Psyquiatry online Brazil
polbr
Dezembro de 2013 - Vol.18 - Nº 12
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2013 - Vol.18 - Nº 12

Artigo do mês

O RETRATO DO SER HUMANO NUM FILME E OS FATORES QUE O DESUMANIZAM

Carlos Alberto Crespo de Souza ***

                                   “E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano”.

Clarice Lispector

           

            Há poucos dias assisti ao filme “Feliz Natal”– obra inspirada em uma história real, ocorrida no verão de 1914, quando a I Guerra estava iniciando – lançado em novembro de 2005 no Festival de Cannes. O cenário retrata uma ocorrência em que soldados ingleses, representados pelos escoceses, e franceses combatem alemães em trincheiras, perto uma das outras, num enfrentamento articulado por políticos e subservientes militares pelo poder de domínios territoriais e/ou desavenças econômicas.

            O transcorrer da filmagem causou-me impacto emocional e intelectual significativo. Incapaz de suportar tal vivência, tento compartilhar, com os que me leem, os sentimentos que me invadiram.

            No filme, atrocidades são mostradas, de lado a lado; ferimentos e mortes horríveis ocupam os pequenos espaços entre as trincheiras. A ignorância e a impropriedade dessas mortes e ferimentos são tangíveis e atingem nossa percepção num clímax de desespero, angústia ou aflição pelos soldados vitimados, sendo todos eles, na verdade, vítimas de uma brutalidade sem fim e objetos de uma luta que lhes escapa ao entendimento. 

            Logo no início, aparecem crianças das três nações (Inglaterra, França e Alemanha) em sala de aula, antecipando as ideias a elas incutidas pela necessidade de enfrentar um inimigo que deseja se apossar de territórios pátrios. Os alunos, meninos ainda pré-púberes, já estão bem orientados ou manipulados em execrar os oponentes como pessoas odiosas e capazes das maiores barbaridades.

            Depois desses discursos proferidos aos meninos, o cenário se modifica e a situação na frente de batalha é mostrada, embora, rapidamente, apareçam cenas anteriores, em que os agora rapazes, dominados pelo sentimento de defenderem seus países de origem, buscam o alistamento, tomados por um orgulho cívico ímpar (a ideia era que esses rapazes já estivessem prontos, educados desde sua infância de acordo com instruções internalizadas enquanto estudantes para o ódio de seus vizinhos). 

            Logo a seguir, o campo de batalha se apresenta a todos em sua dimensão de crueldade jamais pensada ou imaginada por cada um dos soldados das partes em conflito. O real, em sua dramaticidade, faz com que os sentimentos de patriotismo venham abaixo: o soldado menino/ homem passa a viver entre as expectativas de sobrevivência e morte, se mostra perdido, incrédulo com o que está vivenciando e passa a se questionar por quais razões ali se encontra e por quais motivos tem de passar por isso.                 

            Eis que, nesse ambiente aterrador, o Natal se avizinha. O cenário volta seus holofotes ao que cada um dos membros dos exércitos passa a fazer – dentro do pequeno espaço das trincheiras – quando cada um e no todo depositam suas expectativas para esse dia. O Natal, em toda sua representação simbólica, toma conta de todos – escoceses, franceses e alemães - os quais, como seres humanos, passam a ter atitudes ou comportamentos derivados de suas respectivas formações educacionais e familiares robustamente embebidas por religiosidade cristã, muito similar e superiores ou mais arraigadas do que aquelas em que o ódio lhes foi impingido.   

            A seguir, as cenas evidenciam um extraordinário e inusitado encontro entre as tropas: velas, luzes e cantos proporcionam o clímax do momento em que o humanismo, intrínseco ao homem, aparece em toda sua plenitude e espontaneidade, algo ainda existente em cada um dos combatentes, embora em lados conflitivos.  Eles confraternizam cantando – numa trégua – os hinos natalinos, cada qual em suas línguas. Logo a seguir, dentro de trégua combinada entre os oficiais, os soldados enterram seus mortos e encerram-na por uma partida de futebol, alheios e absortos pelo lúdico. Nesse momento, a estúpida guerra e sua brutalidade são totalmente esquecidas, todos envolvidos por uma disputa prazerosa, infantil e, por isso, humanizadora.    

            Porém, passado esse encontro extraordinário humanístico ocorrido na véspera de Natal e no próprio dia, as forças políticas de cada país beligerante, por seus governantes, condenam os participantes desse encontro, culpabilizando, de modo especial, seus principais oficiais. Tanto ingleses, representados pelos escoceses, franceses e alemães sofreram severas punições por sua “humanidade” protagonizada na véspera e no dia do Natal, e foram os soldados ali envolvidos enviados a outras frentes de combate, como castigo.    

            No processo investigatório dessas ações, entendidas como “traidoras”, figuras representativas da sociedade de então ali estiveram presentes: os políticos detentores do poder, os militares graduados e os representantes das igrejas. Cada um deles, por sua vez, externou sua opinião, mostrando o quanto tal atitude conciliatória era prejudicial aos seus países (interesses).

            Como exemplo, eis que disse o bispo católico, citando a São Mateus, num exórdio aos soldados franceses e ingleses: “... Eu não vim para trazer a paz, mas a espada” e, logo a seguir, completou: “Eles não são... vocês devem matar os alemães, jovens ou velhos, para que isso não se repita”. O representante da igreja católica, um bispo, fica desnudo frente aos soldados, abandona seus princípios e rasga, com seu discurso, o ideário cristão do amor ao outro pregado por Jesus Cristo e que, certamente, fez parte de sua formação religiosa, logo ele, um homem que atingiu patamares mais elevados dentro da estrutura da igreja católica.

            O filme é maravilhoso ao mostrar como os homens são capazes de perder suas convicções, crenças e valores na dependência do que se passa ao seu redor. O ódio, a raiva e os sentimentos destrutivos se mostram poderosos quando interesses de qualquer natureza (econômicos, políticos ou religiosos) sobrepõem-se ao humanismo.

Outros valores que não o amor e o respeito ao próximo passam a ser dominantes. O ser humano, em face das dificuldades, procura adaptar-se e, nesse processo extremamente difícil - contaminado por um ideário político perverso, ideologias ou crenças religiosas - muitas vezes tem de escolher o lado para onde deve ir. E o que é pior, as escolhas podem não ser as mais corretas em longo prazo, quando o horizonte político se transforma.

Na história da humanidade há muitos exemplos sobre isso. O nazismo e suas atrocidades não foi somente uma ação isolada de Hitler. Ao contrário, os alemães, como um todo, se engajaram no processo de revitalização do poder da Alemanha. A guerra fria entre Estados Unidos e Rússia, depois de anos de ameaças recíprocas, mostrou-se um instrumento ridículo, originando a morte, por suicídio, de um general russo, pela constatação de sua inutilidade e por esforços desproporcionais utilizados no período, quando, também, muitas vidas foram ceifadas.  

            Em todos os tempos – como descrito na Bíblia – há guerras e disputas entre os povos. Porém, na atualidade, os confrontos são patrocinados pelas grandes potências em qualquer palco propiciatório, não importa a região do globo. No início do século XX as Coreias foram repartidas depois de anos de sangrentas batalhas, o mesmo ocorrendo com o Vietnã, hoje unificado, após milhares de mortos, que perderam suas vidas sem que soubessem por qual razão estavam lutando. No momento, o cenário se repete na Síria, um pouco antes foi no Líbano e, anteriormente, na Iugoslávia.

            No contraponto, em decorrência do sentimento de inutilidade pelos confrontos modernos, um número cada vez maior de soldados americanos, oriundos das invasões no Iraque e no Afeganistão, tem recorrido ao suicídio depois de seu regresso ao país. Porém, as causas desse comportamento, segundo especialistas americanos, ainda estão sendo investigadas, ignorantes do quanto a violência é devastadora para quem a comete sem uma devida justificativa racional.                          

            Voltando os olhos para o filme e a carnificina ali projetada e fazendo comparação com a atualidade, o que vemos hoje: a Alemanha e a França unidas, fazendo parte da Comunidade Europeia, com ligações políticas e econômicas significativas com a Inglaterra. O presente, mais uma vez, está a comprovar a estupidez humana ao disputar confrontos promovidos por políticos ávidos pelo poder ou pelo cotejamento de circunstâncias abstratas promotoras de desumanização, utilizando as mais das vezes um ideário chamativo aos incautos, colorido com matizes ideológicos ou religiosos.    

            Enquanto isso, como muito bem sinalizou Pompeu de Toledo, como contraponto, na Revista Veja de 22.08.2012, os vencedores da última olimpíada foram as grandes potências nucleares: Estados Unidos, China, Grã-Bretanha e Rússia, sendo o sétimo lugar ocupado pela França, outra nação do clube nuclear. Cabe lembrar que todas essas potências são, ao mesmo tempo, as maiores produtoras de armas e, por conseguinte, as que mais incentivam seu uso nos conflitos ao redor do mundo. O que é a olimpíada então? Uma fachada a esconder aos olhos do mundo o cinismo do comportamento humano?               

            Trata-se de um filme educativo e capaz de nos fazer pensar e muito refletir sobre tudo isso.          Assistam ao filme, deixem que seus sentimentos aflorem, reflitam sobre o que eu disse sobre ele e de suas propriedades de nos comprometer para um mundo melhor ou pior. Tirem suas próprias conclusões...

Com esse escrito encerro minhas contribuições para este ano e desejo a todos um Feliz Natal, com esperanças de que as ideias do extraordinário Mandela nos guiem para o futuro. 

·        Doutor em Psiquiatria.

·       Endereço p/corespondência: [email protected]                      

                                      


TOP