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Fevereiro de 2013 - Vol.18 - Nº 2
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2013 - Vol.18 - Nº 2

Pensando a Psiquiatria

O CRACK, A DEMANDA REPRIMIDA E A DOUTA IGNORÂNCIA

Dr. Claudio Lyra Bastos


Est ergo in nobis quaedam, ut dicam, docta ignorantia,

sed docta spiritu dei, qui adjuvat infirmitatem nostram.

[Existe em nós, por assim dizer, uma ignorância douta,

mas douta pelo espírito de Deus, que nos ajuda em nossa fraqueza.]

Santo Agostinho

 

 

 

A demanda reprimida, que ocasionou o grande número de pessoas que procuraram os serviços de saúde em São Paulo no mês passado, em busca da tão propalada internação compulsória, pode não ter evidenciado uma “epidemia” de crack, mas revelou algo sobre as dimensões da desassistência psiquiátrica no país. Além dessa desassistência stricto sensu, outras formas de desassistência se fazem presentes, ocasionadas pela formação deficiente, e pior ainda, pela formação distorcida, burocrática e irreflexiva.

Uma dessas fontes dessa demanda reprimida é o nosso tema de hoje. Este assunto de drogas costuma despertar polêmicas ferozes, caracterizadas não pela argumentação, mas pelas afirmações categóricas, tão peremptórias quanto desprovidas de fundamento. Discussões dogmáticas sobre artigos de fé, como é óbvio, não podem produzir conhecimento algum.

As perguntas de sempre veiculadas na imprensa, na TV e na internet, que giram em torno de dúvidas do tipo “Qual A Causa disso?”, “Qual A Solução para aquilo?” são tão inúteis quanto estéreis, e a sua eterna repetição não serve senão para tentar criar uma ilusão de saber, uma falsa certeza de direção, de metas e de confiança nas autoridades.

O conhecimento real, naturalmente, não vem da busca frenética por respostas certas, mas da formulação das perguntas certas. O processo de parar de procurar respostas e começar a pensar nas perguntas exige um reposicionamento radical, que nos obriga a abandonar a postura de sábios e buscar a de ignorantes.

Um célebre texto de Nicolau de Cusa, no século XV, chamava-se “De Docta Ignorantia”, usando uma expressão de Santo Agostinho. Tenho visto, recentemente, alguns livros, como Ignorance: How It Drives Science”, de Stuart Firestein, que mostram como a ciência avança quando tem a medida do que não se sabe, e não daquilo que conhece. Conhecer, porém, ou parecer que conhece, é um elemento de poder e prestígio, um capital do qual é muito difícil abrir mão.

Assim como ocorre com um antagonista de neurotransmissor, que inibe o seu efeito ocupando o seu lugar na sinapse, o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas o falso conhecimento, que ocupa os espaços vazios, inibe o raciocínio, preenche as lacunas dos protocolos, aborta os questionamentos e extermina as dúvidas.  

Em nossas reuniões clínicas no Instituto Fluminense de Saúde Mental  costumamos frisar que a essência da observação é receptividade ao fenômeno, na ausência de ideias prontas. Para refletir, no sentido literal, é preciso um espelho plano e limpo. A vivência prática deve se antepor a quaisquer formulações didáticas. É melhor entrevistar os pacientes sem se saber absolutamente nada do que pensando que se sabe alguma coisa. Como fez ver Sócrates a Mênon, demonstrando que a geometria podia ser ensinada apenas através de perguntas, sem nenhuma instrução direta, reconhecer a confusão é algo bem melhor do que a certeza falsa, já que se constitui num passo à frente para o conhecimento.

Assim, em vez da busca sôfrega por respostas prontas, por statements pronunciados ex cathedra pelas autoridades da moda, talvez fosse mais interessante prestar atenção na prática diária. Quem lida com usuários de drogas em seu dia a dia constata que na grande maioria existe um quadro psicopatológico de base, preexistente, cuja natureza é bem diversificada. Usa-se o nome patologia dual, em vez de comorbidade, para ressaltar que não são quadros paralelos (veja-se artigo de F. Portela Câmara na POL Br de Junho de 2011, Vol.16/ 6). Englobam-se aqui problemas de personalidade, quadros afetivos, psicoses, quadros deficitários e inúmeros outros. Um desses grupos, sem dúvida, é composto pelos indivíduos de baixo rendimento intelectual.

Para ilustrar, lembremos que, numa representação gráfica da capacidade intelectiva geral de qualquer população, temos uma distribuição normal, ou uma curva de Gauss.  Se tomarmos a linha média dessa curva, podemos dividir a sua parte ascendente, ou anterior, em três porções, da linha média para a esquerda: 

 

 

 

 

 

A área central está a menos de uma desvio padrão da média. Em uma distribuição normal, isto corresponde a 68% da população, enquanto dois desvios padrões da média representam cerca de 95%, e três desvios padrões abrangem cobrem cerca de 99.7%.

   Temos assim, na parte ascendente (metade à esquerda):

a) o terço superior, composto por indivíduos ainda dentro da faixa média, apesar de abaixo da linha média;

b) o terço médio, subseqüente, em que boa parte não pode ser chamada de deficiente, porque ainda está dentro da faixa média convencional, mas tende a não apresentar um rendimento ótimo nas atividades cognitivas. Note-se que este trecho corresponde a 13,6% da população, o que não é pouca coisa.

c) os indivíduos que se situam no terço inferior da curva, correspondendo aos chamados deficientes, num sentido clínico mais estrito.

Esse terço médio da curva ascendente anterior compõe uma população com algumas caraterísticas que nos interessam. Lembremos que as exigências da sociedade moderna, cada vez mais dependente da tecnologia, se mostram cada vez maiores. O que se cobra hoje num concurso para gari é equivalente ao que se exigia antigamente para um funcionário administrativo. Em outras épocas, alguns destes chegaram a diretores e presidentes de órgãos importantes. Além disso, a mecanização   e a informatização vêm progressivamente retirando as possibilidades de trabalho para os indivíduos menos preparados.

Que conseqüências isso poderia ter para as pessoas que se encontram nessa faixas intermediárias? Parece óbvio que algumas, certamente, seriam praticamente inevitáveis: Baixa empregabilidade, baixo rendimento econômico, baixo prestígio na família e na comunidade. Em linhas gerais, baixa capacidade de inserção social. São pessoas que, em geral, tendem a não ser requisitadas pelo grupo, não obter sucesso em nenhuma área, não conseguir empregos, não passar em processos seletivos, concursos, etc. Um ou outro, eventualmente, com algum talento especial, consegue se sair bem. A maioria desses indivíduos, porém, tende a fracassar e a ter que conviver com uma imagem bastante negativa de si próprios.

Manifestações psiquiátricas, geralmente vinculadas à ansiedade e à frustração, não são incomuns neste grupo. Agitação, irritabilidade, impulsividade, agressividade, auto-mutilação e transtornos de conduta são os principais motivos de intervenção médica. A baixa socialização faz com que alguns indivíduos tendam a se isolar, chegando mesmo a se marginalizar. Diagnósticos psiquiátricos falsos ou precários, baseados apenas nos problemas de comportamento e nos sintomas superficiais, abundam nesses casos: psicose, déficit de atenção, depressão, fobia social, etc.

Não parece improvável que o uso de drogas, além de aliviar a enorme carga de angústia e frustração decorrente disso, e tendendo a produzir um ambiente social à parte, onde o indivíduo acha, até certa medida, alguma forma de pertencimento, seja um caminho comum, uma vertente para muitas dessas pessoas de escassas perspectivas.

Nesses casos, cujo número não é pequeno, o que a sociedade tende a fazer?Coitado, ficou assim por causa das drogas...” é uma frase comum, acompanhada da repetição dos chavões de costume. Esta costumeira inversão da ordem causal pode, eventualmente, até aliviar a angústia de algumas famílias, mas em nada contribui para o bem do paciente. Frases dramáticas e propostas de soluções policiais e judiciais esbarram nos problemas de sempre. Talvez caiba a nós, profissionais, começar a sacar menos respostas prontas da algibeira e a refletir um pouco mais sobre um assunto tão espinhoso.


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