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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2014 - Vol.19 - Nº 4

Artigo do mês

SONHOS EM PSIQUIATRIA E EM PSICOTERAPIA – PARTE 4

Carlos Alberto Crespo de Souza

1.      Introdução.

No artigo anterior – Parte 3 – os princípios fenomenológicos foram estudados de maneira a embasar o que viria a seguir sobre os sonhos mediante a ótica desse entendimento alicerçado nas ideias filosóficas de Husserl e Heidegger.

O texto tornou-se denso, talvez até difícil, porém necessário à compreensão de um movimento enraizado na filosofia, cujos principais cérebros criativos, por serem predominantemente alemães, somente depois de muitos anos tiveram seus escritos traduzidos para outras línguas. Este fato, sem dúvida, determinou que as ideias desses pensadores sobre o ser humano ficassem pouco conhecidas ou alcançassem maior divulgação no cenário internacional. Como exemplo, de maneira a mostrar a dimensão temporal desse fato, o livro de Jaspers – “Psicopatología General” - bastante referido no texto do artigo, levou cinquenta anos até ser traduzido tanto para a língua inglesa quanto para a língua espanhola.

Pensar, nos dias de hoje, com as facilidades de obtenção de textos via Internet - quase simultâneas em relação à produção original - que um texto ou um livro de psiquiatria possa ter ficado inacessível por tantos anos é quase inacreditável ou inconcebível. Porém, isso ocorreu com o livro de Jaspers, hoje reconhecido como uma das mais importantes contribuições à psicopatologia. 

O artigo anterior, ao fornecer uma visão mais complexa e histórica sobre os fundamentos da fenomenologia, mostrou suas origens, ramificações, com seus diversos contribuintes, suas ideias e a complexa situação sobre a validação dos sintomas subjetivos pela ciência. Como a subjetividade é desvalorizada, esse assunto é discutido, incluindo as concepções de Jaspers, há mais de 100 anos, e as ideias de Damásio, na modernidade.

Com esperança de que esses textos preliminares sobre a fenomenologia tenham fornecido os conteúdos mínimos necessários à sua compreensão, enquanto métodos de investigação psicológica e psicopatológica, no presente artigo serão abordados os sonhos segundo o entendimento de Medard Boss. Este autor, como referido no artigo anterior, ao lado de Jaspers, preocupou-se, sobremaneira, em utilizar os conceitos fenomenológicos em busca do entendimento da subjetividade no sofrimento humano, de maneira que suas manifestações pudessem ser acreditadas ou validadas pela ciência, fato até hoje de difícil assimilação.  

2.      Meu encontro com Boss.

Influenciado pelo professor de psiquiatria, Dr. José de Barros Falcão - homem de extraordinária cultura e grande responsável por minha formação - aos poucos fui me interessando por autores de diferentes concepções psicológicas ou psiquiátricas. Minha curiosidade, incentivada, me levou ao conhecimento de Sullivan em sua teoria interpessoal em psiquiatria, à teoria da comunicação terapêutica de Jurgen Ruesch, às obras de Freud e Melanie Klein, à teoria dos sistemas de Bertalanfay, à psiquiatria fenomenológica de Jaspers, a Carl Rogers com sua terapia centrada na pessoa, à psiquiatria existencial de Binswanger e seus seguidores na América do Norte, como Gordon Allport e Rollo May, aos estudiosos do casamento, amor e família, como Macfarlane e Ariès, e de outros tantos de áreas diversas.   

Sobre Binswanger e sua ideias, contemporâneo de Freud e seu amigo, apreciei-as por conterem formulações um tanto diferenciadas em relação às freudianas, ao mostrar outra forma de encarar e compreender o ser humano, fato a enriquecer as possibilidades compreensivas sobre as dificuldades dos pacientes.  

Com a semente da curiosidade implantada em meu ser, em 1971, ainda bastante jovem e com muita energia pelo novo, viajei à Madri, Espanha. Lá, procurei e encontrei a Editorial Gredos, editora responsável pela tradução ao espanhol de autores alemães e pela editoração dos livros de Binswanger. Ali, então, adquiri livros desse autor e de outros até então desconhecidos por mim. Entre eles, menciono alguns da minha biblioteca particular, até hoje, como verdadeiras preciosidades ou relíquias. Como exemplos, cito a Dieter Wyss com seu livro “Las escuelas de Psicologia Profunda”, Walter Bräutigam com seu “La psicoterapia em su aspecto antropológico”, Gion Condrau com seu “Angustia y Culpa”, Viktor Frankl com seu “Teoría y Terapia de las Neurosis”, Henri Ey com seu “La conciencia” e, finalmente, pelo de Binswanger “Artículos y Conferencias Escogidas”. Antes disso, já havia adquirido, aqui no Brasil, o livro de Rollo May, Ernest Angel e Henri Ellenberger com o título de “Existencia: Nueva dimensión em psiquiatría y psicologia”, também da Editorial Gredos, com data de fevereiro de 1958, o qual, certamente, contribuiu bastante para que buscasse outros autores de inclinação fenomenológica ou existencial.            

A leitura desses livros - depois de chegados pelo correio - além dos outros, aqui adquiridos, com seus conteúdos complexos, aos poucos permitiram que eu passasse a compreender alguns conceitos emitidos pelos diferentes autores sobre a complicada existência do ser humano, que incluem angústia, culpa, consciência de sua frágil situação no mundo, sistemas defensivos e o campo de atuação da psiquiatria, tão difícil nesse contexto.  

Em determinado dia, mais precisamente no ano de 1986, em pleno verão, viajei de Porto Alegre para Torres. Chegando à rodoviária, um pouco antes do horário de partida do ônibus, comecei a andar por suas dependências e, no passeio, me defrontei com uma pequena livraria. Como sou apreciador de livros, aproximei-me da vitrine, e ali vi, de imediato, um livro que me chamou a atenção: “Na noite passada eu sonhei...”, de Medard Boss. Sua capa não evidenciava tratar-se de um livro de caráter científico, muito pelo contrário, mais parecia um livro desses de cultura geral, com imagens de capa chamativas a leitores não especializados. Além disso, o próprio local de exibição do livro, por ser um ambiente frequentado por muitas pessoas, de diferentes níveis sociais, e não uma livraria de livros científicos ou de medicina, dava a impressão de que fosse mais um de tantos livros ou folhetins que tentam explicar os sonhos através de entendimentos estereotipados ou desconexos com a realidade.

Mesmo assim, embora imbuído por essas ideias preconceituosas, fui ao balcão da livraria e pedi para manuseá-lo. A grande surpresa foi verificar que, sob esse título, e com as características acima mencionadas, encontrei um livro eminentemente científico, de um autor visceralmente comprometido com as concepções fenomenológicas. A consequência lógica desse reconhecimento é que, de imediato, adquiri o livro.     

Dessa forma, considero que ali me encontrei com Boss pela primeira vez, um encontro frutífero pelo que aprendi sobre suas concepções a respeito dos sonhos. Ao longo da viagem fui lendo e apreciando suas ideias, com uma íntima satisfação de conquista por algo novo e de importância à compreensão dos  sonhos.                                                             

3.                                                                                                                                                                      Apresentação do livro da edição brasileira.

 A apresentação do livro do Prof. Medard Boss, em sua edição brasileira, foi feita pelo Dr. Solon Spanoudis, já citado no artigo anterior, no ano de 1979. O fato ocorreu depois de um seminário realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob o título “A compreensão Daseinanalítica dos Sonhos”.  

Segundo o Dr. Spanoudis, o seminário despertou grande interesse e serviu de estímulo não somente a uma nova maneira de compreender os sonhos, mas também para a Daseinanálise de modo geral. Como consequência desse sucesso, o livro de Boss “Es träumte mir vergangene Nacht”  foi traduzido para a língua portuguesa.

De acordo com o tradutor, uma significativa informação mereceu ser considerada: em português e em inglês temos uma forma verbal ativa – “Eu sonhei” e “I dreamt” – que em alemão corresponderia a “Ich habe geträumt”. Porém, Boss preferiu a forma passiva “Es träumte mir”, que poderia ser traduzida como “Me ocorreu um sonho, me veio um sonho”, ou usando uma expressão da gíria atual, “Me pintou um sonho”. Essa escolha de Boss não foi fortuita, pois esteve intimamente relacionada com suas concepções de apreender ou captar as manifestações genuinamente humanas, simples e sem qualquer tipo de preconceito ou predisposição teórica.   

4.                                                                                                                                                                        As ideias de Boss sobre os sonhos.

Este livro possui 204 páginas e é constituído por cinco capítulos. Os capítulos têm como título: “Os atuais estados de conhecimento acerca dos sonhos”, “A compreensão fenomenológica ou daseinanalítica dos sonhos”, “A transformação do ser-no-mundo onírico de pacientes, no decorrer da terapia daseinanalítica, em sua concretização ôntica”, “Comparação entre uma compreensão fenomenológica do sonhar e a interpretação de sonhos das psicologias profundas” e “A natureza do sonhar e do estar desperto”.

No Prefácio desse livro, Boss chamou a atenção para este volume, que representou sua segunda tentativa de penetrar na natureza dos sonhos, de obter uma compreensão nova, não tendenciosa do seu significado e de chegar a aplicações práticas a serem utilizadas por sociólogos, educadores, psicoterapeutas e práticos religiosos. E enfatizou que seu primeiro livro sobre os sonhos, de 1953, “O sonho e sua Interpretação”, teve um intuito mais histórico, classificatório e teórico, contrastando com o atual, bem mais prático. Segundo suas palavras, “O presente volume tem por objetivo, portanto, ser um simples livro de exercício. Mas exercitar envolve repetição constante. Somente demonstrando o mesmo fato em toda uma série de exemplos é que este livro pode servir o seu propósito mais importante. Somente o exercício constante pode produzir uma compreensão nova dos sonhos, uma compreensão que seja verdadeiramente fenomenológica e existencial (daseinanalytisch)”.     

Ainda no Prefácio, Boss evidenciou que nas páginas deste livro encontram-se dezenas de relatos de sonhos dados por também não europeus, sadios e doentes. Que algumas dessas pessoas chegaram a viajar procurando-o para análise, outros estavam sob os cuidados de terapeutas locais, que lhe permitiram ter consultas com os pacientes no decorrer de suas viagens internacionais. Resumindo, afirmou que os resultados são descrições de experiências oníricas de norte-americanos de todas as cores: brancos, negros, amarelos e vermelhos; de sul-americanos brancos e negros, de índios dos extremos norte e sul daquele subcontinente; de homens e mulheres indonésios, extraídos de cidades grandes como Jacarta e Jogokata, mas também dos mais recônditos cantos da ilha de Java; finalmente, há sonhos colhidos na China e no Japão. Portanto, com essa diversidade étnica e cultural em seus exemplos, Boss permitiu-se afirmar: “A natureza do sonho (...) pode ser vista (...) com alguma justificação, como a natureza dos sonhos humanos contemporâneos em si, e não apenas de um grupo de gente limitada social e geograficamente”. 

4.1 – Capítulo 1: Os atuais estados de conhecimento acerca dos sonhos.    

O capítulo é subdividido em quatro tópicos, a saber: Interpretação de Sonhos das Psicologias Profundas, Pesquisa Neurológica sobre Sono e Sonho, Pesquisa Estatística dos Sonhos e Estudos Fenomenológicos de Sonhos Feitos por Outros Pesquisadores.     

No primeiro tópico, Interpretação de Sonhos das Psicologias Profundas, Boss referiu que “Na noite passada eu sonhei...” é o início de uma sentença que psiquiatras, psicoterapeutas e psicólogos contemporâneos ouvem milhares de vezes. Que a razão de a ouvirem com tamanha frequência é o interesse que geralmente eles têm no sonhar dos pacientes. Contudo, afirmou: “(...) o interesse no sonhar não se restringe aos psicoterapeutas modernos. Ele é tão velho quanto o próprio homem”.  

Entretanto, segundo suas palavras, a pesquisa sistemática somente foi incorporada à ciência moderna desde o trabalho pioneiro de Freud “A Interpretação dos Sonhos”, na virada do século passado. Porém, no texto, ele demonstra que as descobertas feitas por arqueólogos se mostraram concordantes depois de considerações iniciais de que fossem visionários ou tapeadores, segundo ilações do próprio Freud, fato que não ocorreu com as interpretações feitas por “analistas corretamente escolados” de um e único sonho.

Sobre isso, Boss mostra que aquilo que seria a maior esperança científica sobre os sonhos, ao longo dos tempos, foi duramente criticada por alguns analistas, até por testemunhos de alguns que foram alunos ou discípulos de Freud. Dentre eles, cita Wittgenstein, Jones, Zane e Eckardt.

O ponto essencial da crítica ou do entendimento de Wittgenstein sobre a interpretação freudiana dos sonhos pode ser sintetizado em sua frase: “Isso me faz recordar o maravilhoso dito: Cada coisa é o que é, e não outra coisa qualquer”. Boss aproveita esse entendimento, cita Goethe com seu aforismo “Não procure nada por trás dos fenômenos; eles próprios são a lição” e o grito de Husserl “Voltem às coisa mesmas”, para demonstrar que são convites a uma nova maneira de pensar, “uma maneira que podemos chamar de fenomenológica”.

R. M. Jones, também psicanalista, é mencionado por Boss por conta de uma gigantesca tarefa realizada por ele ao fornecer um apanhado geral de todas as modernas teorias de sonhos, desde Freud a Erikson, em seu livro “The new psychology of dreaming”, no ano de 1970. Eis o que disse Boss sobre tal obra:Sua pesquisa culmina na resignada admissão de que a literatura sobre os sonhos até hoje não tem sido nada mais do que uma multiplicidade de especulações, nenhuma delas merecendo preferências sobre as outras”. Mais adiante, afirma: “Jones compara os pesquisadores de sonhos com os proverbiais cegos que tentam descobrir a natureza do elefante. Cada um deles toca uma parte distinta do corpo do animal. Um, segurando uma perna, toma-o como erroneamente uma coluna; outro agarra a cauda e conclui que o elefante é uma borla de mobília; e assim por diante”.   

Dentro desse contexto crítico sobre as concepções freudianas dos sonhos feitas por analistas ligados a Freud e suas teorias, Boss cita ainda as conclusões feitas por Zane e Eckardt sobre os resultados de um simpósio sobre os sonhos organizado, por um período de cinco anos, pelos membros da Academia Americana de Psicanálise. As sínteses sobre esse simpósio podem ser encontradas no livro de J. H. Masserman, de 1971, com o título de “Dream dynamics, scientific proceedings of the American Academy of Psychoanalysis”.

Embora um tanto longo o parágrafo, vale a pena mencionar o que disseram Zane e Eckardt na avaliação do simpósio: “Nada parece mais importante para o nosso campo do que confrontar a recorrente descoberta do nosso grupo de trabalho nos seus cinco anos de existência, ou seja, que olhando para o mesmo sonho psicanalistas extraíram significados muito diferentes, assumiram abordagens muito diversas e tiveram uma extraordinária dificuldade de se comunicarem mutuamente; e nossas divergências na verdade aumentaram quando, além do sonho manifesto, fornecemos material clínico sobre o sonhador e sua terapia”. Ao encerrar o parágrafo, concluíram: “Não deveríamos, então, olhar mais de perto a nossa forma de trabalhar com sonhos como terapeutas individuais, se aquilo que damos aos nossos pacientes recebe tão pouco apoio dos nossos colegas? (...) A persistência de tais diferenças por tanto tempo pode muito bem significar algo fundamentalmente errado com a maneira de nós psicanalistas trabalharmos com sonhos”.       

Alongando-se nessas avaliações, Boss reproduziu, palavra-por-palavra, uma transcrição de fita gravada de um diálogo médico-paciente, feita em 1967, em que Zane preparou para os membros do seminário. Na impossibilidade de transcrever essa gravação em sua totalidade, aqui, neste breve relato, e os comentários divergentes sobre um mesmo sonho interpretado por cinco diferentes participantes, sugiro sua leitura na íntegra e apenas menciono o que disse Zane depois de ouvir os depoimentos ou interpretações de seus colegas de seminário: “A menos que possamos resolver o inquietante fenômeno de diferenças irreconciliáveis nas respostas ao mesmo sonho, conforme foi revelado em nosso grupo de trabalho, sinto que psicanalistas qualificados continuarão a dar respostas altamente individuais ao mesmo sonho, e o campo da psicanálise continuará a pressupor um conhecimento do comportamento humano enquanto seus praticantes, quando se reúnem para estudar uma importante área clínica, mal serão capazes de compreender-se e comunicar-se mutuamente.      

No segundo tópico, Pesquisa Neurológica sobre Sono e Sonho, Boss se reporta às descobertas de Aserinsky, Kleitman e Dement de que o sono humano não é uma condição que se mantém homogênea durante toda a noite. Menciona que a descoberta se deu observando os potenciais elétricos do cérebro de pacientes, durante todo o período de sono, através de um eletroencefalograma.

Depois de algumas considerações a respeito, Boss resume seu entendimento afirmando que “Os achados da pesquisa do sono certamente são muito interessantes à sua maneira, e até mesmo necessários. Mas não nos contam quase nada sobre aquilo que supostamente devem representar. (...) Eles estabelecem meramente uma relação do tipo quando-então. Quando o aspecto cerebral da existência humana acha-se num estado tal que permite o registro de certos padrões elétricos num eletroencefalograma, então o sonhar ocorre com mais frequência, ou pelo menos é relembrado com maior frequência pelo sonhador. Está além dos limites dos próprios métodos de pesquisa EEG alegar algo a mais, ou algo que não a mera correlação da simultaneidade entre evidências neurológicas e a percepção onírica de entes e comportamento em sonhos com respeito a estes entes”.       

No terceiro tópico, Pesquisa Estatística dos Sonhos, Boss analisa alguns trabalhos que se desenvolveram no plano estatístico dos “conteúdos oníricos”. Por exemplo, uma pesquisa mostrou que sonhos de conteúdo doloroso superaram em número os sonhos agradáveis numa proporção de, no mínimo, 2 para 1. Em outra pesquisa, mais qualificada, de Hall e Von de Castle, de 1966, o chamado conteúdo manifesto de não menos de mil sonhos de universitários foi classificado segundo a frequência de diversos aspectos, tais como estrutura física específica, emergência de um traço particular de caráter, ou relação interpessoal, ou estado de espírito.

Segundo Boss, o livro gerado por essa pesquisa foi escrito na esperança expressa “de que tiraria os sonhos do divã do analista e os colocaria num computador”. Por conta deste objetivo, argumenta: “O porquê de esse passo ser considerado desejável ainda permanece sem explicação. O motivo que reside atrás de um empreendimento desta espécie deve surgir exclusivamente da superstição da mente tecnológica moderna, segundo a qual as coisas quantificáveis são inerentemente mais verdadeiras do que aquelas que podem ser apenas apreendidas qualitativamente, uma vez que só as primeiras se prestam a cálculos. Qualquer que seja o caso, os benefícios práticos da armazenagem de sonhos em computador ainda não se mostram imediatamente visíveis”. 

No quarto tópico, Estudos Fenomenológicos de Sonhos feitos por outros Pesquisadores, Boss avalia que desde 1953, data de publicação de seu primeiro estudo fenomenológico sobre os sonhos, reduzido número de escritos científicos foi dirigido às verdadeiras qualidades da experiência do sonho. Segundo ele, a maioria dos autores nem se deu ao trabalho de questionar as teorias mais antigas de Freud e de Jung, preferindo, em vez disso, simplesmente adotar as hipóteses tradicionais como bases axiomáticas para suas próprias teorias.

Na sequência de seus argumentos, Boss afirmou que os únicos estudos recentes sobre os sonhos que tentaram encontrar novos caminhos foram Der Traum als Welt, de Von Uslar, de 1964, e Dreams and Symbols, de Calinger e May, de 1968. Ele cita que nos estudos destes últimos, May desdenhou todo o material compilado por Calinger sobre sua paciente em psicoterapia, apegando-se, por propósitos “fenomenológicos”, estritamente às descrições puras dos eventos oníricos em si.  Assim agindo, desprezou a personalidade dela e seus dados pessoais, contradizendo as visões de Freud e de Jung, os quais acreditavam que os sonhos só poderiam ser entendidos através de um conhecimento prévio da vida da pessoa em questão e com o auxílio das associações despertas e espontâneas da pessoa com o material onírico. Dando-se conta dessa revelação por seu estudo, condenou o costumeiro “interpretar” analítico ao traduzir o material do sonho para os reconhecidos símbolos, ao invés de prestar atenção à linguagem das experiências oníricas em si. O efeito disso, conforme suas palavras é forçar o material onírico a se encaixar num jargão e em racionalizações de uma escola particular da psiquiatria – a do analista.  Sonhos assim traduzidos expressariam, na pior das hipóteses, a opinião do terapeuta ao invés de seu próprio significado inerente, e na melhor, a opinião do paciente, colocada em termos e categorias que lhe são dadas prontas pelo terapeuta. 

No pensamento de Boss, Rollo May, com o progresso de suas investigações sobre os sonhos e pela análise dos sonhos de uma paciente como exemplo, descobriu que quase tudo contido nos estudos sobre os sonhos tradicionais – toda a discussão médico-paciente do conteúdo dos sonhos, e das associações da paciente com esses conteúdos – achava-se muito distante do material do sonho em si. Percebeu que grande parte das associações e interpretações consistia inteiramente em clichês e banalidades psicanalíticas, que soavam lógicos, mas que, de fato, não passavam de uma intelectualização que diluía seriamente o que o sonho em si tinha a dizer, particularmente em relação ao comportamento da paciente referida.

Entretanto, Boss sinaliza que Rollo May, na execução prática de sua intenção fenomenológica, não conseguiu atingir esse objetivo. Ele explica: “A maneira como que ele tratou o material onírico rendeu-se àquela da tradução psicanalítica “desprezada”, mormente quando se referiu a “símbolos excretórios, sexuais, sempre presentes”, sem justificativa, na avaliação da paciente estudada”.

Ao término desse tópico, Boss refere ainda que Detlev Von Uslar, igualmente tendendo a uma interpretação fenomenológica em sua obra, recaiu e advogou que, mesmo hoje, as implicações freudianas e junguianas devem determinar o curso da nossa maneira de lidar com os sonhos.

A tudo reavaliando, ao final desse tópico, Boss conclui que “Olhando para o estado atual da ciência dos sonhos, não podemos esconder o fato de que nenhuma teoria – psicológica profunda, estatística ou neurológica – está suficientemente próxima do início. Todas elas partem da premissa inquestionada de que deve haver, num espaço preexistente, alguma psique enclausurada na qual ocorre o processo do sonho. Até mesmo pesquisadores que têm intenção de proceder fenomenologicamente acabam caindo nesta concepção, uma psicologia do sonho sendo, afinal, uma ciência baseada na noção de psique. Ainda assim, nenhum deles pode prover informação acerca da natureza, operação ou localização dessa coisa humana tão discutida chamada psique”. 

5.                                                                                                                                                                      Comentários.

Quando planejei estudar e escrever sobre o meu aprendizado sobre os sonhos, não pensava em dispor de tanto espaço ao pensamento de Boss. Entretanto, a releitura de seu livro, com olhos mais abrangentes e numa perspectiva compreensiva amplificada pela visão de tantos outros autores, possibilitou-me enxergar aspectos enriquecedores de seus estudos. Por isso, dediquei este artigo e outros a seguir na divulgação de suas ideias e comentários, pois são provocadores e estimulantes ao pensar ou ao refletir sobre os sonhos.

Portanto, este artigo, em sua Parte 4, resume o Capítulo 1 de seu livro, com o título de “Os atuais estados de conhecimento acerca dos sonhos”. Nos artigos a seguir, outros capítulos serão apreciados, sempre com o convite e sugestão de leitura integral de sua obra.                                                        

6.                                                                                                                                                                      Referências.

 Boss Medard. Na noite passada eu sonhei... São Paulo: Summus, 2ed., 1979. (Novas buscas em psicoterapia; v. 9.)    

* Estudo realizado no Departamento de Pesquisa do Centro de Estudos José de Barros Falcão/Clínica São José – Porto Alegre, RS.

** Professor e Doutor em Psiquiatria.

Endereço p/correspondência: [email protected]


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