Junho de 2013 - Vol.18 - Nº 6 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Junho de 2013 - Vol.18 - Nº 6 Psicanálise em debate RESENHA DE “DERRIDA – A BIOGRAPHY”, DE BENOÎT PEETERS, POLITY PRESS (NEW YORK, USA / CAMBRIDGE, UK), 2013, 629 PP. (*) Sérgio
Telles Bem acolhida ao aparecer há dois anos na França, a biografia de Derrida escrita por Benoît Peeters recebe o mesmo
tratamento nos Estados nidos e na Inglaterra, onde
acaba de sair a tradução em língua inglesa. Nascido na Argélia e vitimado
aos 74 anos por um câncer de pâncreas em 2004, Jacques Derrida teve uma
extraordinária trajetória intelectual. Radicado no mundo acadêmico francês,
logo passou a ser convidado pelas melhores universidades norte-americanas,
desenvolvendo intensa atividade letiva em ambos os lados do Atlântico. O franco
reconhecimento internacional lhe deu o status de superstar e forte presença
midiática. Admiração e inveja me
acompanharam durante a leitura da excelente biografia. Admiração pela vida
rica, combativa, compartilhada com os grandes intelectos do mundo. Inveja pela
potência criativa com a qual gerou uma caudalosa obra que marca o
pós-estruturalismo e o pós-modernismo (mais de 60 livros), na qual expõe uma
original abordagem filosófica cuja importância e envergadura, segundo Emmanuel Levinas, tem como paralelo apenas a obra de Kant. A inovadora abordagem de
Derrida suscitou admiração e inveja no establishment filosófico. Um exemplo foi
o movimento empreendido em 1992 por filósofos americanos e ingleses numa
tentativa fracassada de impedir que a Universidade de Cambridge lhe conferisse
um título de doutor honoris causa, alegando que seu trabalho mais se aproximava
de "truques e brincadeiras próprias do dadaísmo". Outro foi a carta enviada para Laurent Fabius,
ministro de Indústria da França, por Ruth Marcus, colega de Derrida em Yale,
protestando contra sua nomeação para a chefia do Colégio Internacional de
Filosofia que estava então sendo criado, pois - dizia a missivista - isso seria
uma "espécie de piada", fruto de uma "fraude intelectual".
Reação do ministro: enviou a carta para Derrida, com um bilhete: "Nunca
desça uma escada na frente dessa senhora". De sua vida combativa, é
importante mencionar sua oposição crítica ao estruturalismo, a Foucault e Lacan
numa época em que eram todos intocáveis, bem como sua independência frente à
intimidação stalinista e maoista que acuava a intelectualidade francesa nos
anos 60 e 70. Com igual denodo, enfrentou polêmicas com os filósofos Willard
Quine, John Searle e Richard Wolin e defendeu (uma
missão impossível) o amigo Paul de Man, acusado de um passado colaboracionista
nazista. Ao expor minha própria
admiração e inveja, acompanho Derrida em seu empenho em falar em primeira
pessoa nos textos filosóficos, rompendo a tradição de mostrar o "ser"
como pura máquina de engendrar pensamentos, desprovida de um corpo e suas
pungentes necessidades físicas, mentais e emocionais. Vários de seus textos
filosóficos causaram estranheza pelo uso de uma linguagem literária e pelo
caráter autobiográfico. Essa característica da escrita de Derrida decorre de
sua proximidade com a literatura e a psicanálise. A oposição maior a Derrida se
deve àquilo que ficou identificado como sua marca registrada e que,
paradoxalmente, teve uma imensa penetração em todos os estratos culturais,
especialmente nos Estados Unidos - a desconstrução, uma estratégia de leitura
que possibilita uma nova apreensão dos textos filosóficos clássicos
e transformada em arma na luta por ele empreendida contra a metafísica
que, em sua opinião, permeia desde sempre todo o pensamento ocidental, e àquilo
que considerava como seus dois maiores pecados - a valorização excessiva da
palavra falada (phoné, logos) em detrimento da
palavra escrita e a ingênua crença na importância da presença, pressupostos que
ignoram a impossibilidade de acesso direto ao ser e à verdade, na medida em que
eles estarão para sempre mediados pela linguagem e esta produzirá
incontornáveis e constitutivos efeitos de distorção, de diferimento, de
adiamento. Embora mencione a importância
de Freud no pensamento de Derrida, Benoît Peeters não lhe dá, a meu ver, o devido realce. O mesmo
acontece em outros textos sobre a obra de Derrida. Talvez, devido às
complexidades da teoria freudiana, não fique tão patente para esses autores
como para um psicanalista quanto os procedimentos da desconstrução se aproximam
da atenção flutuante praticada pelo psicanalista na escuta da fala do
analisando ou como muitas das concepções fundamentais de Derrida
(desconstrução, différance, suplemento, hymen, pharmacon, indecidível, etc.) deixam transparecer a grande intimidade
com o conceito freudiano de inconsciente. Derrida é o primeiro a
reconhecer sua dívida para com Freud. Disse ele: "(...) desde a
Gramatologia e Freud e a Cena da Escritura, todos os meus textos tem inscrito
aquilo que chamarei de implicação psicanalítica". Geoffrey Bennigton, profundo conhecedor da
obra de Derrida disse: "As relações de Derrida com Freud são de origem,
estão na origem, desde o início; sem Freud, não teria havido, não há
Derrida". É por esse motivo que René Major, psicanalista francês, diz que
a desconstrução é um desdobramento natural da psicanálise. Derrida retribuiu a Freud de
várias formas, uma delas fazendo uma apaixonada e ininterrupta defesa da
psicanálise, algo de inestimável valor num momento em que ela é atacada pelo
cientificismo obscurantista que atualmente domina diversas áreas do saber. * Publicado no caderno “Sabático” do jornal “O
Estado de São Paulo” em 20/04/2013, sob o título “Nova compreensão de um rico
legado”.
|