Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Maio de 2014 - Vol.19 - Nº 5 Artigo do mês
SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 5
Carlos Alberto Crespo de Souza* 1.
Introdução. No
artigo anterior – Parte 4 – o foco preponderante foi o de estudar as ideias de
Medard Boss em seu livro “Na noite
passada eu sonhei...”, referentes ao primeiro capítulo denominado de “Os atuais estados de conhecimento acerca dos
sonhos”. O capítulo, composto por quatro
tópicos, foi apresentado e disposto, resumidamente, aos leitores, mostrando os
entendimentos desse autor sobre cada um deles. 1 Como
visto, todos os tópicos estudados se mostraram relevantes em virtude de seus
inúmeros aspectos, que incluíram observações do autor sobre o desenvolvimento
histórico a respeito do entendimento dos sonhos e de suas críticas, pela confrontação
das ideias psicanalíticas freudianas ou junguianas, por dificuldades em seu
desapego e, em consequência, na inadequação de princípios fenomenológicos empregados
supostamente como tais por parte de alguns autores contemporâneos. As
minúcias, reveladas nesses tópicos pelo autor – como suas críticas sobre as
pesquisas neurológicas sobre o sono e o sonho e pesquisas estatísticas – ainda se
mostram pertinentes e atuais nos dias de hoje. Por isso e por conta de outras
contribuições desse capítulo, pode ser dito que sua inclusão foi significativa neste
trabalho. Vale
a pena reforçar que Boss, entre muitos de seus considerandos neste capítulo, evidenciou
o fenômeno de que “(...) as coisas
quantificáveis são inerentemente mais verdadeiras do que aquelas que podem ser apreendidas
qualitativamente, uma vez que só as primeiras se prestam a cálculos”. Com
essa frase mostrou o quanto a psiquiatria, com suas qualificações não
mensuráveis, é desacreditada pela ciência e de quantos esforços são necessários
para criar condições ou métodos interpretativos para a compreensão das
fragilidades, doenças ou sofrimento dos seres humanos que possam ser aceitos
como verdades e incorporadas pela ciência. Por
conta de seu ideário, renovo a importância de quanto seu pensamento esteve
voltado aos mesmos princípios de Jaspers, como já descrito anteriormente, no
sentido de criar, através da fenomenologia, uma nova maneira de apreender os
aspectos subjetivos do ser humano. Neste
novo artigo – Parte 5 – em sequência, será apreciado o capítulo dois do livro
de Boss. 2 2.
Capítulo dois: A
compreensão fenomenológica ou daseinanalítica dos sonhos. Neste
capítulo, Boss procura ensinar a maneira pela qual o entendimento
fenomenológico exerce sua compreensão sobre os sonhos. Logo de início, evidencia
que o papel do simbolismo tem sido expressivo e preponderante nas teorias sobre
os sonhos, porém argumenta sua crítica a respeito e procura estabelecer um novo
começo na análise do sonhar e dos elementos dos sonhos. Devo
reconhecer que não é fácil sintetizar o pensamento de Boss sobre o entendimento
daseinanalítico dos sonhos. Ele se utiliza de um exemplo muito simples, um cão
de carne e osso encontrando um ser humano desperto, para orientar nossa
compreensão e, ao mesmo tempo, questiona: “Agora,
por que não deixamos que os cachorros que habitam nosso mundo de sonhos sejam
os cães de carne e osso que eles mostram ser? Por que não podem os cães que
encontramos em sonhos permanecerem meros
cães?” Em sequência, segue questionando: “Meros cães? Você poderá
indagar. Mas por que questionar o ´meros`?” Como
resposta às suas indagações, fazendo de conta que está conversando conosco,
responde: “Qualquer cachorro, quer a
pessoa o perceba desperta ou dormindo, reúne um rico nexo de significados e
contextos de referência. Todos eles apontam para o reino animal como um todo,
em vez de apontar para o reino vegetal ou mineral”. A
partir daí, Boss realiza uma série especulações, muitas delas filosóficas,
sobre o significado de algumas palavras, notadamente “animal”, “natureza
animal”, “criatura” e de conceitos sobre o que seria a linguagem falada, a
corporal, a instintiva e de como os animais se relacionam com os seres humanos.
Depois de inúmeras considerações a respeito, menciona “Por mais tosco que tenha sido o nosso esboço da natureza dos cães, ele
abrange também a natureza dos cães sonhados, que são como quaisquer outros cães
que encontremos, nem mais nem menos. Como, então, podem os ´intérpretes de
sonhos` justificar a afirmação de que cachorros sonhados, juntamente com sua
natureza observável, representam a ´personificação` dos próprios traços animais
do sonhador? Onde pergunto, receberia o cachorro sonhado tal significação ´simbólica´-
a menos, é claro, que estejamos assumindo desde o princípio que o próprio
sonhador tenha criado o cão sonhado dentro de si e dado à sua criação um
significado ainda maior que qualquer deus estaria em posição de fazer”. Com
essa reflexão, pode-se dizer que Boss evidencia sua maneira de pensar os
sonhos: os cães sonhados são como cães na vida desperta, nada além. Os
simbolismos sobre seus significados extrapolariam o conhecimento natural e
criariam situações exageradas ou incompatíveis, as quais nem os deuses, com
seus poderes, seriam capazes de fazê-las. Para
ele não existe evidência de tal fabricante de cães oculto, endopsíquico. Todas
as nossas formas de experienciar aquilo que encontramos em sonho coincidem
exatamente – enquanto dura o estado de sonhar – com as maneiras que vemos os
entes em nossa vida desperta. Sobre isto, enfatiza: “Na ausência de provas fatuais, qualquer alegada significação
´subjetiva` adicional atribuída aos cachorros em sonho, junto com o agente ´
íntrapsíquico` produtor desta
significação (que necessariamente precisa ser pressuposto), deve ser rotulada
de elaboração mental do ´intérprete do sonho`. Tais elaborações nada têm a ver
com a realidade da experiência onírica em si”. Insistindo
no exemplo do cachorro, Boss afirma que é somente quando deixamos um cão
sonhado ser simplesmente um cachorro que ele começa a estimular o nosso
pensamento. O próprio fato de o sonhador humano perceber um cão ao invés de um
leão feroz ou um peixe, uma criatura domesticada de sangue quente ao invés de
uma planta ou uma pedra, conta a nós, sonhadores despertos, algo essencial.
Permite-nos reconhecer que, pelo menos durante o sonhar, algo na natureza de um
cachorro está afetando profundamente o sonhador. A mera presença do cão diz que
a existência do sonhador está suficientemente aberta para admitir o fenômeno
´cão` dentro da sua percepção onírica. Porém, há mais a descobrir, algo
importante: “O sonhador pode nos informar
como ele, um ser perceptivo, responde àquilo que percebeu, como se relaciona
com o cão. O sonhador pode se aproximar do cão alegremente, reagir com
indiferença ou fugir de pavor”. Ao
considerar esses pressupostos, o autor refere que podemos aprender muita coisa
acerca do sonhador humano atentando para estas duas circunstâncias. Diz ele que,
primeiramente, devemos considerar exatamente para que fenômenos a existência do
sonhador está aberta, a ponto de terem penetrado no sonho e se manifestado à
luz da sua compreensão. Isto, por sua vez, nos conta quais os fenômenos que não
são acessíveis à percepção no estado de sonhar ou, em outras palavras, para a
entrada de que fenômenos a existência do sonhador está fechada. Como
segundo passo, segue afirmando Boss, precisamos determinar como o sonhador se
conduz em relação ao que lhe é revelado no seu mundo onírico, particularmente a
afinação que determina essa forma de se comportar. Em seu entendimento, se
estas duas coisas puderem ser acuradamente descritas, chegaremos a uma
compreensão total da existência do sonhador durante o período de sonho. Em
sequência, afirma: “Qualquer comentário
adicional redunda em acréscimos arbitrários, pois a existência humana é por
natureza uma série de contatos e respostas específicas à presença significativa
dos fenômenos que se revelam no mundo da pessoa. Uma existência humana
obviamente envolve muito mais maneiras potenciais de perceber e agir do que
qualquer momento de sonho ou vigília apresenta, e estas possibilidades são
todas muito importantes para a pessoa em questão. Mas quando elas não se acham
envolvidas com o Ser-no-mundo do sonhador conforme existe em seu sonhar, pouco
contribuem para a compreensão dos
fenômenos oníricos como tais”. Uma
importante explicação sobre a abordagem fenomenológica para a existência onírica
é feita por Boss ao advertir que, embora ela possa ser cientificamente viável e
também uma fonte de grande valor em terapia, a aplicação terapêutica não deve
ser confundida com a compreensão fenomenológica dos elementos oníricos na
totalidade da sua significação. Eis o que diz: “Uma coisa é compreender este modo particular do Ser-no-mundo humano
ocorrendo durante o sonhar, e relatado depois; outra coisa inteiramente
diferente é aplicar esta compreensão de forma terapêutica ao sonhador desperto,
embora naturalmente a compreensão deva vir antes da aplicação”. Este
é um momento delicado quando se está procurando compreender o ideário de Boss
sobre os sonhos, sua aplicação terapêutica e o momento de utilizar o
conhecimento obtido. Suas palavras parecem claras, porém, para quem está
acostumado com as interpretações simbólicas há dificuldade em absorvê-las. Avançando
sobre isso, vale a pena insistir na leitura de algumas de suas considerações a
respeito. Para
ele, no que concerne à terapia, é muito diferente se o elemento do sonho é
reinterpretado a nível subjetivo, como um símbolo
psicológico profundo, ou utilizado fenomenologicamente para propiciar ao
paciente desperto pressentir suas próprias potencialidades de caráter canino.
Pois todas as interpretações simbólicas falham em levar em conta as limitações
do estado de sonho quanto a uma autoapreciação mais acurada. A distância do
paciente sonhador de si mesmo é visto no fato de que os fenômenos oníricos que
não pertencem à sua própria existência possuem, no entanto, o poder de
orientá-lo para aspectos potenciais de seu próprio ser. Em
sequência, acrescenta que, na melhor das hipóteses, o paciente aprende as
reinterpretações simbólicas dos fenômenos sonhados numa base intelectual
superficial. Mas, se um paciente desperto é simplesmente indagado se sente
possibilidades existenciais de si mesmo que correspondam à significação das características
dos fenômenos sonhados, a percepção apropriada revelar-se-á vindo do coração e
será abraçada. Segundo suas palavras “Mais
uma vez, a questão apropriada é se o sonhador desperto percebe possibilidades
existenciais caninas de si próprias mais claramente agora do que ocorria
enquanto sonhava. Tal apego fenomenológico à experiência real torna supérfluas
todas as hipóteses de um inconsciente psíquico”. Como
se não bastasse essa assertiva, completou: “Mais
adiante mostraremos em detalhe porque a suposição da psicologia profunda
referente a um inconsciente psíquico é não só desnecessária para uma teoria dos
sonhos adequada, mas muito prejudicial a qualquer aplicação teórica ou prática
do conhecimento obtido dos sonhos”. Prosseguindo
em sua argumentação, Boss menciona que o problema supostamente complexo da interpretação do sonho pode ser reduzido
a duas perguntas simples. A quais fenômenos a existência da pessoa na época do
sonho está aberta a ponto de permitir que eles se revelem em sonho, e assim
venham a existir? A segunda pergunta diz respeito a se, agora que a pessoa está
desperta, ela é capaz de reconhecer traços de sua própria existência que são
idênticos em essência aos traços dos fenômenos que pode perceber no estado de
sonhar, porém só fora de si própria, em objetos, animais ou seres humanos externos. Se
fizermos isso, diz ele, não necessitaremos mais tomar um modo particular de
existência, a existência onírica, e objetificá-la como algum sonho concreto que a pessoa possa ter. E, menos ainda, seremos tentados a
personificar a existência onírica como um homúnculo na mente de sonhador que
pode mobilizar uma vontade própria e engajar-se em manobras estratégicas contra
o sonhador. Ao
defender sua teoria dos sonhos, que pode ser chamada de abordagem
fenomenológica, Boss esclarece “Livres
dos acréscimos supérfluos e enganosos das modernas teorias psicologísticas do
sonho, estaremos prontos a começar o treinamento para uma visão não distorcida
do Ser-no-mundo de seres humanos que sonham. Uma abordagem tão simples é com
frequência criticada como banal, mas conforme o nosso esboço da natureza canina
demonstrou claramente, esta crítica recai sobre os próprios críticos, pessoas
que se tornaram cegas à riqueza de significado existente em cada fenômeno que
encontramos, seja acordados ou sonhando. É precisamente um apego ao banal que
restringe a sua visão de modo a enxergar apenas a pobreza das coisas”. Complementando
seu pensamento, o autor enfatiza que sua abordagem fenomenológica dos sonhos é
oposta às atitudes causais e deterministas *, uma vez que se prende
estritamente aos fenômenos reais do sonhar. Ela almeja apresentar um quadro
cada vez mais claro destes fenômenos – que sempre puderam ser vistos, ainda que
indistintamente, desde o início. * Oposição aos entendimentos
psicanalíticos de Freud ou de Jung. Em
sequência, no capítulo, Boss passa a descrever exercícios práticos na
compreensão fenomenológica dos elementos oníricos, examinando sequências de
sonhos bastante simples, prosseguindo progressivamente até aos mais
complicados. Ele ressalta, como ensinamento, que o aprendizado sobre o método
exige a repetição dos exercícios em sua prática. 3.
Exercícios na
abordagem fenomenológica do sonhar, com ilustrações para
a prática desta nova compreensão dos sonhos. Sob
este título, ao término do capítulo, Boss ilustra sua abordagem dos sonhos, de
maneira prática, ao descrever inúmeros casos clínicos estudados por ele. Ao
todo, são 28 sonhos, que incluem estados psicológicos e psicopatológicos
diferentes. São citados exemplos de sonhos simples de um europeu sadio (um
caso), de recrutas sadios do exército suíço (sete casos), de uma mulher
americana negra, sadia, de vinte e oito anos, em gravidez adiantada (um caso),
de pessoas neuroticamente * perturbadas (catorze), com lesões cerebrais (um
caso) e de pacientes psicóticos (quatro casos). * Cabe lembrar que
este texto foi escrito no ano de 1979, em plena vigência de classificações
diagnósticas da época. Os
casos descritos como “de pessoas neuroticamente perturbadas” incluíram
situações clínicas como frigidez, sentimento de solidão e ausência de sentido da
vida, incapacidade de ejaculação e de obter orgasmo a despeito de uma ereção
plena e fácil, frigidez mais conduta infantil e ansiedade significativa, forte
ansiedade, relacionamento perturbado com homens, depressão e falta e
dificuldade de relacionamento com os outros, incapacidade de manter um relacionamento
íntimo, só em fantasia, impotência orgástica, relacionamentos afetivos hetero e
homoafetivos perturbados, depressão crônica e extrema falta de contato com seu
meio ambiente ou com relacionamentos conflitivos, timidez no relacionamento com
homens, comportamento infantilizado num homem de vinte e quatro anos,
sentimentos de inferioridade e de uma mulher com muitas queixas psicossomáticas
gastrointestinais. Por
sua vez, os casos descritos de sonhos “de pessoas com transtornos psicóticos”
incluíram pacientes com psicose maníaco-depressiva e esquizofrenia. Nesse
contexto, o ideal é que para cada um desses exemplos clínicos pudesse haver a transcrição
completa dos casos, porém, aqui, neste breve artigo, as limitações de espaço
não permitem essa reprodução integral. Por conseguinte, apenas um caso será retratado,
que espero seja capaz de mostrar e de ilustrar aos leitores a maneira
operacional de Boss ao analisar os sonhos de um ponto de vista fenomenológico.
Como sempre, reforço a necessidade de que a obra completa desse autor seja lida
e avaliada, pois somente assim seus propósitos poderão ser mais bem absorvidos.
Cabe lembrar que, neste estudo sobre os sonhos a que me propus, são lançadas
ideias de diferentes autores, como uma inquietação ou provocação ao pensar
clínico e científico, além de beneficiar, como consequência, os pacientes
atendidos por nós, profissionais envolvidos com sua saúde mental. 4.
O sonho
escolhido como exemplo. O
sonho escolhido como exemplo foi o de nº 9, no livro de Boss. Corresponde ao
sonhar de um homem de trinta anos, solteiro, sofrendo de depressão e dificuldade
de relacionamento com outros seres humanos. Eis o sonho: “Na noite passada eu sonhei que
estava ao lado de uma barraca de cachorro-quente. Eu tinha acabado de pedir um
cachorro-quente e estava tendo uma conversa agradável com o vendedor, quando
uma mulher jovem apareceu do meu lado e começou a achegar-se a mim. Eu fiquei
com um medo violento dela e fugi o mais depressa que pude, esquecendo até mesmo
de levar o meu cachorro-quente”. Segundo Boss, a linha de questionamento
terapêutico recomendada poderia desenvolver-se da seguinte maneira: a)
“Eu
acho formidável que, pelo menos ao sonhar, você se permite experimentar o
prazer sensorial profundo, embora não compartilhado, de comer um suculento
cachorro-quente, e que você esteja suficientemente despojado para apreciá-lo em
público, numa barraca em uma praça movimentada”. b)
“De
outro lado, você não julga bastante estranho que, quando uma mulher se aproxima
de você de forma altamente erótica, você a enxerga somente como uma criatura
assustadora, provocadora de ansiedade?” c)
“Você
está cônscio da medida em que a ansiedade o oprime na presença da jovem mulher,
forçando-o a fugir e impedindo-o de gozar o prazer sensorial de consumir o seu
cachorro-quente em paz?” d)
“O
que é que você concretamente receia, na sua vida desperta, com relação à
presença erótica e sensual de mulheres?” Além
desses questionamentos terapêuticos possíveis, ao analisar esse sonho, Boss
contrapôs suas concepções interpretativas fenomenológicas às analíticas
freudianas, estabelecendo com elas os parâmetros diferenciais existentes. Por
sua importância em termos metodológicos, transcrevo integralmente o que
escreveu. “Não há nada mais fácil, é claro, do que
transformar o cachorro-quente sonhado num símbolo freudiano para o órgão masculino.
Mas onde está a justificativa para um passe desses? Além disso, transformar o
cachorro-quente num pênis, ou pseudopênis, implicaria numa percepção paralela:
nem o analista nem o paciente seriam capazes de reconhecer que a terapia até o
momento tinha permitido ao paciente abrir-se o suficiente para comer algo
sozinho, mas não o bastante para acomodar o tipo de prazer erótico interpessoal
em cuja relação o órgão masculino realmente está incluído como parte da sua
esfera física. Aqui temos então outro exemplo da vantagem obtida ao se permitir
que um objeto sonhado, tal como um cachorro-quente,
permaneça simplesmente aquilo que ele aparenta
ser”. A
seguir, prossegue: “Naturalmente, até
mesmo um cachorro-quente possui uma multiplicidade de significados e quadros de
referência, e estes devem ser trazidos para a atenção do paciente. Entre outras
coisas, o cachorro-quente do nosso sonhador aponta diretamente para a barraca
de comida na qual ele é comprado, o açougueiro que o fabricou e o simpático
vendedor. Aí, também, a barraca de cachorro-quente numa esquina é o oposto de
uma sala de jantar elegante num hotel de primeira classe. Não importa quão
modesta seja a barraca, ou o preço, o processo de comer um cachorro-quente,
todavia, constitui assimilação de algo feito de carne, algo animal, em vez de
alguma coisa sem sangue pertencente ao reino vegetal”. Em
seguida, menciona: “Na teoria
psicanalítica da libido, o ato de comer um cachorro-quente neste sonho seria
tomado como um sinal de que o sonhador se achava fixado no estágio de
instinto oral. Mas nenhuma teoria dos
instintos pode ser ampla o bastante para explicar até mesmo uma atividade
existencial tão simples quanto comer um cachorro quente. Como qualquer outro
empreendimento humano, comer um cachorro-quente pressupõe que a presença e
significação do objeto à mão tenham sido percebidas. Nenhuma libido, nenhum
instinto, total ou parcial, possui a capacidade de perceber a significação de
um objeto tal como é: a libido não pode reconhecer um cachorro-quente como um
cachorro-quente. Como meros quanta
de energia ´cega`, coisas como libido e
instintos jamais podem gerar o tipo de abertura perceptiva que é a base da
nossa existência humana”. Logo
adiante, argumenta: “Quer a atividade
particular seja comer um cachorro-quente ou qualquer outra coisa, os fenômenos
humanos não podem ser atribuídos a uma energia que misteriosamente seleciona um
objeto do mundo exterior, e então o ´agarra` libidinalmente. Não, a atividade
emerge de uma união inseparável da percepção humana com o ente percebido, de
modo tal que o ente possa se manifestar e assumir presença à luz da percepção
humana”. Finalizando,
observa: “Uma compreensão genuína de qualquer comportamento humano deve enxergar
a relação entre homem e objeto não como uma relação bipolar, isto é, existindo
entre dois objetos inanimados separados, mas como uma unidade integral na qual
os entes do mundo reivindicam existência humana, envolvendo-a como uma situação
na qual se apresentam. Pois elas vêm a ser somente ao penetrar no campo
aberto da perceptividade humana”. 5.
Comentários. O
sonho escolhido por mim, de maneira a ilustrar a forma de compreensão ou o entendimento
fenomenológico de Boss, foi um sonho curto e bastante simples em suas
características descritivas que, até certo ponto, pode ser qualificado como
singelo ao expressar atitudes bem humanas encontradas em nosso dia a dia. Como
revelado acima, ele foi o de nº 9 entre os 28 descritos e comentados por Boss,
sendo alguns deles bem mais complexos e exemplares de transtornos psiquiátricos
e situações existenciais diversas. Por isso, minha recomendação de que sejam
lidos em sua integralidade, pois, segundo esse autor, o aprendizado da
fenomenologia exige repetição em sua maneira distintiva de interpretar os
sonhos, especialmente em relação à reconhecida e costumeira interpretação
simbólica freudiana. No
artigo seguinte – em sua Parte 6 – o livro de Boss, agora em seu terceiro
capítulo, denominado de “A transformação do ser-no-mundo onírico de
pacientes, no decorrer da terapia daseinanalítica, em sua concretização
ôntica”, será apresentado e estudado. Neste capítulo, ele mostra o
resultado terapêutico de alguns pacientes tratados por ele e estabelece uma
íntima relação evolutiva com seus sonhos. Somente esse aspecto já está a nos
criar expectativas sobre o que virá, oportunizando novas aberturas no sagrado
campo do conhecimento. 6. Referências.
1.
Crespo
de Souza CA. Sonhos em Psiquiatria e Psicoterapia – Parte 4. Psychiatry on line
Brasil. Abril 2014, vol.19, nº 4. 2. Boss Medard. Na noite passada eu sonhei...
São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas buscas em
psicoterapia; v. 9) *
Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de
Barros Falcão/Clínica São José – Porto Alegre, RS. **
Professor e Doutor em Psiquiatria. Endereço
p/correspondência: [email protected]
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