Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Março de 2012 - Vol.17 - Nº 3 História da Psiquiatria ULYSSES PERNAMBUCANO E A PSIQUIATRIA SOCIAL Walmor J. Piccinini Nota
Prévia Este texto foi publicado na Antologia
Psiquiátrica Latino Americana pelo Grupo Latino Americano de Estudios
Transculturales (GLADET). Trabalho essencial para quem deseja conhecer a
história do desenvolvimento da psiquiatria na América Latina. Quando se cita
Gladet temos que destacar os editores dessa antologia, os doutores Sergio L.
Villaseñor Bayardo, Carlos Rojas Malpica e Jean Garrabé de Lara. O texto
completo pode ser encontrado em www.gladet.org.mx Por uma feliz coincidência, A ação social o
psiquiatra, última conferência proferida por Ulysses Pernambucano em 1943
ocorreu em Natal, Rio Grande do Norte, terra que acolheu o III Congresso da
Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, graças ao
acolhimento do psiquiatra potiguar, Dr. João Machado. Em outubro de 2012 será
realizado naquela cidade o XXIX Congresso Brasileiro de Psiquiatria organizado
pela Associação Brasileira de Psiquiatria Ulysses Pernambucano de Melo Sobrinho (06de
fevereiro de 1892 - 05 de dezembro de 1943) teve uma vida relativamente curta
para os padrões atuais, mas marcou de forma especial os corações e mentes dos
psiquiatras de sua época e as diferentes gerações de psiquiatras pernambucanos. Graduou-se
em Medicina no Rio de Janeiro, em 1912, com quase 21 anos. Sua tese de
doutoramento foi Sobre algumas manifestações nervosas da heredo-sífilis.
Começou sua experiência psiquiátrica no Serviço do Professor Juliano Moreira,
no Hospital Nacional de Alienados. Trabalhou
sob a orientação de Ulisses Viana, a quem considerava seu mentor no início do
aprendizado psiquiátrico. Em 1915, foi trabalhar com médico generalista no
estado do Paraná, cidade de Lapa. Depois de pouco mais de meio ano
transferiu-se para a cidade de Vitória de Santo Antão, sendo
“um psiquiatra com alma de sanitarista”. Era primo de Gilberto Freyre (o autor
de Casa Grande e Senzala) e amigo de Sílvio Rabelo e de outros intelectuais,
que desenvolveram idéias bastante avançadas para a época e que fugiam do que se
chamava de Psiquiatria livresca. Sua história psiquiátrica em Pernambuco começou com a
nomeação para o Hospício da Tamarineira, em 1917. Do ano de e, mais
tarde, de A
carreira de Ulysses Pernambucano não se restringiu à Medicina, ele foi
professor da Escola Normal e do Ginásio Pernambucano. Na primeira, prestou
concurso para a Cátedra de Psicologia e Pedologia sendo aprovado em primeiro
lugar (1918) e no ginásio foi catedrático de Psicologia, Lógica e História da
Filosofia. Na Faculdade de Medicina de Recife, foi nomeado professor
catedrático de Clínica Psiquiátrica em 1920. Renunciou em favor de Alcides Codeceira
que, desde 1915, já dirigia esta cadeira. Em 1938, foi nomeado professor
catedrático de Clínica Neurológica. Atuou
ainda como professor de Química e de Fisiologia. O médico, historiador e
psicanalista Tácito Medeiros assim escreveu sobre seu papel na Psiquiatria: Na direção da velha ‘Tamarineira’, Ulysses Pernambucano assentava
singular Psiquiatria Social, aberta aos conhecimentos biológicos e psicológicos, aos antropológicos e
sociais, cuja estratégica importância ecoa nas atuais reformas da assistência aos doentes mentais no
país. No burgo recifense, itinerário de invasores holandeses, berço de
revoluções literárias e de saber jurídico, sede do primeiro parlamento e da
primeira sinagoga das Américas, são obras de Ulysses o primeiro ambulatório psiquiátrico
público, a primeira escola especial para deficientes mentais e o primeiro
Instituto de Psicologia surgidos no Brasil. A Sociedade de Neurologia,
Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, depois tornada nacional, reuniu na
década de trinta importantes congressos multiprofissionais em Natal, João
Pessoa e Aracaju. Neurobiologia, revista a circular desde 1938, sintetiza em
sua denominação os interesses e as luzes da Escola de Psiquiatria Social do
Recife. O antigo Hospício da Tamarineira chama-se agora Hospital Ulysses
Pernambucano. A
atuação de Ulysses Pernambucano levou-o a confrontos difíceis com políticos e
poderosos da época. Graças a ele e seus colaboradores, o Hospício de Alienados
da Tamarineira saiu do controle da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia (entidade
religiosa católica) e passou para a gestão do Estado. Recebeu com entusiasmo as
idéias preventivas de Higiene Mental divulgadas por Clifford Beers, em seu
livro Um espírito que achou a si
mesmo (1908), que motivou a criação de Serviços de
Higiene Mental pelo mundo – esse movimento chegou ao Brasil em 1923, com
Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro. Outro
aspecto da atuação de Ulysses era sua capacidade de integrar conhecimentos de
Antropologia, Sociologia e educacionais na prática e ensino da Psiquiatria.
Defendeu o direito ao exercício de religiões afro-brasileiras, num momento histórico
em que estas eram perseguidas. Advogava
uma Psiquiatria com laços com seu meio social e preconizava que o psiquiatra
fosse um defensor do doente mental, destacando a necessidade de garantir
cuidados básicos de higiene e alimentação aos enfermos e o registro clínico
completo das observações médicas. Essas idéias estão expressas no seu artigo
aqui republicado, ‘A ação social do psiquiatra’, de 1943. Sua liberdade
de pensamento e sua liderança incomodavam algumas autoridades, que aproveitaram
a Revolta Comunista de 1935 para prendê-lo. A prisão em si durou apenas 40
dias, mas as suas conseqüências lhe foram funestas: sofreu seu primeiro enfarte
cardíaco, de que teve longa convalescença; o pior veio com sua aposentadoria
compulsória, pelo artigo 177 da nova Constituição do Estado Novo. Sua cadeira no
Ginásio Pernambucano foi extinta. Só lhe restava a Faculdade de Medicina, que
era privada, mas foi proibido de utilizar pacientes (que eram do Estado) para ensinar.
Cerceado na sua atuação pública, passou a atuar no setor privado e, em 1936,
formou o Sanatório Recife. Em
1938, fundou a revista Neurobiologia, hoje a mais antiga revista de Psiquiatria
do Brasil.
No mesmo ano, fundou a da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental
do Nordeste – mais tarde denominada Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e
Higiene Mental do Brasil, que em 1966 passou a fazer parte da Associação Psiquiátrica
Brasileira. Devido à perseguição política sofrida em Pernambuco, a nova
Sociedade realizou seus primeiros congressos nos estados próximos. O primeiro teve
novo e fulminante enfarte, vindo a falecer no Rio de Janeiro. A ação social do psiquiatra (1943) * Ulysses Pernambucano * Conferência pronunciada na abertura do III Congresso da
Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, reunida em
Natal (Rio Grande do Norte), de Benditos os dados que permitem aos neuropsiquiatras nordestinos esta magnífica
oportunidade de mais uma vez se reunirem para o trabalho de conjunto, quebrando
a tendência brasileira de viver dentro do âmbito dos nossos estados. A única
exceção que se abre em nossos hábitos de isolamento é para a Capital do país.
Para ela convergem os que amam a vida sem asperezas, o calor dos favores oficiais,
ainda que abdicando de traços pessoais de independência e diluindo, para vencer
nas competições, características pessoais. Nós
outros que resolvemos viver em nossas províncias, sabemos de antemão que temos
de encontrar na alegria do trabalho o prêmio de nosso esforço. Para nós não vêm
representações oficiais em congressos, nem viagens ao estrangeiro, nem tournées
de conferências. A massa cinzenta do Brasil estaria circunscrita à sua Capital;
a macrocefalia assim aparente nem sempre é função de riqueza em tecido nobre,
produtivo, mas aguada bebida, expressão de uma hidrocefalia. As
conseqüências que advêm dessa atitude de desestímulo aos que trabalham e
produzem, são as mais graves. Só resistem os mais fortes, os que se armam de
consciência de um dever a cumprir quand mème, o que se resolvem a ver a mediocridade
sempre premiada. Eis,
meus caros irmãos do Rio Grande do Norte, um bem claro exemplo desse desprezo
de honrarias e bens materiais: o senhor Luiz da Câmara Cascudo. Historiador e
profundo conhecedor do nosso folclore, nenhuma autoridade a ele se avantaja no
Nordeste. Sua profunda dedicação à província onde ele encontra interesse para
sua vida e material para seus estudos mostra seu desprezo pela situação excepcional
que ele teria fora daqui, mas com prejuízo de suas pesquisas e do amor com que
ele se delicia em sua terra. Malgrado
a divisão política que separa os nordestinos em cearenses, rio-grandenses do
norte, paraibanos, pernambucanos, alagoanos, sergipanos e, até certo ponto,
baianos, nós temos, para nos unir, uma paisagem comum, idêntica atividade na
luta pela vida, populações de formação étnica e culturais semelhantes e até nos
aproximamos nas nossas deficiências, nos nossos sofrimentos e mesmo nas nossas
calamidades. Tudo
nos indicava – num país onde os laços da língua e da religião, das tradições e
da cultura – as distâncias, ainda nesta época da aviação, mantêm o gaúcho mais
afastado de nós que o nova-iorquino ou o parisiense, tudo nos indicava a união
dos que melhor pudessem se entender. Sem
preocupações de bairrismos ou preferências inescusáveis e sem intuitos outros
senão conservar o que o Brasil tem de próprio nas peculiaridades da cultura, da
paisagem, da língua, do folclore, da ciência, dos modos de vida, da cozinha,
nesta região fundou-se há anos, no Recife, o Centro Regionalista do Nordeste.
Gilberto Freyre já disse, em mais de uma ocasião, o que foi essa reunião de
homens das
mais diversas profissões e de todas as filosofias. O que ele não disse foi que
era ele próprio o centro da atração daquele grupo. O Centro viveu pouco – o suficiente,
porém, para que o grande sociólogo brasileiro fosse compreendido e que suas
preocupações pelos problemas brasileiros, e especialmente nordestinos, ainda
hoje se reflitam em outros estudiosos ou artistas, médicos, jornalistas,
romancistas, historiadores,
poetas, filólogos e pintores. Ainda
essa influência deve ter atuado no nosso subconsciente quando nos congregamos,
psicólogos, neurologistas, psiquiatras e neuro-higienistas nesta Sociedade de
Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste Brasileiro. Desde nossa
primeira reunião na Paraíba, ficou tacitamente estabelecido que nossa
Sociedade, sem estatutos, sem regras para admissão de sócios, sem penalidades,
acolheria todos os representantes de outras profissões – fora do campo estritamente
médico – para os quais se apresentassem, de uma maneira direta
ou indireta, os problemas da profilaxia e higiene mentais. Psicólogos,
educadores, higienistas puros, sociólogos, juristas, biologistas,
psicanalistas, juízes e jornalistas, todos nos têm oferecido uma colaboração
que tira de nosso trabalho, em certos setores, o aspecto puramente médico e dá
ensejo a que determinados problemas possam ser encarados de pontos de vista muito
mais amplos. Nesse espírito, nossa reunião de Sergipe – preparada com tempo
para projetar o
equilíbrio dos setores de interesse – mostrou como é possível congregar homens
de atividades tão diversas na discussão de problemas para os quais soluções
unilaterais seriam obtidas se só um grupo de estudiosos os considerasse. A
leitura do magnífico volume que Neurobiologia dedicou aos trabalhos dessa
reunião demonstrou como se pode realizar obra útil para o país simplesmente
dedicando-se cada um ao trabalho profícuo e à exposição de suas observações e
projetos no vasto domínio médico-social que é o da higiene mental. Esperamos
todos que a reunião que agora iniciamos seja ainda mais cheia de proveitosos
trabalhos e que dos debates que aqui se hão de travar muitas observações úteis
sejam expostas e confrontadas. É para
todos nós um grande prazer receber a hospedagem dos nossos irmãos
rio-grandenses do norte, representados neste Congresso por tantas expressões de
sua cultura. Especialmente com sua classe médica – que tem um grande relevo na
vida intelectual do Estado e de cujas freqüentes reuniões temos tido sempre
detalhado conhecimento – nos orgulhamos de entrar hoje em contato mais íntimo e
proveitoso para os que a visitam. Confiamos todos nós, que deixamos nossos
trabalhos para estreitar laços de conhecimento e melhor compreensão, que nossos
intuitos sejam interpretados com justeza e nosso esforço devidamente apreciado. Constituímos
nós, da neuropsiquiatria, um dos ramos da medicina menos compreendido dos
governos e da população. Julgam os primeiros que nossa função é conviver com os
loucos, entendê-los, reclamar sempre para eles melhores instalações, medicamentos
e alimentação. Mas a verdade é que melhoramentos nas instalações dos hospitais
para psicopatas e tratamento mais humano para esses doentes não são coisas que
acresçam as vaidades dos que governam. São esforços que na maioria dos casos
têm uma pequena repercussão na opinião pública e não concorrem para aumentar o
prestígio dos governos. Governantes e governados acham-se, nesse terreno, em
admirável acordo que não é conseqüência de esforço quer de uma parte quer de
outra. Antes expressa à opinião generalizada, ainda entre nós, de que os
doentes mentais são, na maioria dos casos, incuráveis e que o papel da
coletividade diante
dessa classe de doentes é lançá-los no hospital e esquecê-los. Mas a
verdade, a triste verdade, é que a maioria das psicopatias é o fruto de nossa
incúria ou de nossa ignorância. Se deixamos que se casem certos indivíduos cuja
união seria contra-indicada por exame médico bem conduzido; se não fazemos em
tempo oportuno e com a devida intensidade o tratamento da sífilis; se
facilitamos a intoxicação alcoólica pondo o tóxico ao alcance de quem o quiser ingerir;
se educamos defeituosamente a criança e ao adulto damos condições defeituosas
de trabalho; se
deixamos que as desigualdades sociais gerem sentimentos de inferioridade e
revolta – estamos cultivando doenças mentais. Não admira que elas apareçam de
preferência entre os vinte e os trinta anos. É a época em que o homem, inadvertidamente
preparado para os problemas que a vida lhe vai apresentar, entra na
concorrência, sofre os primeiros choques e, então, a doença mental ou é um
refúgio ou uma
reação. A
atitude dos que resistiram diante dos que baquearam deveria ser a da
compreensão e a do auxílio. Vivemos nós, neuropsiquiatras, a afirmar todos os
dias, baseados nas nossas estatísticas, que a porcentagem de cura das doenças
mentais é muito maior quando se institui o tratamento precoce. Na
prática, o que se verifica é a abstenção do apelo à medicina. Em parte, em
virtude do preconceito ainda bastante arraigado de que as doenças mentais são
vergonhosas (estranha atitude para o meio em que se exibem sem pudor as
verdadeiras doenças vergonhosas) e também porque não estão ao alcance dos
doentes cuidados adequados. Nos ambulatórios e policlínicas não se oferece
assistência neuropsiquiátrica. Os primeiros
cuidados ao doente mental são, na maioria dos casos, os do espiritismo, do rezador
ou do curioso. O internamento em hospital psiquiátrico é outra barreira a
vencer porque novo preconceito se apresenta: o de que a mancha da doença
mental, tratada no hospital, acompanhará o infeliz por toda a vida. Tenho
encontrado casos em que esse preconceito, mesmo nas classes mais cultas, é tão
forte que acham preferível que o doente exiba suas perturbações mentais pelas
ruas, entre os
conhecidos e até no local do trabalho, a recolhê-lo, discretamente, a um
hospital. Incumbe
a nós, neuropsiquiatras, fazer a grande campanha de demonstrar, pelos nossos
êxitos terapêuticos, que as doenças mentais são tão curáveis quanto outras
quaisquer, desde que tratadas no tempo útil. O sucesso dos modernos métodos de
tratamento depende de cuidados precoces entre mãos hábeis. Nenhum aparelhamento
para assistência a esses doentes pode prescindir, hoje, de um ambulatório
destinado a fazer diagnósticos precoces e instituir em tempo oportuno e com o
mínimo de despesa para os orçamentos hospitalares, o tratamento indicado. Mas não
ficam aqui somente aquelas “idéias feitas” que é preciso vender em benefício
dos doentes mentais. Uma outra campanha precisa ser empreendida em grande
escala, para que possam ser entendidas,aceitas e executadas as medidas de
higiene e profilaxia mentais. Que campo de atividade se abre, entre nós, ao
neuro-higienista! Tudo está por fazer nesse terreno. Quantos
erros fatais para a saúde psíquica se cometem correntemente na esfera da
educação doméstica e no da educação escolar! Quanto concorreria para diminuir o
número de neuróticos uma preparação bem orientada dos pais para suas relações
com os!lhos e dos mestres com seus discípulos! E
colégios? Tenho uma longa e dolorosa experiência de todo o mal que eles podem
fazer – e realmente fazem – à saúde mental das novas gerações. Nenhum respeito
à personalidade infantil, castigos humilhantes (ainda é possível ver, mesmo em
colégios para gente rica, as crianças de joelhos no meio da classe), disciplina
de autoridade, cultivo sistemático da hipocrisia e da mentira. Que esperar de uma
geração assim educada? Pois não é certo que homens que se dizem preparados para
tão delicada tarefa
pregam abertamente, em pleno ano de 1943, perante mães cristãs e brasileiras, a
volta ao reino do chicote e da palmatória? Esses pregadores de métodos
nazifascistas de educação que certos Estados brasileiros repeliram, e outros
recebem de braços abertos, o que não farão dessa matéria plástica por excelência
que é a juventude? Assim
como este, muitos outros problemas elementares estão desafiando a competência e
a coragem dos neuro-higienistas. Digo coragem porque não é sem risco que se
enfrentam certos tabus, especialmente quando forças poderosas estão
interessadas em defendê-los, de boa e de má fé. A
grande campanha pela higiene mental tem de começar pelos... higienistas. Da
parte deles tem havido a maior resistência em admitir a possibilidade de
enfrentar o problema de prevenir as doenças mentais... Encerrados no campo
clássico da higiene, as doenças infecciosas e contagiosas, ignoram ou fazem por
ignorar, o problema médico e econômico que representam milhares de doentes
mentais internados nas instituições psiquiátricas de todos os países. Isso
seria uma fatalidade de que se não há de cuidar. Esqueçam-se de que já figuram
nas reuniões sanitaristas panamericanas problemas como os da profilaxia do
câncer, das doenças degenerativas, avitaminoses... Nas
grandes calamidades – e a maior delas é a guerra – mais agudo se torna o
problema da doença mental. Essa triste oportunidade em que emergem todos os
estropiados da saúde psíquica... Apesar de uma seleção cuidadosa que afastou
vinte em cada mil conscritos chamados a servir no exército americano na
Primeira Grande Guerra, sabe-se do angustioso apelo do General Pershing
instando para que não lhe enviassem para a França tantos psicopatas. No tempo
da conscrição de 1918, diz o Jornal da Associação Médica Americana de 3 de
abril passado, vinte em cada mil homens foram recusados por motivos
psiquiátricos; agora cerca de 75 em cada mil foram rejeitados por tais razões.
Isto não significa que mais homens são agora mentalmente incapazes; nossos
métodos científicos melhoraram suficientemente
no intervalo entre as duas guerras para permitir mais acurada seleção desses
doentes. As
indicações atuais são de caráter psiquiátrico ou têm bem definidos aspectos
psiquiátricos. As desordens nervosas e mentais são as maiores causas de
afastamento de soldados do exército. Deve-se
notar que esses elementos escaparam à técnica rigorosa aplicada por escritórios
locais e juntas de exames de convocados que excluem um grande número de
doentes. Por essas razões uma comissão para estudo de problemas
neuropsiquiátricos foi estabelecida, logo depois da entrada dos Estados Unidos
na guerra, na Divisão de Ciências Médicas do National Research Council. Em
1942, um
departamento neuropsiquiátrico foi criado junto ao Serviço de Saúde do
Exército, e recentemente foi instalada uma Escola de Neuropsiquiatria Militar
para facilitar aos especialistas convocados o treino com os problemas próprios
ao meio militar. Tal é o
relevo que apresentam as desordens nervosas e mentais! Não bastam os cuidados
de seleção e orientação dos conscritos que os psicólogos especialmente treinados
fazem logo após a admissão. É preciso que os mais inteligentes e os dotados de
aptidões especiais sejam também isentos de perturbações psíquicas. Esses
cuidados nos devem servir de exemplo e lição no momento em que se anuncia a
organização de um corpo expedicionário brasileiro. A seleção do pessoal deve
ser psicológica e psiquiatricamente feita com todo o rigor. Como fazê-lo,
porém, se o Corpo
de Saúde do Exército conta com um tão pequeno número de psiquiatras? Em torno
desse núcleo de conhecedores das questões de psiquiatria militar deveriam estar
reunidos os civis que fossem convocados para a tarefa imensa de selecionar, sob
esse ponto de vista, o Exército que devemos organizar para desagravar as
ofensas que temos recebido e para construir um mundo de justiça, liberdade e
igualdade. Se fosse consultado eu sugeriria que os neuropsiquiatras, em vez de
freqüentar cursos de emergência como os atuais – nos quais são de preferência
estudados os aspectos cirúrgicos da medicina militar – fossem familiarizados
com os da especialidade, o que os poria rapidamente em condições do máximo de eficiência. Já se afirmou
que o neuropsiquiatra é o “homem que escuta”. O homem que se delicia na
observação das perturbações apresentadas pelos seus doentes, os seus delírios,
suas alucinações, seus desajustamentos, suas reações... Sem deixar de dar a
devida importância aos casos individuais, nenhum psiquiatra hoje, digno desse
nome, deixa os novos aspectos do que se poderá chamar a psiquiatria social. É
por esses estudos que nós chegaremos a assentar, em bases sólidas, a higiene
mental. Os estudos genealógicos como os de Rudin, os estatísticos como os de
Dayton – e em que são mestres os norte-americanos –, os referentes às
intoxicações euforísticas, às doenças mentais entre os negros, no seio de
populações primitivas, entre emigrantes, por ocasião de crises sob o império de
certas leis como a da proibição – esses é que fornecerão elementos para a ação
social do psiquiatra. Como é doloroso, por exemplo, verificar que o nosso pomposo
Serviço Nacional de Doenças Mentais recolhe todas as estatísticas dos estabelecimentos
de assistência neuropsiquiátrica do Brasil para deixá-las, melancolicamente,
dormir nas suas gavetas! Consultem-se os dois volumes de seus Arquivos publicados
há poucos dias e só um trabalho (‘Sexo e psicoses’, pelo doutor Cunha Lopes) se
baseia em estatísticas e exclusivamente do Rio de Janeiro! Nenhuma pesquisa em
que se encarem aspectos sociais das psicopatias, nenhum, que possa sugerir a
mínima iniciativa no campo da higiene mental! O que
nós temos de confessar é que, fora raras exceções, ainda nos cingimos, no
Brasil, em nossos trabalhos, aos problemas terapêuticos, a bisantinices de
diagnóstico ou a estudos teóricos, aspectos de nossa atividade que não
interessam aos homens de governo nem fornecem elementos com que nos possamos
apresentar diante deles para pleitear alguma coisa além de ambulatórios,
pavilhões ou pretensiosos institutos que o são só no nome. Diretores de
serviços que não percebem o alcance dessa nova
diretriz, que dormitam pelos gabinetes, alheios à responsabilidade de suas
funções até serem sumariamente despedidos; homens que pleiteiam os postos de
direção e por isso mesmo não podem exigir respeito ao seu saber; médicos que
consentem que seus doentes morram à míngua de medicamentos e até de alimentos e
não elevam um protesto indignados – não são psiquiatras! O psiquiatra é o
protetor do doente mental. Essa função é inerente à sua pessoa. Quando um
governo nomeia um diretor para um hospital de psicopatas não faz um funcionário
de sua confiança. Designa, antes, um curador nato para esses doentes, um
defensor de seus direitos a tratamento humano, a alimentação sadia, a cuidados
de enfermagem, a dedicação dos médicos. Aquele que entre o doente que sofre e o
governo que paga e distribui benefícios prefere este – não é um psiquiatra. O
que permite que sejam desorganizados
serviços que encontrou em boa ordem – não é um psiquiatra. O que explora os
doentes e suas famílias exigindo retribuições por serviços que deviam ser
gratuitos – não é um psiquiatra. O que
permite que seus doentes andem nus, cobertos de vermina e cheios de equimoses –
não é um psiquiatra. O que consente, ainda que por simples omissão de protesto,
que se destrua um grande hospital psiquiátrico, ligado, por tantos títulos ao
desenvolvimento e história da assistência a alienados – não é um psiquiatra. O
que não afronta poderosos para defender o doente mental quando privado de qualquer
de seus sagrados direitos a assistência e proteção por comodismo, interesse
pessoal ou receio de represálias – não é um psiquiatra. Réus desses crimes
deviam sofrer um castigo além do desprezo que os cerca. Como o capitão que
abandona seu navio em perigo, o comandante que deixa sem direção os seus soldados
na batalha, ou o pastor que abandona aos lobos o seu rebanho, deviam sem
privados do direito de ter sob sua proteção doentes que não sabem se defender
de agressões e exigir tratamento,ou sair para as ruas, à sombra da bandeira
nacional, para solicitar pão e luz. Esta
Sociedade não se constitui para demolir nem para atacar. Queremos doutrinar os
que ignoram, corrigir os que erram, aplaudir os que o merecem. O que ela não
fará jamais – eu o espero –será tolerar a injustiça e apoiar a iniqüidade!
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