizou nos mínimos detalhes. Ele deve ser solicitado a retratar com igual
refinamento o comportamento com o qual respondeu ao chamado dos entes no seu
sonho. Este procedimento não projeta significado sobre os fenômenos oníricos
nem os reinterpreta de nenhuma maneira. Ele é, pura e simplesmente, um modo de
apreender mais e sucintamente o que alguém sonhou de fato, e depois conseguiu visualizar
novamente, ao acordar. Este método não difere daquele que normalmente usamos
para recordar quaisquer acontecimentos passados nas nossas vidas despertas. Para efeito desta “captação de contexto”,
porém, Jung contentou-se com duas memórias do paciente, isto é, uma visita ao
zoológico e os contos de fada que ouviu no passado. Presumivelmente, essas
recordações nem sequer pertencem ao “contexto” do sonho no sentido mais estrito
da palavra. Dificilmente poderia ter sido o encontro onírico com a cobra
material e concretamente presente em sonho que fez com que o paciente desperto
se recordasse da cobra no zoológico e as serpentes dos contos de fadas que
ouviu quando criança. Tais associações provavelmente pertencem à apreciação
geral do conceito “cobra” que o paciente tem na sua vida desperta. Em sequência, de maneira a avançar, e na
impossibilidade de a tudo reproduzir, escolhi alguns trechos que julguei os
mais representativos do pensamento de Condrau e pertinentes ao seu
questionamento sobre as ideias de Jung: “Num
procedimento Daseinanalítico esperar-se-ia que o paciente desse um relato
verbal de tudo mais que a cobra sonhada lhe comunicou. Um terapeuta
fenomenologicamente orientado, em outras palavras, não começaria como fez Jung
dirigindo o paciente para longe da cobra concreta do sonhar em direção a outras
noções de cobras, mitológicas, mais abstratas e distantes. Em vez disso, teria
insistido numa descrição simples, ainda que estritamente detalhada, das
características diretamente percebidas da cobra gigante e do seu meio ambiente.
Em vez disso, teria insistido numa descrição simples, ainda que estritamente
detalhada, das características diretamente percebidas da cobra gigante e do seu
meio ambiente. (...) Afirmamos anteriormente que a mera frequência de fenômenos
oníricos tais como este não justifica a invenção de um arquétipo mental
coletivo. É mais importante ver as cobras simplesmente como animais de um tipo
específico. Quer as encontremos em nossas vidas despertas ou no nosso sonhar, o
que se endereça a nós, vindo delas,
são os seus modos característicos de vida”. Mais adiante, escreveu: “Cobras sonhadas amiúde são ao mesmo tempo
cobras com existência humana, na medida em que possuem uma habilidade de
caráter humano, ou seja, perceber a significação das coisas e, como as pessoas,
exercer o livre arbítrio ao executar certas ações. De outra maneira, uma cobra
sonhada nunca poderia reconhecer que algo é um cálice dourado que precisa ser
guardado (desnecessário dizer, as cobras jamais foram treinadas pelo homem como
são os cães de guarda)”. Em outra observação significativa para a
compreensão de sua forte crítica, eis o que afirmou: “Finalmente, mas não menos importante, o sonhar que Jung relata expõe a
relação do sonhador com as duas coisas que definem o seu mundo de sonhar, ou
seja, o cálice e a cobra. O cálice é visto como sendo um objeto guardado, o que
indica que o sonhador é admitido para a vizinhança do mesmo, mas tem negado o
livre acesso a ele. O seu caminho acha-se obstruído por uma serpente perigosa e
hostil que guarda o cálice. Todas essas qualidades ajudaram a constituir os
detalhes concretos revelados no
sonhar ao paciente de Jung”. (...) Nenhum
dos significados inerentes aos entes oníricos precisava de um intérprete de
sonhos para classificá-los como produtos inconscientes, simbólicos, de um
componente separado da psique humana. Também não havia necessidade de
transformar os entes naquilo que eles ´realmente` significavam, e tampouco era
necessário recorrer à mitologia. (...) Em
primeiro lugar, Jung foi quase totalmente cego à riqueza de significado
inerente aos fenômenos concretos do sonhar do seu paciente. “Em segundo lugar,
ele abordava a análise dos sonhos com uma teoria preconcebida, que se baseava
na premissa de que fenômenos oníricos eram elaborações de forças e estruturas
arquetípicas atuando a partir de um inconsciente coletivo psicológico. (...)
Tudo em nome de uma teoria prescrita”.
4. Voltando a Boss. Quase
ao final do capítulo, Boss retoma as rédeas de seu texto e faz seus próprios
questionamentos em relação ao escrito por Jung. Por exemplo, refere que tanto a
natureza do sonho quanto a sua mensagem terapêutica emergirá, contrariamente ao
ponto de vista de Jung, sem qualquer apoio da mitologia ou do folclore, sem
qualquer conhecimento de psicologia primitiva ou religião comparativa, sem
qualquer auxílio da psicologia em geral. De fato, afirma que nenhuma doutrina
da psique se faz necessária. Ao
mesmo tempo, identifica que o terapeuta poderia, ao invés disso, partilhar as
seguintes percepções com o paciente desperto: a)
“Enquanto sonhava, o paciente tomou
consciência de estar numa caverna subterrânea perceptível, sensorial, concreta.
Poderia ser ele capaz de entender, ao despertar, que a localização do seu
sonhar numa caverna oca, material, não ocorreu por mero acaso, não se tratou de
um caso isolado, e sim, que num sentido existencial ele próprio permanece
enclausurado, ainda ser ter capacidade de alcançar e apreciar a luz do dia, e
abrir-se voluntariamente para a
amplidão do mundo?”. b) “A partir de uma cobra gigantesca,
temporalmente presente e sensorialmente perceptível, o paciente cujo sonho se
analisa, percebia a proximidade impressionante, opressora e, para ele, perigosa,
desse seu modo de vida como um animal, preso ao solo e rigidamente limitado nas
suas relações com aquilo que encontra. Sonhando, ele experienciou tudo isso
como pertencendo exclusivamente a uma cobra estranha e não familiar, fora e
separada do seu próprio ser. Será que o paciente seria capaz de enxergar mais
quando acordado do que tinha conseguido enxergar sonhando?”. c) “A serpente gigante se revelou no sonhar como
sendo uma criatura assustadora e hostil, que obstruía o caminho do sonhador. Poderia
o paciente desperto ver também outra coisa, ou seja, que as suas próprias
possibilidades de comportamento de caráter animal estão ameaçando a estrutura
de sua existência como qual ele havia até então se conhecido, isto é, como um
transeunte reprimido e conformista? Não deveria ele reconhecer e aceitar a
vitalidade e forças plenas das suas próprias possibilidades; que a sua
estrutura existencial presente, constrita e conformista, estava condenada a dar
lugar a algo novo e previamente desconhecido?”. d) “Ao sonhar, o paciente conheceu a qualidade
de ´ter forma de cálice` somente a partir da forma material e sensorial de um
cálice concreto. Agora que ele está desperto, será que consegue ver nisto uma
relação mais profunda com sua própria natureza? Pois a natureza humana também é
similar a um cálice na sua própria essência, ou seja, como um campo aberto,
perceptivamente receptivo, no qual emergem os fenômenos do mundo, e só desta
maneira vem a ser. Não existe algo de cálice no ser humano quando este, em
resposta às suas tarefas existenciais, se derrama em repostas para se dirigir
aos seres do seu mundo?”. e) “Finalmente, não poderia haver ainda outro
modo de o paciente ter uma visão mais clara quando desperto do que sonhando? No
estado de sonhar, o seu caminho para um cálice dourado altamente fascinante
achava-se bloqueado pela presença física assustadora da serpente. Poderia ele
reconhecer, agora desperto, que o medo que sentiu foi um medo de si próprio,
que o fazia construir as limitações de sua existência imaterial? Seria um medo
permanente de o seu próprio potencial existencial tornar-se escravo, à maneira
dos animais, de um relacionamento
´terreno`, erótico, com as coisas encontradas. Todavia, enquanto o
paciente falha em reconhecer as possibilidades de viver, mantendo-as tão longe
que aparentam ser hostis, como a cobra sonhada, ele está meramente existindo
pela metade. Pois não só não consegue trazer a força dessas possibilidades
existenciais para a sua atividade desperta, como também precisa gastar uma
energia enorme para mantê-las à distância”. Ao
finalizar, Boss argumenta que as perguntas que o terapeuta Daseinanalítico decide
dirigir ao paciente desperto, bem como a sua formulação precisa, dependem da
estimativa que o terapeuta faz da potencialidade do paciente na época. É sempre
melhor que o analista principie ajustando as suas perguntas às concepções
reinantes da pessoa que busca o seu auxílio; de outra forma, as perguntas não
serão compreendidas. Ele ainda complementa que “As minhas duas primeiras décadas de prática
analítica repousaram sob a égide estrita da metapsicologia de Freud. Foi uma
surpresa agradável, depois de eu ter trocado a visão freudiana pela
Daseinanalítica há cerca de trinta anos, perceber como as minhas perguntas
terapêuticas eram recebidas e entendidas de forma muito mais direta pelos meus
pacientes, e quão mais eficientes elas provaram ser”. 5.
Conclusão. O
texto escrito por Boss neste capítulo, segundo o meu pensar, embora exigente na
atenção às suas palavras para uma devida compreensão, por outro lado é capaz de
nos mostrar com clareza o diferencial entre a concepção daseinanalítica e as
concepções freudianas e junguianas na prática da onirocrisia. Percebi
seu texto como lições enriquecidas pela abertura de possibilidades reflexivas
ou de recursos a serem utilizados por quem pratica psicoterapia. Confesso, mais
uma vez, que não foi fácil chegar até aqui, porém o prazer de conseguir
incorporar seus ensinamentos foi precioso para mim. O
próximo artigo, o de número oito, finalizará o livro de Medard Boss com a
leitura e o estudo de seu capítulo cinco, denominado de “A Natureza do Sonhar e do Estar
Desperto”. Em um breve olhar sobre ele, creio que nos será de grande
valia... 6. Referências.
1.
Crespo
de Souza CA. Sonhos em Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 6. Psychiatry on line
Brasil. Junho 2014, vol.19, nº 4. 2.
Boss
Medard. Na noite passada eu sonhei... São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas
buscas em psicoterapia; v. 9). *
Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de
Barros Falcão – Porto Alegre, RS. **
Professor e Doutor em Psiquiatria. Endereço
p/correspondência: [email protected]
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