Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2012 - Vol.17 - Nº 9

História da Psiquiatria

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO PIAUÍ: UMA HISTÓRIA EM DOIS PERÍODOS

Carlos Francisco Almeida de Oliveira
Doutorando em Ciências Médicas pelo DINTER Unicamp/UFPI
[email protected]

Samuel Robson Moreira Rego
Professor de Psiquiatria da Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
[email protected]

Caio Moraes Nunes
Enfermeiro Graduado pela Universidade Federal do Piauí(UFPI)
[email protected]

PREÂMBULOS

Apresenta-se neste trabalho um detalhamento de dois períodos históricos basilares da assistência psiquiátrica no Piauí.

No primeiro momento histórico é relatado o proto-assistencialismo alienístico no estado do Piauí, que se inicia assim como nos demais estados da federação, com a movimentação social para a criação de um “Hospital de Caridade” em 1828, passando pelos institutos das “Santas Casas de Misericórdia” tanto em Oeiras, primeira capital da Província do Piauhy, até a concretização dessas instituições em Teresina, capital da província a partir de 1852.

No segundo momento histórico, é descrito desde o marco evolutivo crucial da inauguração do “Asylo de Alienados” em 1907 até a fundação do “Sanatório Meduna”, em 1954, pelo Dr. Clidenor de Freitas Santos, um dos pioneiros da história psiquiátrica piauiense. Hoje, o antigo sanatório deu lugar  a um moderno Shopping Center e desenvolve-se uma luta, pouco gloriosa, para preservação do fantástico acervo científico organizado ao longo de anos pelo Dr. Clidenor e por seu irmão o Dr. Wilson de Freitas Santos, outro personagem símbolo de uma psiquiatria que se esvai no tempo.

 

 

A)    1828 – 1907

Afirma o historiador Dagoberto Carvalho Jr. em seu livro “Historia Episcopal do Piauí: Em 1761 há a registrar uma apresentação dos vereadores da Vila da Mocha pedindo a fundação de um Hospício de Religiosos Capuchos com número de seis, homens doutos e de vida exemplar a que esteja anexa a Terceira Ordem do Seráfico Padre Sam Francisco”. Entre as assinaturas dos moradores encontra-se a de Frei Francisco José da Natividade Roma, religioso capucho de São Francisco. O Pe. Cláudio Melo, historiador piauiense, diz que esse “Hospício de Caridade” não chegou a ser concluído, e que teria a finalidade de atender aos desvalidos da região. Esse local era em Oeiras, lugar onde se pensa ter sido a casa dos jesuítas, afirma o Pe. Cláudio. A essa mesma época, no Ceará, houve outro “Hospício”, esse tendo sido concluído e servido como educandário, dando, pois a esse termo, designação bem diferente da dos nossos dias.

Esse “Hospício de Caridade”, que não chegou a ser concluído, com certeza já era prenúncio da construção, no século seguinte, do primeiro hospital do Piauí, o “Hospital de Caridade de Oeiras” que é onde começa a nossa história.

 

Manoel de Sousa Martins, o Visconde de Parnaíba, que governou, com pequenas interrupções, o Piauí de 24/ 01/1823 a 30/12/1843, possuía grande poder. E para um governo de aptidões militaristas, fato esse comprovado tanto no levante armado contra Fidié em 1823 e quando levou o Piauí à Guerra da Balaiada em 1839, seria natural pensar-se que setores com a Educação e a Saúde ficassem esquecidos. Como é comum em um governo tipicamente ditatorial, as ações mais profícuas no setor da saúde partem de iniciativas próprias da sociedade.

 

E assim foi que em um dos interregnos do governo do Visconde, a 18 de abril de 1829, um requerimento do Palácio do Governo em Oeiras, assinado pelo então presidente da província, João José Guimarães e Silva, criava um registro para que o “mordomo” designado Manoel Luiz Ferreira recebesse as “esmolas” dadas no sentido da futura criação de um “Hospital de Caridade” que viesse a atender aos “expostos” e aos “presos da cadeia”.

 

Há vários outros documentos seguintes comprovando a doação pela sociedade de quantias visando a criação do “Hospital de Caridade”. Esses documentos prestadores de conta são sempre assinados pelo “mordomo dos presos e expostos”. Não se sabe se esse dinheiro foi usado em beneficio de tal população carente, mas o fato é que somente em 04/07/1835 foi criado pela Lei Provincial nº 9, no governo  do Visconde de Parnaíba, o “ Hospital de Caridade de Oeiras” ao lado da igreja do Rosário. Sua inauguração, no entanto se daria apenas em 31/03/1849, no governo de Anselmo Francisco Peretti. Fato a ressaltar é que o inicio das obras se deu no governo de Zacarias de Góis e Vasconcelos, no inicio de 1847.

 

Bem, passava a existir um hospital em Oeiras, mas a mudança da capital da Província para Teresina, pouco tempo depois, ocasionaria um profundo retrocesso na assistência á saúde pública, o que permite afirmar-se que a assistência médica aos oeirenses no século passado foi eminentemente domiciliar e de rua.

 

Os doentes de família abastadas eram então tratados em casa e os indigentes eram deixados na rua ou, quando perturbavam o sossego, eram então mandados para a cadeia pública, onde eram tratados sem nenhum padrão de atendimento.

Os doentes de ordem orgânica já tinham muitas dificuldades para serem tratados, imagina-se então que os doentes mentais viviam à própria sorte.

Ainda com relação ao exposto acima, observamos que em Oeiras as famílias sempre  optaram por um modo tradicional de se relacionar. Tradição essa expressada tanto no conservadorismo das relações afetivas, que observamos no caso dos casamentos consangüíneos, como também no culto às questões culturais fortemente enraizados no povo.

 

“Oeiras, primeira capital da província do Piauhy, foi colonizada a partir do interior, o que a torna diferente das outras capitais da província da Casa da Torre da Bahia, isolada de outros centros, com uma forte influência católica, inicialmente jesuítica, as famílias, verdadeiros feudos encapsulados, com grande interesse político para se manterem sempre no poder, permitiam somente casamentos consangüíneos, elevando, portanto a possibilidade de surgirem, com mais facilidade, enfermos mentais.” (Gutemberg Soares)

 

Reforçando o que disse o Prof. Gutemberg Soares, o Professor de Psiquiatria da UFPI, Anfrísio Castelo Branco, artigo na revista da Universidade Federal do Piauí (janeiro/80), “Assistência Psiquiátrica no Piauí”, diz: O território piauiense fez parte da jurisdição do Maranhão até o ano 1718, quando um alvará de El-Rei D. João V de Portugal, criou a capitania do Piauí, o que só se efetivou 40 anos depois, com a nomeação do seu primeiro governador, João Pereira Caldas. Sua colonização, diferindo dos demais estados nordestinos, não se fez através da costa, mas sim, pelo sul, interiorana, sobretudo por uma extensão natural das fazendas de gado bovinos precedentes da Bahia. “Sua primeira capital teve como origem a sede da fazenda Cabroró que, em 1718 passou a categoria de Vila, denominada Vila da Mocha e que em 1758 se elevou à categoria de cidade, com o nome de Oeiras”.

 

O caráter introspectivo do povo de Oeiras poderia, pois, ser explicado também pela estrutura rural de sua primeira sociedade. Uma sociedade pouco estratificada, com estruturas de poder bem delimitadas e, como se observa na transcrição acima, com mudanças muito lentas, o que certamente propiciava aos habitantes da época uma expectativa pouco animadora e tediosa em relação ao seu futuro.

 

O professor e intelectual oeirense, Possidônio Queiroz, acrescenta o fato de que a mudança da capital da Província do Piauí, de Oeiras para Teresina, em 1852, causou uma grande depressão social e ainda hoje se observa a presença de uma mágoa que se estende por todo o Sul do Piauí contra essa mudança de rumos para o norte. “Oeiras foi a cidade mais atingida. Isso aqui ficou uma verdadeira tristeza. Me contam que muitas pessoas acompanharam à pé algumas léguas, e chorando, os animais que carregavam para Teresina as riquezas daqui. Oeiras ficou arrasada, pobre. Essa tristeza pode até ter aumentado o número de doenças mentais por aqui”.

 

Acerca da assistência mental em Oeiras no século XIX, o médico e escritor José Expedito do Rêgo diz: “não posso afirmar com certeza histórica, mas tudo indica que, mesmo quando ainda funcionava o primeiro hospital de Oeiras, os loucos, “furiosos” eram recolhidos à prisão policial. Lembro-me de ter visto, na minha infância, loucos serem detidos na cadeia pública. Se tal acontecia no segundo quartel desse século, quanto mais no século passado”.

 

Com a transferência da capital da província para Teresina, abre-se um ciclo com novas perspectivas, capitaneado pelo governador da época, José Antonio Saraiva. Ao lado de Saraiva, militaram homens como Simplício de Sousa Mendes, médico; José Nunes de Campos, engenheiro; e João Isidoro França, mestre de obras. Cercava-se Saraiva, então, de homens com mentalidade avançada para a época e que acreditavam ser a mudança da capital benéfica em todos os sentidos para o povo do Piauí. Monsenhor Joaquim Chaves, historiador piauiense, reproduz, por exemplo, em seu livro: “Apontamentos biográficos e outros”, ofício do então governador Simplício Mendes, após a saída de Saraiva, ao engenheiro da província: “Sendo uma das maiores necessidades que presentemente sofre esta capital a de boa água potável para os diferentes misteres da vida, visto como a do Parnaíba na estação invernosa, qual a em que ora nos achamos, contém em dissolução muito barro e outras substâncias nocivas à saúde... Ordeno a V.Mcê. que examine minuciosamente o melhor local e mais bonito e cômodo ao público desta cidade que se oferece no chamado “barrocão” e que corre pelo lado superior da cidade para assentar-se aí um bom açude, que satisfaça perfeitamente tão indeclinável necessidade” (Teresina, 15 de março de1853).

 

Iniciava-se, então, a preocupação com “Saúde Pública” no Piauí. Complementa  Monsenhor Chaves: “Vê-se bem que a preocupação com água potável é a de um administrador que é médico. O açude do “barrocão” não se fez, mas a ideia, para aquele tempo, bem que é genial.”

Os ideais progressistas e o sentimento mudancista já eram visíveis no governo de Zacarias de Góis, advogado que governou o Piauí de 1845 a 1847. Zacarias de Góis deixou relatórios incentivando a mudança, e esse sentimento se fazia sentir também na área da saúde pública. Foi ele, por exemplo, que iniciou as obras de construção do Hospital de Caridade em Oeiras, que veio a ser concluído em 1849. A mudança da capital se deu, pois, em 16 de agosto de 1852.

 

“Teresina não possuía hospital. Sua instalação ia depender da Assembléia Provincial que ainda não se reunia na nova capital. Havia uma enfermaria no batalhão de linha e outra ia ser instalada na casa que servia de quartel de policia”. (Mons. Joaquim Chaves – Apontamentos biográficos e outros).

 

A “Saúde Pública” em Teresina ascendia e a de Oeiras agonizava. O Hospital de Caridade de Oeiras, que passou também a chamar-se de Santa Casa de Misericórdia, não durou muito tempo. O historiador e médico oeirense, Dagoberto Carvalho, escreve em “Passeio a Oeiras”: “Do outro lado da igreja, construiu-se entre 1846 e 1849, o Hospital de Caridade de Oeiras, primeiro hospital público do Piauí... O hospital não durou muito. Em 1883, a Santa Casa de Misericórdia, como também foi conhecida, era considerado o melhor edifício público da cidade, não só pela construção, como também pelas acomodações. Já em 1900, o verbo telúrico de Dr. Luís de Carvalho – oeirense ilustre de muita fama na ilha do Maranhão – denunciou “as picaretas selvagens” que tudo destruíam. Quem sabe Dr. Luís, a capela quisesse ficar sozinha”.

 

O atendimento público em Teresina era eminentemente domiciliar, até que em 01 de janeiro de 1854, o então presidente da província, Dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho, inaugurou o Hospital da Caridade de Teresina, na parte pronta do quartel de polícia, em construção, visto não existir, á época, casa própria para a instalação do hospital como dispõe a resolução provincial nº 36 de 14 de setembro de 1853. (Cronologia Histórica do Estado do Piauí – Pereira da Costa).

 

“O Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Teresina, instalou-se em 17 de agosto de 1861, sucedendo, cronologicamente, o Hospital de Caridade, que, de Oeiras se transferiu, com a capital, em 1852... A Santa Casa e seu Hospital continuaram a padecer da falta de recursos que o levaram a substituir o velho Hospital de Caridade. Continuando a caracterizar-lhe a mesma dependência do poder público que já se deixara antever no relatório com que o presidente Dr. Manoel Antonio Duarte de Azevedo passou o governo da província ao Desembargador Amaral”. (A Obstetrícia no Piauí – Dagoberto Carvalho Jr. e Humberto Guimarães).

 

Do “Compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Teresina”, os autores transcrevem os títulos V e VI.

 

No titulo V, têm-se no capitulo I: “Da classificação do serviço médico – Art. 40 – O serviço médico será classificado segundo a natureza das enfermidades. 1º - Em clinica médica geral, abrangendo os inválidos e loucos de todo gênero. 2º - Em clinica cirúrgica, inclusive as parturientes.

 

No titulo VI. Art. 66 - Serão admitidos no hospital: 1º - Os irmãos da Santa Casa que não tiveram condição de pagar o seu tratamento... 2º - Todas as pessoas que quiserem ser tratadas no hospital como pensionistas de primeira e segunda classe, apresentando ao mordomo documentos de pessoa idônea que as financiem... 3º -  As pessoas enfermas que apresentarem atestados de indigência passados pelo pároco ou autoridade policial da respectiva freguesia, serão tratadas gratuitamente.”

 

Ora, nem sempre os loucos de rua tinham quem os encaminhassem ao “parocho ou autoridade policial da freguesia”. Alie-se a isto, o fato do pouco engajamento histórico da igreja piauiense na questão dos doentes mentais e a pouca compreensão da policia, que pelos poucos registros, os encaminhavam para a “Casa de Detenção”, em lugar de remetê-los à Santa Casa de Misericórdia.

 

Diz o Pe. Cláudio Melo: “Não tenho noticia da participação da igreja na construção do Hospital de Caridade... A igreja envolveu-se mais com a educação e a política... Logo que foi feita a Santa Casa, foi feita uma capela-guia e existia um padre dando assistência religiosa, mas seu trabalho era mesmo de administrar sacramentos como capelão”. O trabalho desse capelão restringia-se à periferia da Santa Casa, atendendo somente aos doentes que já estivessem melhores de saúde e que pudessem se dirigir a essa capela.

 

No registro nº 1297 do arquivo estadual, há o mapa de entrada e saída de pacientes na Santa Casa de Misericórdia, no período de 18 de junho de 1879 a 29 de agosto de 1879. Não há nenhum diagnóstico Psiquiátrico na Santa Casa de Misericórdia. Em relação aos casos de sífilis, há que se destacar que, logo nos primeiros livros de ocorrência do “Asylo de Alienados”, que viria a ser instalado em 1907, há o diagnóstico de neurosífilis, só aí, então, caracterizando-se o diagnóstico psiquiátrico e não o clínico, como outrora.

 

É bem verdade que a maior preocupação, à essa época, do governo da província eram as moléstias infecto-contagiosas, principalmente no interior, como mostram ofícios do Palácio do Governo aos médicos do Partido Público e Comissários de Vacinação (1854, 1872, 1876, 1877), todos versando sobre providências a serem tomadas com os diversos surtos epidêmicos que grassavam no Piauí. Sobre isso escreve Odilon Nunes, em “Pesquisas para a História do Piauí – Vol.2”: Desde fins de 1861 a fins de 1863, a febre amarela e o cólera-morbo dizimavam a população piauiense, declinando por vezes, para recrudescer em seguida... As autoridades tomam providências, fazem a remessa de medicamentos e numerários para as vilas e cidades atingidas ou ameaçadas pelo surto epidêmico, autorizam que se contratem pessoas que possam prestar serviços assistenciais, que se obtenham casas para acolher os doentes e se escolham locais apropriados para cemitérios... A varíola que vez por outra se manifestava pelo verão em casos isolados, no verão de 1867 toma caráter epidêmico em Teresina, Parnaíba, Amarante e ao longo do rio atingindo outras regiões da província. A “febre-amarela e o cólera-morbo que continuariam a fazer vítimas no Ceará ainda assustam o Piauí”.

 

É lógico, pois, se pensar que, tratando-se os doentes mentais como cidadãos de segunda classe como à época se percebiam, as atenções de saúde seriam dadas prioritariamente aos ditos cidadãos produtivos em potencial para a sociedade da época.

Em 4 de Dezembro de 1863, iniciaram-se as obras de construção da “ Casa de Detenção” de Teresina, que viria a ser concluída em 1866. O referido prédio ganha destaque por ter sido depositório de vários doentes mentais que se encontravam às ruas e que para lá eram levados quando se tornavam agitados e agressivos.

 

A assistência médica aos pobres e doentes mentais era mesmo caso de policia. Ficava essa assistência à mercê dos atos humanitários. Pereira da Costa descreve a atuação, como médico, do Dr. José Sérvio Ferreira, em 19 de maio de 1868, por ocasião de seu falecimento: “Médico distinto e dotado dos mais generosos sentimentos de filantropia, o Dr. José Sérvio Ferreira exerceu a sua profissão com a mais admirável dedicação e humanidade, tratando da pobreza desvalida em suas próprias casas, aonde muitas vezes levava ao enfermo desprotegido da fortuna, além dos remédios que lhe receitava o alimento de que carecia”.

 

De agosto de 1868 ao fim de 1872, há vários ofícios do palácio do Governo ao Provedor da Santa Casa de Misericórdia, no sentido de só se permitir o trabalho ao referido estabelecimento de médicos diplomados (Arquivo Público Estadual). Mesmo com essa preocupação, carecia a Saúde Pública de disciplina e, sobretudo de justiça no atendimento aos doentes. Quanto à justiça, ou injustiça, no atendimento aos doentes de classes sociais distintas, o não atendimentos aos pobres e doentes mentais certamente era influenciado pela inexistência de um próprio poder judiciário à época atrelado à justiça do Maranhão.

 

O Tribunal de Justiça do Piauí viria a ser instalado somente em 1891, e dentre os desembargadores, estava Álvaro de Assis Osório Mendes, em cujo futuro governo viria a ser instalado o “Asylo de Alienados”.

 

 Em 21 de Maio de 1889, recebe o Inspetor de Higiene da Província, um ofício do Palácio do Governo, no sentido de promover um “Inquérito Geral de Higiene”, sob orientação do poder imperial, constando de questionário sobre o número e condições dos hospícios, casas de saúde e prisões, onde houvesse alienados em tratamento ou reclusos. Em agosto do mesmo ano, o Palácio do Governo da Província do Piauí recebeu queixas formais da população cobrando tratamento de saúde aos indigentes. A República trazia também o sentimento de justiça e de reivindicação social à população.

 

 

B)                                                                                                                                                                                                                              1907 a 1954

Em 1887, o então formando em medicina, Areolino Antonio de Abreu, apresenta sua these à Faculdade de Medicina da Bahia, a fim de obter o grau de Doutor, denominada: “Glycosúria (diabetes assucarado)”.  Em alguns trechos da tese, observamos: “A glycosúria ou diabetes assucarada é uma moléstia essencialmente crônica, apirética, cuja causa primordial, originária e fundamental parece residir nos centros nervosos... Indivíduos que possuem uma vida sedentária e preguiçosa acham-se predispostos á doença... Os indivíduos ‘no coma diabético’ tornam - se extremamente agitados”...

Areolino de Abreu conclui assim a sua these: “a duração, terminação e prognóstico do diabetes variam conforme as circunstâncias. O individuo que dispõe de recursos para viver em um meio higiênico satisfatório, e cumprir à risca as prescrições médicas, pode modificar a marcha devastadora da moléstia... Quando ao contrário, a glycosúria ataca o pobre desvalido que procura o hospital como refúgio supremo, então o desfecho é quase sempre funesto”.

A despeito das incompletas conclusões clínicas do autor da these, percebe-se no seu interior uma clara preocupação quanto ás questões sociais na saúde e, sobretudo uma inclinação às questões neuropsiquiátricas. Areolino de Abreu viria a ser o grande incentivador da criação do “Asylo de Alienados”, no cargo de vice-governador, e de sua inauguração no ano de 1907.

O historiador piauiense Monsenhor Joaquim Raimundo Ferreira Chaves acredita que a pressão social foi fator decisivo para a criação do Asylo: “Como no caso da libertação dos escravos. E a imprensa de Teresina sempre foi muito livre, aumentando a pressão”.

Álvaro de Assis Osório Mendes assumiu o governo do Estado do Piauí em 01/07/1904, ficando no cargo até a data de seu falecimento em 05/12/1907. Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, Juiz de Direito no interior do Piauí, por três vezes chefe de policia deste estado, foi também um dos cinco primeiros desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, aonde chegou a ser presidente. Ao lado de Álvaro Mendes, assumiu como vice-governador o médico Areolino de Abreu. A parceria entre a medicina e o direito rendeu bons frutos para a Saúde Mental. Vale ressaltar que Álvaro Mendes era filho de Simplício Mendes, médico idealista da época de Saraiva, o que, com certeza, facilitou a compreensão da necessidade da Medicina Preventiva e da Medicina Curativa voltada também ás minorias sociais. O Asylo de Alienados seria, dessa forma, o coroamento dessa administração.

 Sobre isso, relata o Dr. Clidenor de Freitas Santos, em escrito de julho/1941: “Entre nós, no Piauí, a primeira idéia de amparar os psicopatas partiu do Dr. Areolino de Abreu, ilustre médico conterrâneo, dotado de um senso humano singular. Em março de 1906, o Dr. Areolino, então vice-governador do Estado, apoiado pelos seus colegas de profissão, abriu uma subscrição com o fim de angariar donativos para iniciar a construção de um Asylo de alienados. Em poucos meses a subscrição contava cinco contos de réis e o então governador do estado Dr. Álvaro Mendes, apoiando a campanha conseguiu que os cofres estaduais completassem a quantia de oito contos para a aquisição do terreno de uma chácara na Praça Campo de Marte, o que foi feito, tendo em seguida a Câmara dos Deputados no dia 2 de julho de 1906, votado a lei nº 409 concedendo a importância de 20.000$000(vinte contos de réis) para a execução das obras. Simultaneamente o Congresso Nacional votava um auxilio de 15.000$000(quinze contos de réis). O projeto do prédio e construção foi feito pelo engenheiro Dr. Antonio Freire, diretor da Repartição de Obras Públicas. Convém assinalar que esse projeto era completo, nele quase nada faltava. Se tem sido construído tal como foi planejado teríamos ainda hoje um ótimo hospital. Apesar de tudo, o que estava preparado foi inaugurado no dia 24 e de Janeiro de 1907, festivamente e com discursos proferidos pelo Dr. Areolino de Abreu e o representante do chefe do Estado. Seu primeiro diretor foi Dr. Marcos Pereira de Araújo. Apesar de mais tarde o governador do Estado haver gasto mais de 25.000$000 no acabamento do prédio, quantia esta retirada do auxilio que o Governo Federal mandou para socorrer os flagelados, o seu estado era ainda precário.”

Sobre esse fato, o jornal da época, “Piauhy”, noticiava: “Asylo de Alienados – Por telegrama sabemos que a nossa representação no Rio obteve uma verba de 15 contos de réis para auxilio no Asylo de alienados que tem de ser fundado nesta cidade. É um concurso generoso que vem incorporar-se ao subscrito por distintos cavalheiros e Exma. e Srª desta cidade e de diversas localidades. (“Piauhy” num. 884 – The, 05 de janeiro de 1907).

Em 19 de janeiro do mesmo ano, o jornal publicava: “Governo do Estado – Decreto nº 326. Publicado em 3 de janeiro de 1907.

Abre crédito especial de 20. 000$ para fundação do Asylo de Alienados na Capital.

O Governador do Estado do Piauí, em execução a lei nº 409 de 2 de julho do ano passado. Decreta: Art.único – Fica aberto na Secretaria da Fazenda, o crédito especial de vinte contos de réis para serem aplicados á fundação de um Asylo de alienados nesta capital.

O Secretário de Estado em Teresina, 3 de janeiro de 1907, 19º da república.

(L.do S.)

Álvaro de Assis Osório Mendes

João Augusto Rosa

Decreto nº 327 – publicado em 15 de janeiro de 1907

Funda nesta capital um estabelecimento sob a denominação de Asylo de Alienados.

O Governador do Estado do Piauí, em execução da lei nº 409 de 2 de julho do ano passado e em virtude de atribuição que lhe é concedida pelo art. 34, parágrafo 3º da Constituição do Estado.

Decreta:

Art. 1º - Fica fundado nesta capital, um Asylo de Alienados para os fins determinados no regulamento que com este baixa.

Art.2º - Revogam-se as disposições em contrário.

O Secretário de Estado do Governo assim o tenha entendido e faça executar.

Palácio do Governo de Teresina, 15 de Janeiro de 1907, 19º da república.

(L.doS.)

Álvaro de Assis Osório Mendes

Augusto Mendes Nogueira

Regulamento a que se refere o decreto nº 327 de 15 de janeiro de 1907.

 

Art. 1º - Fica fundado nesta capital um estabelecimento sob denominação de Asylo de Alienados, para o fim de nele serem recolhidos e tratados os enfermos de perturbações mentais.

 

Art. 2º - O estabelecimento funcionará no prédio situado à praça de Campo de Marte, entre as ruas Riachuelo e Divisão, adquirido com o produto de uma subscrição popular e contribuição do tesouro do estado.

 

Art. 3º - Serão admitidos nele indivíduos de ambos os sexos, gratuitamente, ou mediante retribuição conforme suas condições de fortunas e meios de tratamento.

 

Art. 4º - O estabelecimento receberá até oitenta indivíduos de ambos os sexos, sendo 50 a titulo gratuito e 30 contribuintes.

 

Art. 5º - A direção do Asylo é confiada a um médico competente, nomeado pelo governador, tendo sob suas ordens um enfermeiro, um escriturário, dois serventes e um cozinheiro.

 

Art.6º - Todos os empregados são de livre escolha e nomeação do médico, exceção do escriturário que será nomeado pelo Governador.

 

Art. 7º - Compete ao médico diretor:

I – Superintender em todos os serviços do Asylo.

II - Tomar conhecimento de todos os requerimentos ou requisições para admissão            de alienados.

III – Requisitar do Governador do Estado, por intermédio da secretaria respectiva, os melhoramentos, aparelhos ou utensílios necessários.

IV – Autorizar o pagamento das despesas miúdas e assinar a folha dos empregados que deve ser remetida ao tesouro estadual;

V – Fiscalizar as contas de fornecimento e de escrituração do movimento do Asylo;

VI – Solicitar do governo a expedição de ordem para a entrega ao enfermeiro do que foi necessário para despesas miúdas durante o ano.

 

Art. 8º - Cumpre ao enfermeiro:

I – Executar e fazer cumprir as determinações do diretor e velar pelo asseio, boa ordem, e vigilância dos enfermos;

II – Empregar em pequenos serviços e ocupações os alienados que revelarem tendências para o trabalho;

III – Providenciar sobre a roupa, alimentações e uso dos remédios dos alienados.

IV – Dirigir os serventes e cozinheiros.

 

Art. 9º - Ao escriturário o incube todo serviço de correspondência e escrita do Asylo.

 

Art.10º - Os enfermos ocuparão, separados por sexo, duas divisões independentes e subdivididas como entender o diretor, havendo em cada divisão, quarto, dormitório e enfermaria.

 

Art. 11º - As refeições serão servidas de conformidade com a tabela organizada pelo diretor.

 

Art.12 º -  Como meio de tratamento e para a manutenção da ordem, poderá o diretor recorrer:

1.                                                                                                                                                                                                                              Passeios e quaisquer outras distrações;

2.                                                                                                                                                                                                                              Reclusão solitária;

3.                                                                                                                                                                                                                              Ao colete de força e à céllula.

 

 

Art.13º - São competentes para requerer a admissão de enfermos, quer contribuintes, quer gratuitos:

I   -    O ascendente ou descendente;

II  -    O Cônjuge

III -    O tutor ou curador;

IV -    O secretário de policia, quanto aos alienados indigentes.

 

Art.14º - As requisições serão acompanhadas de documentos justificados e informações acerca do nome, idade, filiação, nacionalidade, estado e residência dos enfermos.

 

Art.15º- Aos requerimentos devem também acompanhar pareceres de 2 médicos, que tenham examinado o enfermo 15 dias no máximo, antes de sua admissão, ou certidões de exame de sanidade.

 

Todos os documentos serão selados, com firma reconhecida

 

Art.16º - Os enfermos indigentes só poderão sair depois de restabelecidos, salvo com licença do diretor: os pensionistas, porém, serão retirados em qualquer tempo pelas pessoas que tiverem requerido a admissão, e na falta destas pelos parentes ou curadores, exceto quando se tratar de enfermos acometidos de forma de loucura, que torne perigosa a sua permanência em liberdade. Neste caso, precederá a saída, ordem do Governador, ouvido o secretário de policia.

 

Art.17º - Os enfermos pensionistas serão divididos em duas classes, cujas diárias serão de 5$ na 1ª e de 2$ na 2ª.

 

Art. 18º - Fica criada na Secretaria da Fazenda uma caixa, com escrituração especial para os fundos do Asylo.

 

Art.19º - Haverá no Asylo o numero de livros precisos, abertos, rubricados e encerrados pelo diretor.

 

Art.20º - Os vencimentos do pessoal do Asylo são os constantes da tabela anexa, considerando-se dois terços como ordenados.

 

§ único -  Os empregados que ali não figuram considerar-se-ão de diária e serão pagos pelas consignações destinadas ao material.

 

Tabela de Vencimentos -  1 médico diretor – 3.600$, 1 enfermeiro – 960$, 1 escriturário – 720$.

 

Art.21º - revogam-se as disposições em contrário.

 

Teresina, 15 de janeiro de 1907 – 19º da República

(L.do S) Augusto Mendes Nogueira (Secretário de Governo)”.

 

 

 

Em seu relatório (1941). Dr. Clidenor, reproduz imagens de Eurípides Clementino de Aguiar de 1917 (médico que governou o Piauí de 01/07/1916 a 1/7/1920). Diz a mensagem: “Ao assumir o governo do estado, conhecedor da situação lamentável em que se achava o Asylo, um dos meus primeiros cuidados foi lançar as minhas vistas para os infelizes asilados. Dentro dos estreitos limites dos recursos que a lei me faculta, fiz o que foi possível e tenho a satisfação de vos comunicar, que os loucos do Asylo de Teresina não andam mais nus, não sofrem fome, nem morrem por falta de cuidados médicos: estão regularmente vestidos e são convenientemente alimentados e medicados. Mas, isto não é o bastante. É preciso que a obra iniciada seja concluída, que o projeto do Asylo seja executado.

Para que assim aconteça, não é necessário que o estado despenda um vintém de suas rendas, basta que se dê ao Asylo o que é do Asylo. Quero me referir às quotas com que a Companhia de Loterias Nacionais subvenciona o Asylo desde o ano de 1911.

 

Estas quotas produziram:

Em 1911     -  21.536$000

Em 1912     -  36.659$000

Em 1913     - 41.014$000

Em 1914     - 31.970$480

Em 1915     - 23.742$478

Em 1916     - 31.144$272

TOTAL     -  186.066$750

 

Recebendo estes dinheiros, o Estado os tem incorporado às rendas ordinárias, dando ao Asylo apenas a minguada importância de 6.000$000 por ano e um médico. Se os dinheiros do Asylo tivessem tido a aplicação devida já estaria concluída e o estabelecimento instalado e convenientemente aparelhado de recursos para preencher por forma satisfatória, os fins a que é destinado. Peço-vos, pois, que providencieis no sentido de serem as quotas de loterias pertencentes ao Asylo, integralmente empregadas em beneficio das obras, do custeio e da constituição do patrimônio desse manicômio. Para isso, sou de parecer que elas sejam entregues à administração da Santa Casa, que lhes dará o devido fim, prestando contas ao governo. Por maiores que sejam os apertos financeiros do Estado, não temos o direito de lançar mão da esmola que a caridade nacional manda para os loucos indigentes do Piauí.”

O Dr. Clidenor acrescenta em seu relatório: “Ao que nos consta, pelo menos com relação aos documentos por mês computados, essa renda nunca passou a constituir–se patrimônio do Asylo... Somente em 1920, sendo provedor o Dr. João Mota, com as economias das quotas de loterias, economias essas que importaram em 24.000$000 (vinte e quatro contos de réis) é que foi providenciado construção de um novo pavilhão, perpendicular ao primeiro com as dimensões de 30 x 7metros, dividido em 16 quartos prisões e 4 quartos centrais para empregados. Como a referida verba fosse insuficiente, o governador do estado naquele tempo, o Dr. João Luiz Ferreira terminou a construção. Desse modo os doentes passaram a ter mais comodidade, ficavam livres dentro de um quarto de 2,50 x 3,0 m. Ficou  assim aumentado a capacidade do Asylo. Somente nos princípios do governo do interventor Landry Sales e que foi projetado e construído novo pavilhão paralelo a esse último baseado no mesmo principio e com doze quartos.” (Governo Landry Sales 21/5/1931 a 03 /05/1935).

 Continua o Dr. Clidenor: “Com o tempo as condições higiênicas desses cômodos foram se agravando, sobretudo em virtude do pequeno esgoto, no qual o doente deveria fazer as suas necessidades fisiológicas, sair do centro do próprio quarto e ser completamente aberto. O que não foi esquecido foi a colocação, em todos os quartos, e até no pátio no tronco dos cajueiros, de pesadíssimas correntes destinadas à perna dos doentes.

É esta, em síntese, a história do pobre Asylo, que em homenagem ao seu idealizador recebeu o nome de ‘Areolino de Abreu’.”

Data de 1910, o primeiro “Livro de Registros Clínicos do Asylo de Alienados”. Até então os registros eram feitos em livros da Santa Casa de Misericórdia. Os livros do Asylo só passaram a ser feitos após a entrada das “Irmãs de Caridade” no Asylo. A Santa Casa aparece em todos os livros, que vão de 1910 a 1923, como “órgão controlador”.

Como registros, encontramos como diagnósticos, no livro de 1910, as seguintes enfermidades: Confusão mental aguda, mania aguda, paralisia dos alienados, mania religiosa, demência senil, melancolia crônica, epilepsia nervosa, loucura intermitente, delírio de perseguição, excitação desordenada e delírio alucinatório.

O Asylo de Alienados era dividido essencialmente em suas dependências, por classes sociais. Na parte anterior, ficava a parte organizada do Asylo, que tinha basicamente divisões por alas masculinas e femininas e até 1940 as dependências eram denominadas de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes.  Na parte posterior do Asylo, ficavam os pacientes mais agressivos com pesadas correntes presas ao chão de terra batida, que eram utilizadas para aprisionamento em caso de exacerbação de agressividade. O acompanhamento médico a estes pacientes mais agressivos era muito precário, o que ocasionava um acompanhamento feito, na sua maioria, pelos serventes do então Asylo.

Era comum pela pouca observância, que pacientes masculinos adentrassem o lado feminino separadas que eram as duas áreas por um muro precário, e desse contato surgissem diversos casos de gravidez.

Os pacientes mais agressivos eram acorrentados e conviviam com outros um pouco menos agressivos que eram mantidos também nessa área. Os pacientes acorrentados ficavam privados, então, de autodefesa e dessa forma estavam expostos a todo tipo de agressão dos pacientes que circulavam nesse pátio. Há relato somente de correntes no lado masculino desse pátio, que ficava na parte posterior do Asylo.

Na parte anterior existia uma estrutura relativamente organizada. Os visitantes ficavam restritos somente a esta área e era proibido o acesso aos fundos do Asylo. O pátio do Asylo era descoberto e os pacientes dormiam ao relento protegidos somente pela cobertura das árvores.

A terapêutica farmacológica empregada ainda consistia basicamente dos xaropes de cloral, de barbitúricos (luminal), das ampolas de bismuto usadas para a neurolues e as injeções de óleo de cânfora utilizadas para os mais agressivos. Eram injeções que produziam um intenso edema de nádegas e que, pela dor que era muito forte, inibia os ataques de agressividade.

Monsenhor Joaquim Chaves revela: “Como memorialista posso falar que eu conheci o antigo Asylo, era uma coisa terrível. Doentes eram tratados na base da corrente. Fui poucas vezes ao Asylo, tinha uns loucos amarrados no fundo, tinha quartos de segurança. Davam injeções, não sei de qual tipo. A impressão era muito ruim, eu tenho impressão de que hoje deve ser melhor. Eram pessoas abandonadas pela sociedade e já se dava graças à Deus de ter o Asylo para que não ficassem na rua. Houve queixas de que o interior mandava doidos para cá e as verbas não davam para tanto paciente. Alguns ficavam acorrentados no pátio, outros dentro das celas. Os doidos não eram mostrados pra gente, só quando se queria mesmo vê-los é que se permitia a aproximação”.

O professor Possidônio Queiroz diz: “Em 1924, vi se amarrarem loucos em Teresina. Quando retiraram as correntes elas pesaram 300 kg. Em Oeiras, continuavam os quartos de loucos só para famílias importantes, os pobres continuavam sendo levados para a penitenciária”.

As irmãs de caridade continuaram co-administrando o Asylo de Alienados durante muito tempo.  O livro de registros clínicos do Asylo de 1933 documenta o recolhimento ao tesouro da Santa Casa de Misericórdia das despesas (diárias + medicamentos) hospitalares dos pacientes pensionistas e particulares do Asylo.

Em 1929 graduou-se na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro o médico piauiense João Coelho Marques, defendendo a tese: “Espiritismo e Idéias Delirantes”. Sobre o Dr. João Marques, o Dr. Antonio Marques, seu irmão, depõe: “O João Marques chegou ao Piauí em 1930. Foi então trabalhar em Balsas no Maranhão, foi para o interior para fazer tudo. Durante o curso de medicina ele já tinha estagiado três anos com o Dr. Henrique Roxo, isso fez com que ele se decidisse pela psiquiatria. Voltou para Teresina em 1936 e implantou novos métodos na psiquiatria, como o choque cardiazólico. Prossegue o Dr. Antonio Marques: “Ele instituiu também a narcoanálise e a psicanálise, assim como a hipnose. Narcoanálise ele fazia com tirambutal, tendo relatado alguns casos. O Cardiazol era usado na veia, assim como o tirambutal. Ele ocupou a direção do Asylo, antes do Clidenor. Chegou também a assumir a chefia do Asylo, no governo de Teodoro Sampaio, ele era médico do estado e nunca quis entrar para qualquer instituto federal, ele só era credenciado. Ele sempre atendeu no “psiquiátrico” (HPAA), junto com o Dr. Carlos Maia e o Dr. Mariano Castelo Branco.

Conclui o seu depoimento, o Dr. Antonio Marques; “O João foi pioneiro da psicanálise no Piauí. Hipnotizava e quando não conseguia, dava um pouquinho de tirambutal na veia para facilitar a análise. Ele tinha toda a obra de Freud em francês e, de dois em dois anos, ele ia ao Rio para contato com Dr. Henrique Roxo, tendo contato também com Dr. Jurandy Picanço em Fortaleza, psiquiatra e seu colega de turma. Ele tratou de doido em todo o Piauí, ia onde era chamado por esse interior”.

Clidenor de Freitas Santos é um marco na história da psiquiatria piauiense. Nascido em Miguel Alves – PI, em 1913, vem para Teresina em 1924 e em 1929 conclui o “preparatório” no Liceu Piauiense. Em 1931 faz exame vestibular para medicina em Belém do Pará e é aprovado. Sobre o período acadêmico, o Dr. Clidenor relata: “Entrei na revolução contra Getúlio, aí a faculdade me expulsou logo depois da revolução paulista... eu era líder no meio estudantil na faculdade. Vai então transferido para Recife em 1934, onde se forma em 1936.

Desde o período acadêmico, Clidenor revelava-se um interessado no estudo da neurologia e apresenta em congresso de estudantes de medicina no Rio de Janeiro (1933) o trabalho: “Um estudo da célula nervosa do peixe piratinga”. Já em Recife, foi aluno dos professores Argeu Magalhães, Ulisses Pernambucano e Gouveia de Barros, que o influenciaram na sua opção pela Psiquiatria.

Chegando ao Piauí, em 1937, Dr. Clidenor vai trabalhar no interior como médico generalista em Brejo e Coelho Neto, no Maranhão, e Miguel Alves no Piauí. Passa os anos de 1938 e 1939 no Hospital do Juqueri em São Paulo, onde se especializa em psiquiatria.

De volta a Teresina, assume a direção do Asilo de Alienados em 1940. Dr. Clidenor revela que, em 16 de agosto de 1940 (aniversário da cidade de Teresina), como primeiro ato administrativo seu, mandou retirar as correntes que prendiam as pernas dos pacientes, e juntamente com alguns deles montou o que viria a chamar de “pirâmide metálica”, na Praça da Liberdade. Afirma também que mais de cem correntes fizeram parte da “pirâmide”, sendo esse material doado para “esforço de guerra”.

As transformações ocorridas na administração de Clidenor Santos no Asilo foram importantes tanto na parte da estrutura física, quanto na ordem funcional, incluindo-se aí melhorias na qualidade de atendimento pelo pessoal que lá atendia, como na introdução de novas terapêuticas aos doentes.

De início, o Dr. Clidenor deu novo nome ao Asylo, que passou a chamar-se, a partir de 1941, “Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu”, e que viria a ser popularmente conhecido como “Psiquiátrico”.

Em seu discurso (25-07-41), durante sessão solene da Associação Piauiense de Medicina, da qual era sócio-fundador desde 23 de dezembro de 1938. Dr. Clidenor faz um relato dramático da situação da saúde mental no Piauí e propõe soluções. Dentre outras, destaca a incorporação do choque cardiazólico desde sua chegada ao Asylo e a necessidade de se ter novas opções farmacoterápicas, além da manutenção das já existentes, tais como a permanência do choque insulínico. Queixa-se no relatório da falta de fichários, da péssima higiene, da necessidade de ampliação e dos vários melhoramentos na estrutura física do Asylo. O velho Asylo havia passado por apenas duas ampliações até então, com a construção de mais um pavilhão em 1920, pelo governador João Mota, e de outra durante o governo de Landri Sales (21-05-31 a 03-05-35). Somente após a posse de Clidenor Santos, é que medidas efetivas seriam processadas na estrutura física do Asylo.

A reviravolta no Asylo dos Alienados coincide com importante movimento médico no Piauí, advindo da administração Leônidas de Castro Melo, médico nascido em Barras/PI (1847) e que ocupava o governo do Estado na era Getulista em 1941.

Nota-se, nesse período, a criação da Associação Piauiense de Medicina (1938) e o marco maior, a inauguração do Hospital Getúlio Vargas em 1941.

Interventor, Leônidas satisfazia as exigências populistas do getulismo, mas ao mesmo tempo, nutria-se de idealismo pessoal e, sob seu incentivo, o Piauí revelava uma nova turma de médicos também idealistas tais como: Lineu da Costa Araújo, José da Rocha Furtado, que chegaria ao governo, João Coelho Marques, Agenor Barbosa de Almeida, que chegaria à Prefeitura de Teresina, Clidenor de Freitas Santos e, dentre outros nomes importantes, ressaltamos a presença de Lindolfo do Rêgo Monteiro, Prefeito de Teresina nomeado por Leônidas e que esteve à frente do poder municipal de 01/02/1936 a 14/11/1945, quase o mesmo período de Leônidas à frente do poder estadual.

Na administração de Clidenor Santos, no Asylo, são também instituídos como métodos terapêuticos, a malarioterapia e a eletroconvulsoterapia (ECT). Introduzida após o choque cardiazólico e antes da ECT, a malarioterapia prestava-se para tratar a Paralisia Geral Progressiva (sífilis cerebral) e constava da injeção de sangue malárico, provocando-se um choque endotérmico para, com isso, reduzir-se os efeitos psicorgânicos da neurosífilis. Esse procedimento perduraria até a década de 60.

Da fase dos tratamentos de choque no Asilo, o último a ser introduzido foi o eletrochoque, em 1947, conforme atesta Dr. Clidenor de Freitas Santos. Ele informa que o primeiro aparelho de ECT foi desenvolvido pelo técnico Benedito Almeida, a partir de informações suas repassadas com base em um trabalho norte-americano que ensinava como construir o aparelho e que se baseava, por sua vez, na técnica original de Ugo Cerletti e Lúcio Bini, que introduziu o uso da ECT em 1938, na Itália. Inicialmente testado em cachorros, conforme relata Dr. Clidenor, o eletrochoque ganharia muita dimensão popular. Comentava-se que ele estava com um aparelho que resolveria todos os problemas de loucura de Teresina. Era o imaginário popular, que ganhava asas.

Indicado que fora para a direção do Asylo, pelo Interventor Leônidas Melo, seu ex – professor de Biologia e História Natural no Liceu Piauiense, Dr. Clidenor firmava-se como o grande nome da Psiquiatria no Piauí na década de 40. Evoluindo profissionalmente, é nomeado em 1943, para chefiar o SNDM (Serviço Nacional de Doenças Mentais) no Piauí. Nesse mesmo ano, conclui um curso de “Medicina de Guerra” pelo Exército, no 25º BC, de onde sai 2º Tenente. Ainda em 1943, inicia as obras do que viria a ser sua grande realização, o “Sanatório Meduna” para doentes mentais, o qual seria inaugurado em 1954.

As irmãs de caridade continuavam gozando de muito prestígio no Hospital, e por ocasião de promoção religiosa da Irmã Maria Auxiliadora que servia no “Psiquiátrico”, encontramos telegramas enviados a Caucaia, no Ceará, à Madre Superiora, com votos de felicitações do Diretor, dos internos da classe A, dos internos da Classe B e dos “bem-aventurados internos pobrezinhos” (indigentes), do HPAA.

Os registros clínicos do HPAA, na década de 40, nas suas diversas “Seções” de pacientes (seção Miss-Dix, seção Kraepelin, seção Sakel, seção Bleuler, seção Mira Y Lopez e seção Pinel) apresentavam, dentre outros, diagnósticos tais como: Neuro-lues, psicose auto-tóxica, psicose de involução, arteriosclerose cerebral, catatonia colibacilar, reação meningea-luética, ptiatismo, psicose infecciosa, psicose hetero-tóxica, PMD e poucos diagnósticos de esquizofrenia.

Pelo decreto-lei nº 378, de 05 de maio de 1951, no governo de Pedro de Almendra Freitas, um jornal da época anunciava que a psiquiatria ganhava um novo impulso com a criação do “Serviço de Assistência a Psicopatas do Estado”. Não se tem noticia de uma ação efetiva desse serviço, mas provavelmente era o arcabouço funcional do que viria a ser a “Colônia de Psicopatas”.

Paralelamente ao trabalho que desenvolvia no organismo público da saúde mental do Estado, Dr. Clidenor de Freiras Santos desenvolvia também um projeto privado, o de construção do Sanatório Meduna. Nome esse escolhido em homenagem ao psiquiatra húngaro Ladislau Meduna, que havia se refugiado nos Estados Unidos, onde se naturalizou após a 1ª Guerra Mundial, e que foi o descobridor dos efeitos do choque cardiazólico endovenoso na terapêutica das psicoses endógenas.

A inauguração do Sanatório Meduna, em 21 de abril de 1954, teve repercussão nacional e o Dr. Meduna escreve dos Estados Unidos agradecendo a homenagem e desculpando-se por não poder comparecer ao ato de inauguração do Sanatório que levava o seu nome por dificuldades financeiras, como vemos a seguir na reprodução em fac símile da carta datilografada.

Descrição: C:\Users\Carlos\Pictures\PSIQUIATRIA-PI\História da Psiquiatria-PI 001.jpg


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