Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2012 - Vol.17 - Nº 10

História da Psiquiatria

CONSUMO E RELIGIÃO: UMA VISÃO PSICANALITICA A PARTIR DA NEUROCIÊNCIA

Gildo Katz

    Nos dias 28-29 de setembro de 2012 aconteceu a XXIII Jornada Paulo Guedes (http://www.polbr.med.br/ano02/wal0102.php), reunião científica da Fundação Universitária Mário Martins (http://www.polbr.med.br/ano12/wal0512.php). Muito

Os trabalhos interessantes e instigantes foram apresentados. Um dos trabalhos que chamou a atenção resolvi trazer ao conhecimento dos leitores da Psiquiatria online.

Introdução

          O objetivo deste trabalho e examinar se o culto ao consumo seria uma nova religião: o culto ao deus Consumo. Uma das possibilidades é que é focar desde logo os aspectos psicológicos  do consumo visto que  existem inúmeras publicações não psicanalíticas que enfatizam o caráter divino das marcas famosas. As pessoas se voltam a elas em busca de um sentido. Gostaria, no entanto, de começar a partir de outro vértice. D- 2,3

                 

              Em primeiro lugar, esclarecer a ligação existente entre o comportamento de consumo e a religião.

          

         Haveria semelhanças entre o modo como nosso cérebro reage a símbolos religiosos  e a maneira como reage a produtos e marcas? Será que certas marcas podem provocar o mesmo tipo de emoção ou inspirar a mesma devoção e lealdade provocada pela religião? Será que a religião, tal como ocorre com o ritual e a superstição, podem influenciar a maneira como compramos e o que decidimos comprar?

 

         Martin Lindstrom, em sua “A lógica do consumo”, tentou encaminhar estas questões através de um exemplo bastante ilustrativo. D-5

 

         “Ao longo dos dias, 15 freiras entraram em um laboratório da Universidade de Montreal, e se acomodaram na mesa de exames do IRMF. Com idades que variavam entre 23 e 64 anos, as mulheres que participaram deste estudo eram da ordem das carmelitas enclausuradas, uma austera seita do catolicismo”.

 

         Ele tentava por meio de neuroimagens descobrir a resposta para uma pergunta complexa: que partes do cérebro se ativam quando estamos engajados em experiências pessoais, espirituais ou quando temos a sensação de estarmos perto de Deus?

 

         Começou pedindo às freiras que relembrassem experiências mais profundas que tiveram como membros da ordem. Como era de se esperar, as imagens revelaram que, ao recordar aquelas experiências, exibiam uma grande atividade no núcleo caudado e na ínsula, regiões do cérebro que produzem sentimentos de alegria, serenidade, autoconsciência e amor.

 

         Depois, pediu às freiras que recordassem uma experiência emocional profunda que tiveram com outro ser humano. Curiosamente, a atividade cerebral registrada nessas imagens era bem diferente.

        

         Concluiu que, embora não haja um “ponto divino” específico no cérebro, existem padrões diferentes de atividade cerebral durante pensamentos sobre religião e durante pensamentos sobre vínculos com seres humanos. D-6

 

         A partir desta experiência, Lindstrom tentou provar a existência de uma ligação científica entre as marcas e as religiões do mundo. Optou por examinar a força de marcas icônicas como Apple, Guiness, Ferrari e Harley-Davidson, não apenas porque essas são marcas populares, mas também porque é o que ele denomina “marcas quebráveis”. “Quebre sua marca” é uma expressão que remonta a 1915, quando a Coca-Cola pediu que um designer criasse uma garrafa que os consumidores pudessem reconhecer a da Coca-Cola mesmo que estivesse estilhaçada em mil pedaços. Este fenômeno repete-se com um Ipod, ainda que não encontremos a logomarca da Apple em nenhum lugar do aparelho destruído. Não é diferente com um pedaço de sucata de uma Ferrari que teve perda total. Este é facilmente reconhecido graças ao seu exclusivo tom de vermelho.

 

         O motivo pelo qual ele utilizou as marcas quebráveis era porque elas tendem a serem os mais fortes e cativantes emocionalmente, seus seguidores são passionais e leais.

 

        Os 65 voluntários eram homens ligados ao esporte partindo da hipótese de que os heróis do esporte ativavam as mesmas áreas do cérebro que a religião. Assim como os membros de uma religião, os fãs dos esportes têm uma forte sensação de pertencimento, uma missão clara de vencer e um forte apelo sensorial (o som do hino do clube antes dos jogos). Por este motivo decidiu comparar como o cérebro reagia a ícones e objetos esportivos e como reagiam a imagens religiosas.

 

         Na medida em que os voluntários entravam  no laboratório e eram ligados ao IRMF, as imagens começavam a ser exibidas em sequência: uma garrafa de Coca-Cola. O papa. Um Ipod.  Contas de um rosário. Por fim, imagens de alguns times e indivíduos do mundo do esporte e algumas marcas fracas.

 

         Ao serem analisados os dados, descobriu que marcas fortes geravam mais atividade do que marcas fracas em áreas do cérebro ligadas a memória, emoção, tomada de decisões e significado. Isto não causou surpresa.

 

         A descoberta seguinte é que foi realmente fascinante. Percebeu que, quando as pessoas viam imagens associadas a marcas fortes como Apple, Harley-Davidson, Ferrari, seus cérebros registravam exatamente os mesmos padrões de atividade quando elas viam as imagens religiosas.

 

         E, na verdade, apesar de tudo que o mundo do esporte compartilha com as grandes religiões, nem mesmo imagens esportivas suscitavam uma reação emocional tão forte no cérebro quanto às marcas fortes.  D-7

 

         Estas têm muito mais poder do que as imagens esportivas para estimular as regiões cerebrais de armazenamento de lembranças e tomadas de decisões, pois, quando estamos pensando em comprar um televisor ou uma roupa nova, nosso cérebro evoca todos os tipos de informação a respeito do produto – preço, recursos, nossas experiências passadas com ele – e toma uma decisão adequada. D-8. Porém, quando o assunto é esporte, há pouca busca de informações ou tomada de decisões envolvidas, torcemos para Grêmio ou Inter simplesmente porque sim.

 

         Resumindo, a pesquisa mostrou que as emoções que nós sentimos ao sermos expostos a Ipods, Guiness, Ferraris são quase idênticas às emoções geradas por símbolos religiosos como cruzes, a Virgem Maria e a Bíblia. D-8

         Este é o motivo pelo qual os publicitários utilizam imagens originadas do mundo religioso para nos instigar a comprar produtos.

 

         Por exemplo, existe um chocolate de nome Kit Kat que é produzido pela Nestlé. Quando a companhia lançou o produto no Japão, a população notou que a palavra Kit Kat tinha um som parecido com “Kitto-Katsu”, que pode ser traduzido aproximadamente como ganhar na certa. Com o tempo os estudantes começaram a acreditar que comer Kit Kat antes das provas traria notas altas, um dos grandes fatores de sucesso da marca. Além de lançar o produto em um saco azul para que o consumidor se sentisse no paraíso, escreveu “pedido a Deus” na embalagem. O chocolate está fazendo grande sucesso na Ásia não apenas porque é considerado um alimento que dá sorte, mas porque no site da Nestlé, os visitantes podem inserir um pedido, que, segundo eles, será enviado a uma força superior que não se distingue por uma bandeira específica como o judaísmo, o catolicismo, o islamismo ou o budismo.

         A partir daí pode-se concluir que marcas associadas a rituais, superstições ou indiretamente relacionadas à religião, são mais poderosas do que as outras porque estão vinculados à ilusão de estabilidade, conforto, proteção de uma figura poderosa que coincide com as idéias de Freud em seus trabalhos sobre religião como “Totem e tabu” e “O futuro de uma ilusão”. Neles, sustenta que a religião ocupa um papel central na civilização por satisfazer anseios de proteção de um Pai poderoso e fortalecer a ilusão da imortalidade. D-9

 

         Mas existe outro aspecto que não foi esquecido por Freud e agora é corroborado pela ciência com o nome de marcadores somáticos, termo cunhado por Antônio Damásio.

 

         O filósofo grego Sócrates propôs certa vez a seu discípulo Teaetetus imaginar a mente como um bloco de cera, no qual estampamos o que percebemos ou concebemos. Sócrates disse que conhecemos e nos lembramos de tudo o que for impresso na cera, desde que a imagem permaneça nela, mas que esquecemos e desconhecemos o que não pode ser impresso. Uma metáfora tão sugestiva e difundida que ainda dizemos que uma experiência causou uma boa, uma má impressão.

        

         Em 1893, Freud escreveu um brilhante trabalho intitulado “Projeto para uma psicologia científica” escrito em três semanas. Esta obra magnífica contém o maior e mais acabado estudo sobre a mente humana desde uma perspectiva psicofisiológica. Entre tantos ensinamentos, mostram como as experiências do bebê vão deixando marcas, trajetos, rastros, memórias que mais adiante irão ser evocadas com os acontecimentos da vida adulta. Aquilo que não fosse impresso “nesta cera” não teria qualquer repercussão afetiva porque não desencadeia qualquer cadeia associativa. D-10

 

         O que Antonio Damásio denomina de “marcadores somáticos” é a cadeia de conceitos, associações fruto das marcas deixadas na “cera socrática” pelas experiências infantis, uma espécie de lembrete ou atalho em nosso cérebro. Unidos por experiências anteriores de satisfação ou dor, estes marcadores servem para conectar uma experiência ou emoção a uma reação específica necessária. Os marcadores nos guiam em direção a uma decisão que sabemos inconscientemente que irá gerar o melhor resultado, ou os resultados menos dolorosos.

 

      Se estes atalhos cognitivos ajudam uma criança a não colocar a mão em uma chapa quente ou um adulto a não deixar de olhar para os dois lados ao atravessar a rua, também estão por trás da maioria de nossas decisões de compra. Em outras palavras, os profissionais da propaganda sabem e agora de forma mais consistente pelos achados da neurociência, que o nosso comportamento é pautado por padrões inconscientes e que estão marcadas por experiências sensoriais da primitiva infância. D- 11

 

         Mas os marcadores somáticos não são simplesmente uma coleção de reflexos da infância e da adolescência. Todo o dia fabricamos novos marcadores, adicionando-os à ampla coleção existente. E quanto maior a coleção de marcadores somáticos do nosso cérebro sejam eles para gomas de mascar, automóveis, desodorantes, maior o número de decisões de compra que somos capazes de tomar. Ao pensarmos em um carro imaginamos a Alemanha por tudo o que conhecemos sobre sua avançada tecnologia automobilística. Não é sem motivo que ao compararmos um Hyunday Sonata, pensamos o quanto ele se parece a uma Mercedes 350. E os coreanos sabem que o desenho deste modelo ativa as partes do cérebro capazes de criar a mesma ilusão que a religião oferece.

 

         Todos estes marcadores aparentemente desconexos criam deliberadamente certas associações – segurança, qualidade, confiabilidade e são essas poderosas associações que se unem no inconsciente para guiá-lo em direção a uma escolha que parece racional, mas que não é. D-12

 

         Como os marcadores somáticos se baseiam em experiências passadas de recompensa e punição, o medo também pode criar alguns dos marcadores mais poderosos e muitos publicitários os utilizam para tirar proveito de nossa natureza estressada, insegura e cada vez mais vulnerável. Nesse particular, a indústria farmacêutica ocupa um lugar ímpar. Compramos remédios para afastar a depressão – a pílula da felicidade, pílulas para controlar o apetite e evitar a obesidade, anabolizantes para nos sentir mais poderosos, cremes e unguentos para aplacar o medo de envelhecer.

 

         E quanto ao transtorno de déficit de atenção e seu rosário de associações negativas e até mesmo catastróficas? Quinze anos atrás, esse transtorno mal existia, mas hoje está sendo diagnosticado com uma velocidade espantosa só comparada ao transtorno bipolar. É claro que o problema está presente e muitas crianças se beneficiam com o tratamento adequado. O medo que nossos filhos tenham esse transtorno saturou nossa cultura como um vírus. E o resultado, é claro, são milhões de pais que compram o remédio para os filhos pelo temor que sem a Ritalina ou o Concerta, o fracasso escolar será inevitável. Ele irá ficar para trás, será socialmente marginalizado por não ingressar na universidade.

 

Mas, nem todos os marcadores se baseiam na dor e no medo. Alguns dos mais eficazes dentre eles se baseiam em experiências sensoriais que, de fato, podem ser bastante agradáveis em função à sensação de alívio pela estabilidade e familiaridade e sentimento de pertencer a um grupo. Isto possibilita supor que muitos consumidores têm um sentimento de lealdade quase religioso em relação a suas marcas e produtos preferidos o que é chamado pelos publicitários de evangelização de uma marca.  D-13        

 

Exemplo Clínico

 

Sentados em um centro de convenções abarrotado em São Francisco no meio de milhares de fãs exaltados, Steve Jobs apareceu no palco usando sua habitual malha de gola alta preta e aparência monástica, e anunciou que a Apple encerraria a produção de sua marca de computadores de mão Newton. Jobs então jogou dramaticamente um Newton na lata de lixo. O Newton tinha acabado. Já era. Furiosos e desesperados, a platéia jogou os seus computadores no chão, pisando neles enquanto choravam. O caos instalou-se no Moscone Center. Era como se Jobs anunciasse que o segundo advento não aconteceria como aconteceria depois com o Ipod, o Iphone, o Ipad. Lindstrom percebeu na loja templo de Manhattan, aberta 24 horas como algumas igrejas evangélicas, que um raio de luz matutina atravessa o vidro e ilumina a logomarca da Apple, a qual,  semelhante a estrela de Belém,  pende no teto,  dando a entender que aquilo não é uma simples demonstração do produto. Para seus milhões de fervorosos clientes, a Apple não é uma marca, é uma religião. O mesmo ocorre com os adeptos da Harley-Davidson e seus complicados rituais que incluem cerimônias funerárias nas quais o indivíduo é enterrado em seu uniforme e até com as suas máquinas poderosas. D-14

 

Comentários Finais

        

         Se, em um primeiro momento, examinei a forte relação que existe entre o consumo e a religião, caberia, agora, atendendo ao objetivo do trabalho, perguntar se o culto do consumo é uma nova religião?

 

           Creio que com o que foi relatado até aqui, poderíamos ficar tentados a concordar com Frei Betto em um ensaio radical sobre o consumo.

 

         Para ele, a apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping-centers. Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. Neles não se entra com qualquer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo. Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem recorre ao cheque especial ou ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso, no inferno.

 

         Será que ao fazer uma defesa tão desprovida de reflexão não cria uma nova religião “o anticonsumo” que contraria um princípio natural e presente desde os primórdios da civilização no qual o consumo é uma forma da humanidade de se desenvolver através das trocas emocionais e científicas envolvidas nas transações comerciais e no incremento da criatividade para estimular o consumo? Será que ele já visitou o Vaticano e observou o luxo, a ostentação e a falta de mendigos? E é preciso recordar que, para Freud, a religião, embora útil, não passava de uma ilusão tal como Frei Betto considera os produtos de consumo.

        

         Talvez, as idéias de Bauman sobre o tema possam ajudar a ampliar o conhecimento deste assunto polêmico.

        

         Bauman divide a questão entre consumo e consumismo. O consumo é algo natural enquanto o consumismo é uma forma de vida. Baseia-se na promessa de que a cura para todos os problemas está à espera em alguma loja e só poderá ser encontrado se for procurado de modo fervoroso. Para Bauman, os efeitos posteriores dessa promessa são mortais.

 

Para ele, a ascensão do consumidor consumista é a queda do cidadão. Quanto mais habilidoso é o consumista, mais inepto é o cidadão. Seria como substituir a cura da moléstia pela luta contra os sintomas- não podemos encontrar nas lojas um remédio para as causas dos problemas, apenas a receita de como acalmá-los. De uma forma semelhante, é o que pensa a psicanálise. Ele não trata os sintomas, mas a causa deles para que o paciente resgate a sua subjetividade, a sua originalidade ou, nas palavras de Bauman, seu orgulho de cidadão. D-15

        

         Creio ser esta uma maneira menos radical e mais realista de abordar o tema proposto por Frei Betto e por parte da mídia.

 

          Se o consumo vem ao encontro de um desejo, atende uma reação natural do individuo, presente desde sempre na civilização. Se for uma forma de vida é preciso conhecer qual o nível do funcionamento mental do consumista.  Caso corresponda a um anseio de preencher a falta de uma figura significativa em sua vida, uma forma de escapismo fundamentada na ilusão para evitar a realidade, talvez pudesse ser pensada como uma nova religião. Mas, se a busca por produtos serve para aliviar uma tensão insuportável de natureza biológica, estamos diante de uma drogadição passível de um tratamento psiquiátrico e/ou psicanalítico, não de uma religião. D-16

 

            Os psicanalistas, para entenderem a maneira como as pessoas vivem, rezam e consomem, precisam se inserir na cultura de um povo para apreender seu  sistema silencioso de códigos – os Códigos Culturais –como denominou Clotairre Rapaille” em seu notável livro “ O Código Cultural” já na terceira edição no Brasil. Ao decifrar  este código oculto, sugere o antropólogo, que também já praticou a psicanálise, alcançamos uma nova maneira de saber o motivo de fazermos o que fazemos e  entendemos porque  as pessoas são diferentes.

 

 Penso que o problema do consumo como adição está vinculado a falhas na primitiva relação mãe bebê, na qual não ocorreram certas marcas na “cera socrática” da mente. Resta então um vazio que não pode ser preenchido e que é diferente da depressão consequente a uma perda. Creio que naqueles casos, fica difícil encontrar um código para ser decifrado, pois o trabalho desenvolvido por Rapaille é baseado em experiências sensoriais infantis que deixaram marcas e se organizaram em um código cultural. D-17. Já a adição é uma patologia sem memória, sem rastros daí a busca desesperada por um remédio, por marcas que prometem a ilusão de uma subjetividade ausente. As marcas dizem o que eu sou sem que eu saiba quem eu sou.


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