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Novembro de 2013 - Vol.18 - Nº 11
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Novembro de 2013 - Vol.18 - Nº 11

Psicanálise em debate

BIOGRAFIAS, AUTOBIOGRAFIAS, OTOBIOGRAFIAS

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

As biografias atendem a uma natural curiosidade sobre a vida de homens e mulheres excepcionais que realizaram feitos notáveis nas mais diversas áreas da atividade humana. Em sua melhor expressão, a biografia sustenta uma dimensão moral, edificante, pedagógica e modelar na medida em que mostra a que alturas o ser humano é capaz de se elevar, bem como a que ponto pode decair. Já em sua forma degradada, procura chafurdar na intimidade do biografado, devassando sua vida amorosa e sexual, satisfazendo aspectos regressivos e infantis do publico leitor.

É compreensível que o próprio biografado ou os interessados em preservar sua imagem se preocupem com o que o biógrafo vai expor, pois inimigos e invejosos de variado calibre poderão fazer uso de revelações tidas como desabonadoras para hipocritamente atacá-lo. Afinal, pessoas excepcionais dificilmente seguem os códigos convencionais de comportamento adotados pela maioria silenciosa. Mas esse risco não justifica a censura ao trabalho do biógrafo, pois a lei protege o biografado de possíveis abusos.

Sob o atual império da mídia, a situação ficou mais complicada, pois o conceito de “homem ou mulher excepcional” foi diluído no de “celebridade”- alguém  conhecido por aparecer nos meios de comunicação de massa, especialmente por estar ligado ao entretenimento. Isso provoca substanciais mudanças no gênero. A biografia de uma celebridade se transforma num lucrativo produto para o consumo das massas e para tanto muitas vezes é abandonada sua expressão mais elevada e adotada entusiasticamente a vertente menor, da exploração escatológica das fragilidades e da intimidade sexual do biografado.

É difícil a tarefa do biografo. Evitando a idealização ou o aviltamento, ele deve fornecer uma imagem realista e verdadeira do biografado.

 Mas o que seria a imagem realista e verdadeira de uma pessoa? O que vemos dela corresponde ao que de fato ela é internamente?  Ela mesma é capaz de se ver com objetividade? A imagem com a qual ela se vê foi por ela construída ou ela mesma foi moldada na imagem que os outros fazem dela? 

Essas questões com as quais o biografo tem de se haver derivam diretamente das teorias psicanalíticas sobre a constituição do sujeito, a forma como sua personalidade se estrutura sob o influxo da realidade externa e do desejo interno.  Elas levam a um questionamento dos limites entre gêneros literários.  Haveria uma efetiva e radical diferença entre um texto de ficção e uma biografia?  Na ficção os personagens e situação são produto da imaginação do autor, enquanto na biografia supostamente são relatados fatos verídicos pesquisados pelo biografo, ocorridos na vida de uma personalidade histórica.  Mas quanto de fictício existiria na personalidade e na versão dos fatos por ela apresentada, na própria história?

Richard Ellman, renomado autor das monumentais biografias de Yeats, James Joyce e Oscar Wilde, reconhece que a biografia literária sofreu imenso impacto com Freud, que coloca noutro patamar a questão da veracidade e do realismo em biografia. Em função de sua dimensão inconsciente, o biografado (como todos nós) desconhece grande parte de si mesmo e a imagem com a qual se vê e aquela que mostra ao mundo têm muito de fictício.  Assim, por mais que tenha superado as censuras objetivas e obstáculos externos para realizar seu trabalho, o biógrafo se deparará sempre com esse último bastião inexpugnável - as censuras internas que impedem o acesso à realidade psíquica do biografado, fazendo com que nenhuma biografia possa se arrogar a condição de “completa e verdadeira”. Estritamente falando, apenas no correr de um processo psicanalítico o sujeito teria acesso a sua própria história, é no desenrolar das sessões que vai descobrindo e escrevendo sua própria biografia.

Essa questão fica particularmente candente nas autobiografias, que podem iluminar com intensidade alguns aspectos do autobiógrafo, mas, em função dos impedimentos internos (repressões, negações etc), apresentam versões distorcidas e parciais do autor e suas vivências. Além do mais, elas colocam diretamente as questões mais importantes para o autobiógrafo (e para qualquer ser  humano): sou eu quem conta e constrói minha biografia, ou é o Outro (mãe) quem a conta para mim,  quem me constrói? Tratando essas questões, Derrida substitui “auto-biografia” (autos = eu mesmo) por “oto-biografia” (oto = ouvido) , que são palavras homófonas em francês. Com isso enfatiza a importância da fala do Outro (mãe), de quem ouvimos nossa própria história. Não sou eu mesmo quem escreve minha biografia, eu a escuto do Outro (mãe).

A discussão sobre biografia, que se desenrola atualmente entre nós levanta questões há muito resolvidas e estabelecidas em países civilizados. Mostra a tacanhice de nosso ambiente cultural, mas também aponta seu crescimento. Mostra que nossa produção cultural já tem massa critica para criar ídolos, celebridades e famosos capazes de competir com os costumeiros modelos do primeiro mundo.  Além disso, a produção de biografias mostra que há um público curioso de nossas coisas, sedento de conhecer nosso passado. A feitura de um relato biográfico provoca um movimento reflexivo de apropriação de  nossa realidade. Na medida em que se examina um biografado, todo seu contexto histórico social é revisitado, recuperando-se assim um fragmento, por pequeno que seja, de nossa tão combalida identidade nacional.  


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