Psyquiatry online Brazil
polbr
Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2014 - Vol.19 - Nº 2

Artigo do mês

DEPÊNDENCIA QUÍMICA: DA PERVERSÃO FISIOLÓGICA AO INSTINTO ADQUIRIDO

Felipe Figueiredo Almeida*

 

RESUMO

Este artigo apresenta uma nova hipótese causal para a dependência química; identifica dois fatos relativos ao processo mórbido da dependência química, ignorados pelas demais hipóteses causais; propõe uma revisão dos conceitos nosológicos correlatos; soluciona os problemas suscitados; e convida os interessados à comprovação ou refutação de sua validade.

 

Palavras-chave: Dependência química. Drogas. Fissura. Hipótese.

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo abandona as perspectivas adotadas, até agora, para a elaboração das hipóteses causais da dependência química, tanto pela psiquiatria (cujas hipóteses fundamentam-se em interações neurofisiológicas locais, entre determinadas drogas e determinados sistemas intracerebrais) quanto pela psicologia (cujas hipóteses fundamentam-se em interações psicodinâmicas entre determinadas drogas e o sujeito), devido à constatação de que estas perspectivas parecem não abranger a totalidade dos fatos envolvidos, tomando a parte pelo todo e ignorando o essencial.

Os fatos ignorados pelas perspectivas supracitadas parecem constituir, justamente, a essência da droga potencialmente causadora de dependência química e a essência do processo mórbido da dependência química: a capacidade de esta droga ser integrada à fisiologia humana como um elemento vital (perversão fisiológica) e de gerar, por conseguinte, um instinto artificial e temporário (a fissura).

A hipótese causal que este artigo apresenta emerge da observação direta, a nível ambulatorial, dos seguintes fatos, relativos aos indivíduos que fizeram uso diário de cocaína e interromperam abruptamente o seu uso: (1) que após a interrupção do uso, determinados indivíduos não apresentaram síndrome de abstinência ou fissura, ao passo que outros indivíduos apresentaram síndrome de abstinência e fissura; (2) que a síndrome de abstinência e a fissura ocorreram sempre juntas, nunca separadas; e (3) que a quantidade e o tempo de uso de cocaína não se mostraram em relação de direta proporcionalidade ao risco de ocorrência da síndrome de abstinência e fissura.

2 HIPÓTESE DA PERVERSÃO FISIOLÓGICA E DO INSTINTO ADQUIRIDO

          O termo fisiologia designa a integração das diversas e distintas funções, de todas as diferentes células e partes do corpo humano, em um todo funcional. O corpo humano depende dessa função global, e não das funções de partes distintas, isoladas umas das outras.¹

As necessidades do corpo humano, porém, ultrapassam os limites da fisiologia humana (que enfoca apenas o seu funcionamento interno) e avançam sobre o mundo circundante, através dos instintos vegetativos, impondo, para a constituição e a sobrevivência deste corpo, a obtenção, por consumo, de certos elementos vitais (p. ex.: a água e o ar).

Estes fenômenos, os instintos vegetativos (p. ex.: de respirar ou de ingerir água), irrompem no ser humano, provocando um crescente desprazer, e o põe em movimento rumo à obtenção dos elementos vitais capazes de saciá-los.

O consumo sistemático de uma droga potencialmente causadora de dependência química parece induzir o corpo humano a integrar, em seu funcionamento global, um elemento capaz de perverter a fisiologia humana e induzir o corpo humano a tomá-lo como um elemento vital (processo designado pelo termo perversão fisiológica), dando origem a um fenômeno de natureza essencialmente instintual (designado pelo termo fissura), que, por sua vez, tem o poder de por a pessoa em movimento rumo ao consumo desta droga – única coisa capaz de saciar este instinto adquirido.

O fato de que, caso uma força externa impeça um dependente químico de consumir a droga, o corpo humano, ainda regido pela fissura, sentindo a falta deste elemento que passou a tomar por vital, realiza uma série de adaptações internas, fonte de grande sofrimento (a síndrome de abstinência), leva à conclusão de que a dependência química é uma doença estritamente orgânica, e que as provas clínicas de que um indivíduo é dependente químico são os fenômenos da fissura e da síndrome de abstinência. Esta conclusão, por sua vez, torna imprescindível uma revisão conceitual dos termos correlatos dependente químico, viciado em drogas e usuário recreativo de drogas.

 

2.1  Revisão conceitual

De um modo geral, o meio acadêmico confunde o significado dos termos dependente químico e viciado em drogas, e os emprega como se fossem sinônimos. Diante da perspectiva aqui adotada, este fato é um grave equívoco.

O fato de um indivíduo usar determinada droga ou de alegar que não consegue interromper o seu uso não implica, necessariamente, no fato de que este indivíduo seja um dependente químico, e o termo viciado em drogas não é sinônimo do termo dependente químico.

O termo dependente químico designa o indivíduo que, após a interrupção do uso de determinada droga, padece de determinados sintomas (os quais, por terem uma causa comum, são reunidos em um grupo e designados pelo termo síndrome de abstinência).

O termo viciado em drogas designa a pessoa que, pelos mais diversos motivos, elege o consumo de determinada droga como o sentido de sua existência ou como uma meio de automedicação, passando a gravitar, junto aos demais aspectos de sua vida, em torno deste eixo central.

Enquanto o corpo humano do dependente químico, após a perversão fisiológica, toma a droga como elemento vital e se encontra sob o domínio da fissura, a pessoa humana do viciado em drogas toma a droga como sentido existencial ou como um medicamento. O dependente químico é movido por um instinto artificialmente adquirido (a fissura); o viciado em drogas, por uma falta (ou perda) de sentido existencial ou para aliviar os sintomas de um transtorno mental (p. ex.: o transtorno de ansiedade generalizada, frequentemente observada em viciados em álcool).

O termo usuário recreativo de drogas designa a pessoa que consome determinada droga, mas não a elege como o sentido de sua existência e não a coloca como o eixo central de sua vida, mantendo-a como um aspecto periférico e descartável – o que não impede que o usuário recreativo de drogas venha a se tornar um viciado em drogas. Nos casos em que a droga seja potencialmente capaz de causar dependência química, todo usuário recreativo de drogas será um viciado em drogas em potencial e, por conseguinte, um dependente químico em potencial.

2.3 Conclusão

            A Hipótese da Perversão Fisiológica e do Instinto Adquirido parece explicar os fatos elencados no terceiro parágrafo da introdução deste artigo, portanto, parece digno do esforço para a comprovação ou refutação de sua validade.

REFERÊNCIAS

 

¹Guyton, A. C.  e Hall, J.E. Tratado de Fisiologia Médica, 9ª Edição. Editora Guanabara Koogan S. A., 1997.

 

 


TOP