Julho de 2013 - Vol.18 - Nº 7 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Julho de 2013 - Vol.18 - Nº 7 Psicanálise em debate AMADO BATISTA E A TORTURA Sérgio
Telles Neste
momento em que a Comissão da Verdade trabalha para trazer à tona os crimes da
ditadura, chamaram atenção as declarações do cantor
Amado Batista em entrevista a Marília Gabriela. Preso e torturado pelo regime
militar, surpreendeu a entrevistadora ao dizer que
compreendia o tratamento que lhe foi então dispensado. Como se sabe, a tortura é o eficaz
instrumento usado pelo Estado para extrair informações que julga
necessárias e lhe são negadas por aqueles que suspeita serem delas
conhecedores. Nunca formalmente admitida, os regimes autoritários a usam
rotineiramente contra os que consideram seus inimigos, e os países democráticos
defensores dos direitos humanos, apesar de a condenarem, dela não se abstêm em
situações consideradas "excepcionais", como mostram as denúncias de
seu uso pelos Estados Unidos em Guantánamo e em suas guerras arábicas, elemento
importante no filme A Hora mais Escura (2012), de Kathryn
Bigelow, cuja produção, por isso mesmo, chegou a ser
investigada pelo Departamento de Defesa daquele país. Sem mencionar o feijão
com arroz das delegacias policiais do mundo todo, que arrancam confissões de
ladrões pés de chinelo na porrada, fato para o qual
ninguém dá muita importância. A tortura
não é uma parte abstrata do aparato clandestino do Estado; ela se concretiza no
agônico corpo a corpo entre torturado e torturador. O torturado se encontra em
posição de desamparo frente ao torturador, que ocupa o papel de senhor
absoluto, dono da vida e da morte. A consciência de ter a vida por um fio, à
mercê dos humores do torturador, tem efeitos desestruturantes
sobre a personalidade do torturado, que pode regredir a funcionamentos
psíquicos muito arcaicos. A situação estrutural da tortura pode remeter a
imagos inconscientes muito primárias, a da relação primordial do bebê em total
desamparo frente a uma mãe má todo-poderosa, de quem depende para não morrer. É
uma experiência essencialmente traumática. Como
acontece com toda experiência traumática, o torturado vai reagir a ela usando
mecanismos custosos em termos de rendimento e sofrimento mental, pois não
impedem o desenvolvimento de sintomas (fixação no trauma, negações, angústias,
depressões, persecutoriedades, culpas, etc). Um deles é a "identificação com o agressor",
mecanismo de defesa descrito por Anna Freud em 1936 e popularizado como
"síndrome de Estocolmo" nos anos 1970 em função de um episódio de sequestro naquela cidade, no qual os sequestrados,
ao serem libertados, se posicionaram em defesa dos sequestradores.
Esse mecanismo é a resposta a uma situação extrema de risco de vida. Para
sobreviver, o sujeito nega estar sendo objeto de uma
violência, abdica de suas convicções e adota o ponto de vista do agressor.
Dessa forma tenta ganhar suas boas graças, ao mesmo tempo em que deixa de se
ver como vítima impotente e procura assumir a força do poderoso agressor. As
declarações de Amado Batista poderiam ser entendidas dentro desse modelo, seriam uma forma de resposta típica ao trauma, o que,
obviamente, mereceria todo o respeito, algo que não poderia ser censurado.
Claro que não podemos saber os reais motivos de Amado Batista; essa é apenas
uma hipótese interpretativa construída em cima do que foi publicamente exposto. Se na
tortura é encenada uma arcaica relação dual na qual o torturado fica no papel
do indefeso bebê, o torturador ocupa o lugar complementar de mãe má
todo-poderosa. É o que se depreende do filme A Morte e a Donzela, de Polanski,
baseado em peça de Ariel Dorfman. O torturador
Miranda, ao ser desmascarado, confessa o gozo que o dominava durante a tortura,
gozo advindo do sentimento de onipotência decorrente do absoluto domínio sobre
o outro, algo completamente desvinculado das questões político-ideológicas que
sustentavam o procedimento. Dessa forma, fica claro que a motivação do Estado
(obtenção de informação) se dissocia da motivação inconsciente do torturador
(gozo com o controle onipotente do outro). O que permite especular até que
ponto o Estado manipula a doença mental do torturador, seu sadismo, para
atingir os próprios objetivos. Exercício da
maior violência que o Estado pode exercer sobre o cidadão, a tortura
desencadeia justas revolta e oposição. Mas também
provoca profundas ressonâncias inconscientes, na medida em que evoca, como vimos, a relação primária com a mãe má, e também
figuras de sadomasoquismo, importante expressão erótica. O infligir e sofrer
dor podem ser fonte de extremado prazer. Elementos de sadismo e masoquismo
estão presentes na maioria das práticas eróticas, na medida em que põem em jogo
princípios básicos de atividade e passividade, domínio e submissão, controle e
entrega. Além disso, sadomasoquismo e tortura se prestam ao imaginário em torno
da chamada "cena primária" – a forma como a criança fantasia o coito
entre os pais, supostamente realizado em meio a violências e agressões. O fascínio
horrorizado que a tortura nos suscita decorre da indignação ética consciente e
desses escuros desdobramentos inconscientes. A ameaça
global do terrorismo de variada proveniência faz com que o uso da tortura para
a obtenção urgente de informações concernentes à segurança seja um dos
problemas éticos mais candentes de nossos tempos. (*) Publicado no Caderno "Aliás" do jornal "O Estado de São Paulo"em 01/06/2013, sob o título "Amor e dor de Batista".
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