Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2

História da Psiquiatria

JULIANO MOREIRA: CLIMA, RAÇA, CIVILIZAÇÃO E ENFERMIDADE MENTAL

Ana Maria Galdini Raimundo Oda

Introdução

    Walmor J. Piccinini

    Nesta edição de Psychiatry Online Brasil trazemos a segunda contribuição da Dra. Ana Maria Galdini Oda para a Antologia Psiquiátrica Latinoamericana. Graças ao trabalho da pesquisadora, podemos ler dois trabalhos de Juliano Moreira e nos deliciar com sua maneira de se expressar e com a clareza das suas ideias. Em vez de conclusões ideológicas sobre a psiquiatria do início do século apresentadas por interpretadores da história, nós podemos tirar conclusões mais próximas da realidade da vida e dos problemas da época. Este trabalho da Dra. Ana Oda, bem como os trabalhos de Paulo Dalgalarrondo, muitos deles publicados na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental nos permitem conhecer os pensadores da psiquiatria brasileira e sua coragem de questionar teorias e preconceitos provindos do mundo europeu. Desfrutem o trabalho.

 

Os praticantes de cada especialidade profissional costumam eleger como seus fundadores aquelas pessoas que se destacaram por sua excepcionalidade ou os indivíduos que sintetizaram as melhores qualidades e os atributos exemplares, no julgamento de seus pósteros.

Sendo assim, uma breve análise da biografia de Juliano Moreira faz compreender sua representação como o principal fundador da moderna Psiquiatria brasileira1.

Juliano Moreira (1873-1933) nasceu em Salvador e graduou-se na Faculdade de Medicina da Bahia em 1891 – muito jovem, portanto – com a tese Etiologia da sífilis maligna precoce. Ainda que as informações sobre sua origem sejam escassas, sabe-se que era de uma família de trabalhadores modestos; seus pais eram pessoas

livres, descendentes de africanos escravos (vale lembrar que a abolição da escravidão no Brasil se deu em 1888, quando Moreira tinha 15 anos de idade).

Faleceu aos 60 anos, de complicações da tuberculose, doença que o acompanhara

desde a juventude.

Entre 1896 e inícios de 1903, foi professor assistente da cadeira de Clínica Psiquiátrica e de Moléstias Nervosas da Faculdade de Medicina da Bahia. Moreira esteve em viagens de estudos na Europa, onde se ligou a grupos de pesquisa em dermatologia e sifiligrafia, especialmente na Alemanha, e frequentou cursos nos serviços de Flechsig, Krafft-Ebing, Gilles de La Tourette, Valentin Magnan, etc. Neste verdadeiro périplo

psiquiátrico, conheceu serviços na Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália, França,Áustria e Suíça.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1903, para dirigir o Hospício Nacional de Alienados, o que fez por quase 30 anos, até 1930. Transferir-se para o Rio significou abandonar a carreira universitária principiada na Bahia, uma vez que jamais seria professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Assim, tornou-se um influente

“chefe de Escola” sem cátedra, exercendo efetivamente importantes atividades docentes como diretor do Hospício Nacional, junto aos estudantes de medicina que ali estagiavam e jovens médicos que se aprimoravam em Psiquiatria.

 

 

1 Nesta apresentação, usei principalmente os seguintes trabalhos:

- Ana Maria G. R. Oda. Alienação mental e raça: a psicopatologia comparada dos negros e mestiços brasileiros na obra de Raimundo Nina-Rodrigues. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 2003.

- Ana Maria G. R. Oda e Walmor  Piccinini. Dos males que acompanham o progresso do Brasil: a psiquiatria comparada de Juliano Moreira e colaboradores. Revista Latinoamericana  de Psicopatologia Fundamental, v. 8, n. 4,p. 788-793, 2005.

Agradeço a doutora Fátima Vasconcellos pela gentil cessão das fotos de Juliano Moreira, de seu acervo pessoal.

 

 

Moreira seguiu cultivando relações científicas com universidades e serviços de excelência em todo o mundo, alinhando-se às correntes que então representavam a modernização teórica da Psiquiatria e da sua prática hospitalar.

Quando assumiu o Hospício Nacional, empreendeu um ambicioso projeto reformador, visando mudanças no funcionamento institucional, tais como: melhoria das instalações destinadas aos internos; separação entre adultos e crianças; instalação de laboratórios de patologia e de análises bioquímicas; ampliação expressiva do corpo clínico, com entrada de mais psiquiatras, além de neurologistas, clínicos, pediatras, oftalmologistas,

ginecologistas e odontólogos; abolição do uso de coletes e camisas de força e a retirada de grades de ferro das janelas; uma escola para formação especializada de enfermeiros psiquiátricos; e estabelecimento de rotinas para os registros administrativos, estatísticos e clínicos.

O diretor do Hospício Nacional aglutinou ao seu redor um grupo de médicos muito ativos, muitos dos quais viriam a ser, eles próprios, os pioneiros de diversas especialidades médicas, tais como Neurologia (Antonio Austregésilo),Clínica Médica e Infectologia (Miguel Pereira),Pediatria (Fernandes Figueira), Medicina Legal

e Psiquiatria Forense (Afrânio Peixoto e Heitor Carrilho) e Cirurgia (Álvaro Ramos). Sua atuação institucional incluiu ainda a organização da Assistência aos Alienados (mais tarde, Serviço Nacional de Assistência aos Psicopatas), tendo sido uns dos principais responsáveis pela redação da legislação federal respectiva, apresentada

ao Congresso Nacional pelo médico alienista e deputado João Carlos Teixeira Brandão, promulgada em dezembro de 1903.

A consolidação de outro pilar da medicina nacional teve o seu apoio decisivo: ele foi co-fundador de importantes periódicos médicos,como os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria,Neurologia e Ciências Afins (1905) – o primeiro exclusivamente dedicado à neuropsiquiatria,editado por Moreira e Afrânio Peixoto –, os Arquivos Brasileiros de Medicina (1911) e os Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (1930). Prezando muito a vida associativa, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira

de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (1907), presidente de honra da Liga Brasileira de Higiene Mental, presidente da Academia Brasileira de Ciências e presidente da seção Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Psicanálise, e

ainda membro de várias sociedades científicas nacionais e internacionais.

Interessado em estudos de Psiquiatria Comparada – depois chamada de Etnopsiquiatria, Psiquiatria Transcultural e Psiquiatria Cultural – Moreira produziu vários artigos e comunicações em congressos internacionais sobre o tema.

Entre 1905 e 1906, ele se correspondeu com Emil Kraepelin, que pretendia vir ao Brasil para uma expedição de pesquisa etnopsiquiátrica, o que acabou por não ocorrer2. Vale ressaltar que o alienista brasileiro não aceitava todas as proposições

sobre a psicopatologia dos habitantes dos trópicos que vinham dos autores europeus.

Colocando-se em posição intelectual de igualdade com seus interlocutores estrangeiros, ele criticava pelo menos três crenças dominantes na Psiquiatria Comparada dos começos do século vinte:

primeiro, afirmava que não havia doenças mentais próprias dos climas tropicais;

segundo, defendia que a condição racial de um indivíduo não daria imunidade nem tampouco favoreceria o aparecimento de formas específicas de insanidade mental;

 e, terceiro, recusava a tese da inferioridade mental inata dos negros,atribuindo as diferenças intelectuais e culturais entre brancos e negros a fatores sociais e educacionais.

Discordando da ideia que as misturas raciais pudessem trazer malefícios à saúde física e mental, Moreira divergia abertamente de seu colega da Faculdade da Bahia, Raimundo Nina-Rodrigues, que defendia o ponto de vista oposto, ou seja, acreditava que os negros vinham contribuindo negativamente na formação do povo

 

2 Várias cartas de Moreira para Kraepelin foram traduzidas e comentadas por Paulo Dalgalarrondo no livro Civilização e loucura: uma introdução à história da etnopsiquiatria. São Paulo: Lemos, 1996.

B

brasileiro e que os mestiços eram mais predispostos à degenerescência e ao desequilíbrio mental. Este foi um debate interrompido precocemente, pela inesperada morte de Nina-Rodrigues, em 1906, mas que seguiria ecoando nos trabalhos subsequentes de Moreira.

Publicamos nesta Antologia dois textos de Juliano Moreira, sendo que o primeiro deles (‘As doenças mentais nos climas tropicais’, de 1906) tem co-autoria de Afrânio Peixoto (1876-1947).

Este foi aluno de Moreira e de Raimundo Nina-Rodrigues na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo que ambos escreveram o prefácio à reimpressão da tese de doutoramento de Peixoto, Epilepsia e crime (1898). Era muito próximo de Moreira e foi alienista do Hospício Nacional, substituindo o seu diretor em diversas ocasiões.

Interessado em Psiquiatria e em Medicina Legal, mais tarde Peixoto foi professor da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e diretor do Instituto Médico Legal, fez carreira política e exerceu cargos importantes na área de educação, tendo sido também romancista e membro da Academia Brasileira de Letras.

No trabalho publicado em 1906 nos Arquivos Brasileiros de Psiquiatria (originalmente uma comunicação em francês apresentada ao XV Congresso Internacional de Medicina de Lisboa),os autores defendem suas ideias demonstrando que conhecem perfeitamente a produção científica internacional e os pontos cruciais do debate.

Como premissa geral, Moreira e Peixoto supõem que o progresso material do Brasil

vinha sendo acompanhado de vários males e enfermidade, e que as exigências da vida civilizada,a superpopulação nas grandes cidades,a dissolução dos costumes, a pobreza urbana,o esgotamento físico e mental dos tempos modernos poderiam ser causas de um suposto aumento nas taxas de doenças mentais ou ainda do surgimento de certas manifestações psicopatológicas3.

 

3  Crença que era compartilhada pela maioria dos alienistas, pelo menos desde Esquirol (entre outros, veja-se o nosso artigo: Oda, Ana Maria G. R.; Banzato, Cláudio E. M; Dalgalarrondo, Paulo. Some origins of Cross-Cultural Psychiatry. History of Psychiatry, vol. 16, n. 2, p.

 

Depois de revisar a ocorrência das principais síndromes mentais no Brasil, baseados principalmente nas estatísticas do Hospício Nacional, Moreira e Peixoto concluem que não há influência direta do clima ou da raça sobre os sintomas ou a evolução clínica de tais enfermidades. Eles pensam que é no grau de instrução dos indivíduos,

principalmente, que residiria a explicação das diferentes manifestações sintomáticas.

Também ressaltam que os indivíduos originários de países frios não sofreriam, necessariamente, uma ação negativa do clima tropical sobre seu sistema nervoso. Ao insistirem na igualdade das manifestações psicopatológicas em climas quentes e frios, os autores brasileiros parecem também estar recusando a imagem exótica da loucura nos países tropicais, que os alienistas europeus vinham construindo desde meados do

século dezenove4.

O segundo texto de Juliano Moreira aqui publicado é de 1925, ‘A seleção individual de

imigrantes no programa da higiene mental’, editado nos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental.

Nele, o autor considera que o Brasil deveria cuidar muito seriamente da seleção dos estrangeiros que aqui aportavam, organizando um programa de profilaxia de enfermidades mentais, restringindo a entrada de imigrantes alienados, dos alcoolistas e dos analfabetos, e repatriar aqueles que, dentro de doze meses após sua chegada, viessem a apresentar qualquer problema mental. Este documento, de tom quase

propagandístico, deve ser lido compreendendo qual era o significado então atribuído à “higiene mental”. Para Moreira – bem como para o grupo de higienistas e psiquiatras do qual ele era uma liderança científica e política expressiva – na luta contra as chamadas degenerescências nervosas e mentais, os inimigos a combater eram o

alcoolismo, a sífilis, as verminoses, as condições sanitárias e educacionais adversas, sem “ridículos preconceitos de cores ou castas”, segundo sua expressão. Crendo no papel fundamental da ciência na construção de um Brasil moderno e “civilizado”, estes higienistas defendiam que a função mais importante da Psiquiatria era a

profilaxia, a promoção da higiene mental e da eugenia ou melhoramento da população – uma eugenia de matriz sanitarista, diferente da eugenia de cunho racialista (o branqueamento ou a arianização do povo) defendida por outros médicos e intelectuais brasileiros, na mesma época5.

Finalizando esta apresentação, resta dizer que os ensaios brasileiros aqui publicados são ricas fontes de estudo que podem ser lidas de muitas maneiras, pois são textos onde se cruzam momentos-chave da história do Brasil e da história da Psiquiatria e da Psicopatologia.

Neles se revelam indícios da construção da Psiquiatria como campo científico, em contextos específicos, permitindo que reconheçamos a determinação histórica e cultural das práticas científicas.

 

155-169, 2005.

 

4 Sobre este trabalho de Moreira e Peixoto, veja-se o citado artigo de Oda e Piccinini, 2005.

5 Para uma análise detalhada deste texto de Moreira,veja-se o artigo de Ana Teresa A. Venâncio e CristianaFacchinetti: “Gentes provindas de outras terras” – ciência psiquiátrica, imigração e nação brasileira. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 8, n. 2,

p. 356-363, 2005.

 

 

As doenças mentais nos climas tropicais (1906)*

Juliano Moreira e Afrânio Peixoto**

 

 

As questões de geografia médica perderam muito da importância atribuída a elas quando se acreditava que cada região da terra tinha, conforme sua latitude e longitude, uma característica mórbida,assim como determinada característica etnográfica, zoológica ou etográfica, etc.

Estas concepções eram facilitadas por uma noção demasiadamente ampla, e por isso mesmo mal delimitada, das zonas climáticas. Sob o império de tais ideias teóricas e antes de se haverem realizado pesquisas realmente científicas em cada região, atribuía-se a cada clima certa patologia, clara, precisa, e expressamente separada de todas as outras por delimitações exatas.

Tais preconceitos patológicos resultavam em grande parte da falta de uma noção etiológica positiva, em consequência dos conhecimentos insuficientes da época, e da ausência de estudo clínico comparado, que as conclusões apressadas dos médicos viajantes não permitiam.

A etiologia mais esclarecida de nosso tempo e a higiene mais bem preparada de nossos dias vieram dissipar crenças mal fundadas e reduzir a questão a seus verdadeiros termos.

Reconheceu-se o quase cosmopolitismo de todas as doenças, ou pelo menos sua fácil aclimatação, já que concorrem, em qualquer que seja a região da Terra, certas condições necessárias ao seu desenvolvimento.

Quase não há doença que não tenha sido observada tanto no Norte quanto no Sul, tanto no Oeste quanto no Leste. Não há região no mundo que particularmente possua uma única doença, e não há doença que não possa, mesmo em seus domicílios eventuais, ser exterminada pelos meios higiênicos de nosso tempo. Como exemplo da veracidade da primeira destas afirmações, citaremos o cólera e a peste. A febre amarela e a malária provam a veracidade da segunda.

O que há, quando existe, são variações clínicas, resultante complexa da intensidade mórbida, da resistência individual, da defesa higiênica, do combate terapêutico: conjunto de condições em que os

 

* Originalmente publicado em francês: Les maladies mentales dans les climats tropicaux. Arquivos Brasileiros de Psiquiatria,

Neurologia e Ciências Afins, volume 2, n.3, p. 222-241, 1906.

Traduzido pela primeira vez para o português e publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 8, n. 4, p. 788-793, 2005. Tradução do francês de Monica Seincman. Revisão técnica da tradução e notas de Ana Maria G. R. Oda; tradução das frases em alemão de Paulo Dalgalarrondo. Agradecemos ao editor da Revista Latinoamericana, Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck, a autorização para o uso desta tradução. As referências citadas no corpo do texto (numeradas no original) tiveram sua forma de apresentação atualizada e padronizada (autor, ano). No artigo original, a lista bibliográfica final tem várias referências incompletas, que na presente edição foram completadas

tanto quanto possível (Nota da revisora).

** XV Congresso Internacional de Medicina, Lisboa, 1906. Comunicação pelos doutores Juliano Moreira (ex-professor de Psiquiatria e Neurologia, diretor-alienista do Hospício Nacional de Alienados do Rio) e Afrânio Peixoto (expreparador de Medicina Legal, alienista do Hospício Nacional de Alienados do Rio), Brasil.

 

coeficientes climáticos podem bem entrar em parte, mas para as quais eles jamais contribuem nem mediata nem diretamente. Esta é a observação geral, que não poderia informar fatos particulares, ainda obscuros e partindo de interpretação variada, que se lhe poderia opor.

Para empreender frutiferamente nosso estudo, é necessário ter noções exatas sobre os climas denominados tropicais. Jules Rochard teve o cuidado de nos prevenir que qualquer classificação dos climas é arbitrária. A sua não escapa a esta crítica, tendo sido, no entanto, adotada pela maioria dos higienistas.

A base térmica adotada é passível de sérias objeções. É sempre verdade que as médias térmicas são como roupas prontas: nenhuma tem a medida certa. Na realidade, sabemos, quase não há climas de zonas, nem climas de regiões; há acima de tudo climas de localidades.

Entretanto, por ser cômodo ligar os climas de localidade a qualquer uma das grandes divisões que representam os climas de zona, cujas características são convencionalmente bastante bem definidas e conhecidas, declaramos que utilizamos para nossas comparações os documentos relativos aos países situados entre as isotermas de + 20º ao Norte e + 20º ao Sul.

***

Em patologia nervosa e mental, assim como em qualquer outra, não é temerário dizer (por ser um fato de observação) que não existem doenças mentais climáticas, ou mais particularmente que, em climas quentes, não se observa nenhuma forma patológica que seja estranha à neuropsiquiatria dos outros climas.

Esta afirmação baseia-se tanto em nossa própria experiência quanto na de nossos colegas de diversas regiões do mundo.

A leitura atenta das notas e das comunicações clínicas, esparsas nas revistas médicas de diversos países, mostrou-nos que elas não estão em contradição com a nossa própria observação.

O que viram Muñoz (1866) e Gustavo López (1891) em Cuba, Niven (apud van Brero) em Bombaim, Manning (1875-76) na Austrália, Grieves (1880-81), Law (1888) e Barnes (1891) na Guiana Inglesa, Sandwith (apud Peterson) e Peterson (1892) no Cairo, Greenless (1894; 1895) na África do Sul, Meilhon (1896) no Norte da África, Holtsinger (1897) na Abissínia, Gillmore  Ellis (1893) em Cingapura, Van Brero (1896; 1905) e Kraepelin (1904; 1904b) em Java, Ostrowsky (1899) na Pérsia,prova que nossas observações nas zonas quentes do Brasil podem se aplicar a todos os climas quentes

do mundo.

Nossa observação teve um amplo campo de ação em um território imenso, compreendido em sua maioria entre os trópicos e possuindo, além disso, uma vasta região com clima temperado e ameno que nos permitia a comparação.

O Brasil que se estende, com efeito, na América do Sul, por 39 graus de latitude, entre 5º10’ N. e 33º46’ S., compreendendo uma superfície de 8.337.000 quilômetros quadrados, goza de zonas climáticas variadas. A zona tropical, tórrida ou equatorial tem uma temperatura média superior a 25º; uma outra, subtropical ou quente, mantém-se entre as isotermas de 20º a 23º, e uma terceira zona,temperada e amena, tem uma média térmica entre 15º e 20º.

Neste grande país, seja por nossa observação direta em sua quase totalidade (pois moramos em cidades de cada uma de suas circunscrições territoriais), ou pelas informações médicas de qualquer natureza,não pudemos encontrar qualquer afecção, nem mesmo uma variação ou um caráter particular em patologia mental, cuja responsabilidade direta e imediata possa ser atribuída ao clima. A lista das

doenças mentais no Brasil é identicamente a mesma que nos outros países: a questão é apenas de dose e aparência, alterações às quais concorrem fatores complexos, que analisamos adiante.

Mesmo em uma dada região em que persistiriam quase todos os fatores, exceto o climático, pelas mudanças das estações, não se poderia tirar nenhuma conclusão relativa à influência da temperatura e das circunstâncias meteorológicas conexas.

 

Um gráfico anexo a este estudo1* mostra, com efeito, as curvas das máximas, das médias e das mínimas térmicas mensais no Rio de Janeiro durante 10 anos, projetadas sobre a linha da proporção dos casos de loucura sobrevindos nesta cidade e observados no Hospital Nacional de Alienados: é impossível chegar a uma dedução clara quanto à influência da temperatura etc. sobre as psicoses constatadas,

visto os dados do problema que variam de um ano para outro. É verdade que, no mais das vezes, a admissão no Hospital não coincide com o início da doença, mas coincide, pelo menos na maioria dos casos, com as exacerbações que justificam a urgência da internação. A única dedução permitida é que se realmente o clima (pelo menos em seus componentes principais: temperatura, estado higrométrico etc.) influi nas determinações mórbidas mentais, esta influência é contrabalançada, mascarada e

anulada pela complexidade obscura de outras condições de forma que é impossível atribuir-lhe uma importância ou um valor qualquer.

Esquirol (1838, p. 24) pensava que os climas quentes produzem menos loucos do que os temperados, sujeitos a grandes variações atmosféricas, e que havia menos alienados na Grécia, na Turquia,nas Índias do que no Norte da Europa. Mas é, também, nestas regiões que estão situados os países em que a assistência é mais desenvolvida. No entanto, nos países frios em que a civilização é atrasada

e  em que ainda não existem os inconvenientes da vida intensiva, como a Groenlândia, a Islândia, a Sibéria etc., não se tem notícia de que a loucura seja mais frequente do que nas zonas quentes pouco civilizadas. Em contrapartida, no que diz respeito ao Brasil, a loucura se torna cada dia mais frequente em suas zonas quentes, proporcionalmente aos progressos da civilização que, ao lado de suas grandes

vantagens, acarreta o aumento dos vícios e das doenças crescendo, como parasitas, à sua sombra.

Nos climas quentes, qual é o valor das influências meteorológicas sobre os alienados? Esquirol (1838, p. 26) dizia que, nos equinócios, os alienados ficavam mais falantes. Conforme Guislain (1880), haveria algumas relações, difíceis de precisar, entre a exacerbação e a remissão da loucura, por um lado,e os tempos muito úmidos, os ventos, as tempestades e a eletricidade atmosférica, por outro.

Lombroso (1867) observara que, dois ou três dias antes das grandes variações atmosféricas, certos alienados, os estúpidos, os idiotas, os dementes e principalmente os epilépticos ficam muito agitados,parecendo-se nisso a muitos dos animais.

Estudamos a questão comparando o levantamento dos ataques dos epilépticos do Hospital Nacional de Alienados com os dados meteorológicos do Observatório do Rio e da seção meteorológica da Marinha. Os fatores estudados foram à temperatura, o estado do céu (nuvens), a chuva, o estado higrométrico, a força e a direção do vento, a pressão atmosférica, as tempestades. Além disso, pesquisamos a influência das fases lunares.

Deste estudo minucioso, acreditamos poder concluir que, pelo menos quanto ao clima, não existem relações entre os fenômenos atmosféricos e o aparecimento dos ataques convulsivos nos epilépticos.

Nos países quentes, assim como nos países frios, ao observar com atenção e, em particular, os casos clínicos, observa-se que há grandes diferenças individuais e que, com frequência, o modo de reagir de um doente não é semelhante em duas ocasiões aparentemente idênticas.

***

A comparação de algumas cifras de nossas estatísticas com as europeias, assinalando as variações e as diferenças destes números para cada doença mental, nos permitirá indicar as causas prováveis do fato indicado.

 

1 * O referido gráfico não foi encontrado em nossa cópia do original de 1906. (Nota da revisora).

 

Idiotia

 

A idiotia apresenta em nossas zonas climáticas com médias térmicas mais elevadas, assim como naquelas com médias menos elevadas, todas as formas descritas nos países frios. Comparando o que observamos no Brasil com o que vimos nos hospitais europeus, nada temos de particular a assinalar em nosso país. Nossa proporção inferior em relação a ela, relativamente aos outros países, é devida exclusivamente ao fato de que nossos Hospitais apenas recebem um número mínimo de casos de idiotia,

os doentes mais inofensivos permanecem quase sempre confiados aos cuidados de suas famílias.

 

Imbecilidade e debilidade mental

 

Quanto à imbecilidade e à debilidade mental, podemos igualmente afirmar que elas não apresentam sintomatologicamente nada diferente do que se observa nos países frios. Sua grande frequência em alguns distritos rurais não poderia ser atribuída ao clima, porque esta frequência existe em localidades com médias térmicas muito temperadas. Não acreditamos, aliás, que as duas modalidades de disfrenias

degenerativas sejam mais frequentes no Brasil do que na Irlanda e na Rússia, por exemplo. As causas

de sua frequência, em nosso país, são as mesmas que em outros países. Pedimos observar, no entanto, que uma das mais graves, nos Estados da Bahia, Pernambuco, Ceará, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Espírito Santo, é o número extraordinário de doentes de ancilostomíase nos distritos rurais. Os descendentes destes doentes são frequentemente imbecis ou débeis mentais, sem que nenhuma outra

causa pareça ter concorrido para este resultado.

O alcoolismo, a sífilis e o impaludismo são os outros fatores da frequência da imbecilidade, assim como da idiotia, em nossas zonas tropicais.

 

Neurastenia

 

Os números que figuram em nossas estatísticas são exíguos por dois motivos: o primeiro é que o lugar de nossa observação é um Hospital de Alienados, em que os doentes são sempre levados pela polícia ou por seus parentes, e a internação dos neurastênicos, em geral, não é urgente. O segundo motivo é que se a neurastenia tem como desenvolvimento, como acontece com bastante frequência, uma

perturbação  mental mais grave ou mais notável, o caso em questão figura sob esta última rubrica. É preciso considerar, além disso, que duas das principais condições causais da neurastenia estão ainda em estado rudimentar no Brasil, mesmo em sua capital, a saber: a estafa por excesso de trabalho ou outro [excesso] e o esgotamento venéreo, principalmente por perversões sexuais. Nossas condições de civilização ainda não nos causaram estes tristes efeitos, que esgotam os povos com uma vida mais intensa. Talvez venha daí a raridade dos neurastênicos em nossos hospitais. Na clínica particular, no entanto, eles já são frequentes e, se um número maior não é observado, é porque cruzam com bastante frequência o Oceano para irem consultar os grandes especialistas europeus, ou aumentar o número dos frequentadores das estâncias de águas, sob o pretexto de que sofrem do estômago ou dos intestinos.

 

Histeria

 

A histeria é frequente no Brasil, principalmente em suas formas convulsivas, observando-se verdadeiras epidemias, como as de astasia-abasia em São Luis do Maranhão em 1879-1881, e na Bahia em 1882 (Nina-Rodrigues2* e Alfredo Brito). Mas a história das grandes epidemias de neurose convulsiva mostra que tiveram uma frequência ainda maior nos países frios da Europa.

As causas da histeria, em nosso país, não diferem em nada das que agem na Europa e na América do Norte.

2 * Trata-se  do artigo ‘A abasia coreiforme epidêmica no Norte do Brasil’, de 1890, republicado nesta Antologia (Nota da

revisora).

 

 

Epilepsia

 

A proporção desta doença é considerável, principalmente em sua forma convulsiva.

Apesar de encontrarmos frequentemente todas as variações epilépticas, desde o pequeno mal até as manifestações psíquicas delirantes, e mesmo criminais da neurose (e possuímos quanto a isso casos muito curiosos), observa-se facilmente que o grande ataque é a mais comum das manifestações comiciais. Como causas a assinalar, citaremos o alcoolismo dos pais e a degeneração criada por esta

intoxicação e por outras intoxicações mórbidas, alimentares, etc.

 

Degeneração inferior

 

Magma confuso de evolução cerebral abortada ou de regressão doentia, sobre a qual se implantam e com a qual se misturam as perversões, os fetichismos, os delírios episódicos. A proporção é considerável, principalmente ao se considerar que, sob esta rubrica, são compreendidos quase todos os casos sem característica precisa e todos aqueles disseminados sob outras rubricas. Como em toda parte, encontra-se nos ascendentes dos doentes o alcoolismo, a sífilis e os abusos venéreos.

 

Paranóia

 

Seguindo as indicações de Kraepelin, excluímos tudo o que a confusão psiquiátrica erroneamente considerou sob esta denominação. Em um trabalho anterior (Moreira e Peixoto, 1905), partilhamos a opinião do professor de Munique. Por encarar a paranóia desta maneira, em 1904 tivemos apenas 1,1% de casos. Tivemos a sorte de observar em nosso país casos muito instrutivos desta doença.

 

Alcoolismo

 

A porcentagem encontrada por um de nós em um período de 10 anos é de 28%, que equivale à anual, em nossas estatísticas. O doutor Roxo (1904) observou na Clínica Psiquiátrica da Faculdade do Rio, de 1895 a 1900, 31% de casos de origem alcoólica. Resulta daí que, quanto a este dado, o Rio de Janeiro é comparável a Paris e a Viena; ou seja, que a proporção é muito elevada, e ela parecerá ainda mais, se for considerada a distância que separa socialmente estas duas grandes capitais da nossa.

 

Psicoses infecciosas

 

Em terrenos preparados pela neuropatia, observa-se um grande número de casos de perturbações mentais que acontecem no período inicial ou no secundário da sífilis, na malária, na varíola, na febre amarela. Encontrando um terreno propício, estas infecções fizeram eclodir as desordens mentais. Não houve erro de imputação, nos dois primeiros casos, pois as medicações específicas sempre forneceram uma confirmação positiva.

 

Confusão aguda

 

Entre as psicoses por esgotamento (Das Erschöpfungirresein), Kraepelin reserva a denominação de confusão aguda – Die acute Verwirrtheit – (Amentia) – somente para uma categoria dentre os fatos agrupados por Meynert sob o nome de Amentia.

Apesar da raridade desta psicose (0,5%), observamos em nosso país casos típicos. Ela é mais frequente na mulher. As causas mais comuns são os fatores de esgotamento, principalmente o estado puerperal, a exaustão física e as vigílias.

 

Loucura maníaco-depressiva

 

Um de nós (Peixoto, 1905) encontrou, em 10 anos entre nossos alienados, 6,6% de maníaco-depressivos. Ao contrário do que se observa na Europa, onde há excesso de mulheres, observa-se em nosso país uma leve diferença em favor do sexo masculino, que forneceu, em 10 anos, 6,8% contra 6,5% para o sexo feminino. A loucura maníaco-depressiva é mais tardia entre nós. A comparação de nossos números

com os de Kraepelin e de Weignandt mostra que, até os 20 anos de idade, temos muito menos maníaco-depressivos, e após os 40 anos, temos muito mais do que a Alemanha.

A contribuição dos grupos étnicos é desigual: mais da metade dos casos (53%) pertencem à assim chamada raça branca; mais de um quarto (28%) aos mestiços e mais de um sexto (19%) à raça negra (Peixoto, 1905).

 

Demência precoce

 

A demência precoce, em todas as suas variedades kraepelinianas, é muito frequente no Brasil: o fato é facilmente observável desde que se agrupou sob esta rubrica casos anteriormente mal classificados.

Os estudos excessivos, que começam com demasiada precocidade no Brasil; maus-tratos domésticos ou nos internatos; os rigores da disciplina; o medo das punições; os perigos de revoluções; estes são com frequência os fatores ocasionais da doença, verificados entre nós.

Em um total de 1.806 doentes observados no Hospital Nacional de Alienados ao longo do ano 1904, encontramos 217 dementes precoces, ou seja, 12%, dos quais 165 homens e 52 mulheres, perfazendo uma proporção de 14,5% para os primeiros e 7,8% para as segundas. O número total de 12% é inferior ao de Kraepelin, que indica de 14 a 15%; inferior igualmente aos de Séglas e Deny que encontram de 13 a 14%; de J. Crocq, perfazendo 15,66%; e de Levi Bianchini que chega a 28%; é quase igual ao de Sérieux que encontra de 12 a 16%. A proporção de 10% dada por Meeus é a menos

elevada entre todos os autores.

Nosso número total de 12% aproxima-se, em suma, bastante daqueles obtidos por Sérieux, Séglas e Deny.

Em Java, o Professor Kraepelin encontrou a demência precoce com muita frequência. Infelizmente, ele não fornece a sua proporção.

 

Involução senil, melancolia de involução, demência senil

 

Nos países quentes, assim como nos frios, a velhice não poupa das psicoses. Observamos todas as formas mórbidas descritas na Europa por Ritti, Wille, Kraepelin etc. A proporção destas psicoses senis será certamente menos elevada do que os 8%, estabelecidos em Rhinan por Wille, porque muitos destes doentes são tratados em casa.

 

Paralisia geral

 

Em relação à paralisia geral, dois fatos devem ser observados: um é o menor número de casos entre nós e a extrema raridade desta síndrome nas mulheres, contrariamente ao que se observa em certos países da Europa e em certos Estados da América do Norte; o outro é a progressão crescente, a cada ano, desta afecção no Brasil.

Muñoz e Gustavo López em Cuba, Niven em Bombaim, Plaxton no Ceilão, Manning em New South Wales, Sandwith e Peterson no Cairo, Greenless na África do Sul, Meilhon na Argélia, Holzinger na Abissínia, Ostrowsky na Pérsia, Friedrichsen em Zanzibar, Gillmore Ellis em Cingapura,Bauer, Kok Ankersmit e van Brero nas Índias holandesas, Grieves, Law e Barnes na Guiana Inglesa afirmaram a raridade da paralisia geral nos climas quentes. Van Brero escreveu: “Dementia paralytica

ist eine Irrseinsform, welche in tropischen Ländern wenig beobachtet wird”.3*

Acreditamos que tanto nos países quentes quanto nos frios a paralisia geral é mais ou menos frequente conforme o grau de civilização.

No Brasil, ela é mais frequente nos grandes centros.

Somos informados, pelas estatísticas levantadas por Penafiel e Moreira4*, que deram entrada no

 

3 * Em alemão no original: “A  dementia paralytica é uma forma de loucura pouco observada em países tropicais” (Nota da revisora).

4 * Estatísticas que seriam publicadas por Juliano Moreira e Antonio Penafiel em:  A contribution to the study of dementia paralytica in Brazil, no Journal of Mental Science, em 1907. Este artigo foi traduzido pela primeira vez para o português em 2005, e publicado como Contribuição ao estudo da dementia paralytica no Brasil. Revista Latinoamericana de Psicopatologia

Fundamental (v. 8, n. 4, p. 812-827). (Nota da revisora).

B

Hospital Nacional de Alienados no Rio, durante o período de 1889 a 1904, 9.609 doentes e que destes apenas 266 (entre os quais 12 mulheres) foram considerados atingidos pela paralisia geral, ou seja,uma proporção de 2,76% sobre a totalidade das entradas. O Hospital Nacional de Alienados é um hospício público. Na Casa de Saúde do Dr. Eiras, reservada aos doentes das classes mais privilegiadas, a proporção foi de 4,3%. E podemos afirmar que muitos dos doentes são tratados em casa.

Conforme as estatísticas de Franco da Rocha (1904) em São Paulo, a porcentagem nesta cidade é mais elevada: 5,5%. Em 1.080 homens alienados, encontrou 90 paralíticos, ou seja, 8,3%. Entre 266 estrangeiros, ele observou 52 paralíticos, ou seja, 8,3%5**. O clima da cidade de São Paulo serve de transição entre o da zona subtropical e o da zona temperada amena. Em consequência da altitude, a temperatura desta localidade diminui consideravelmente e por isso seu clima afasta-se daquele da

zona subtropical.

Mas a razão da diferença de porcentagem não é o clima. A imigração estrangeira mais forte explicará o fato.

Apesar de a sífilis atingir uma grande extensão no Brasil, observa-se uma preponderância das formas tegumentares benignas, de modo que o sistema nervoso é relativamente poupado.

No entanto, ao lado destas manifestações, um de nós observou não apenas numerosos casos de terciarismo agudo, extenso, que atinge com rapidez os ossos e os tegumentos, principalmente nos doentes dos distritos rurais em que há vários fatores de agravamento da doença, mas ainda casos de terciarismo dos centros nervosos, mais ou menos graves, nos brasileiros descendentes, mais ou menos

puros, dos dois grupos étnicos que mais concorreram para o povoamento do país.

Se as localizações encéfalo-medulares de sífilis entre os habitantes do Brasil não são excepcionais, as afecções chamadas de parassifilíticas não são frequentes, como em certos países da Europa e parecem ser totalmente desconhecidas nos aborígines.

Esta imunidade deve ser atribuída a uma influência étnica? Acreditamos que não. O tipo de vida que levam estes aborígines, cuja atividade é reduzida ao mínimo, é sem dúvida a causa deste estado refratário. Eles não têm as preocupações, os males e o excesso de trabalho intelectual do homem civilizado. Se não conhecem o prazer dos gozos psíquicos, ignoram em contrapartida as depressões neurastênicas.

Nos climas tropicais assim como nos frios, a sífilis é de longe a causa mais frequente da paralisia geral. Encontramo-la, certa ou provável, em aproximadamente 80% dos casos. Ela existe como fator predominante em 30 de 100 casos.

Qualquer que seja o valor da sífilis como causa da paralisia geral, acreditamos que ela não é a única.

Parece suficientemente demonstrado que os tóxicos mais diversos podem dar origem, nas pessoas predispostas, à meningoencefalite difusa.

A estafa por excesso de trabalho, por miséria e principalmente por perversões genésicas, o coito imoderado, os abortos provocados etc., comuns em certas capitais da Europa, são relativamente raros no Brasil. Mas como o quociente do progresso aumenta gradualmente e, como eles, os males que o

acompanham, a paralisia geral começa a figurar sensivelmente mais frequente em nosso obituário, e tende a aumentar ainda mais.

Aliás, temos a convicção de que a raridade da demência paralítica nas estatísticas dos principais centros do Brasil é maior do que na realidade. Isto se deve, em sua maioria, aos erros de diagnóstico.

Muitos médicos, e dos mais instruídos, desconhecem a paralisia geral, quando um alienista não hesitaria em atestá-la, e somente a admitem quando a síndrome está completa.

 

5 ** Possivelmente, trata-se de um erro tipográfico. Na verdade, 52 paralíticos representam 19,5% do total de 266 estrangeiros. (Nota da revisora).

***

Uma questão que devemos discutir brevemente, antes de concluir, é a da influência dos trópicos sobre o sistema nervoso dos emigrantes dos países frios. Em Manaus, em Belém no estado do Pará, no do Maranhão, em Fortaleza, em Pernambuco, na Bahia etc., enfim em toda a região do Brasil considerada como possuindo climas quentes, vimos um grande número de europeus originários dos países do

Norte, alemães, noruegueses, russos, ingleses, etc., viver nas melhores condições de saúde e conservar um excelente sistema nervoso. É que eles se empenharam em viver conforme o clima e respeitaram as prescrições que aconselha a higiene para a existência em tais condições. Ao lado deles, em contrapartida, vimos muitos cujas perturbações eram devidas aos excessos de cibus, de potus e de vênus6*. Um

certo número, aliás, devia ter trazido da Europa taras degenerativas que ocasionavam as manifestações mórbidas e, nestes casos, estas últimas teriam certamente aparecido da mesma forma, se os emigrantes não tivessem deixado suas pátrias.

E sem nos deter por enquanto em aprofundar a afirmação, recordaremos que a emigração pode ser o resultado de estados psicopáticos diversos que incitam o homem a se deslocar, seja em virtude de ideias de perseguição ou de grandeza, ou ainda de impulsões relacionadas à histeria, à epilepsia, à paralisia geral, etc.

Quanto à insônia persistente de que nos falam Daübler e Rasch, o clima não é de forma alguma sua causa, pois, em nossas zonas equatoriais, não foi observada uma frequência maior do que na Europa.

Nossas observações estão de acordo com o que afirma o Diretor do Museu do Pará, o estudioso suíço Dr. Goeldi (1902), em seu estudo sobre o clima da Amazônia. Ele descreveu: “Nie während eines mehr als 7 jährigen Aufenthaltes habe ich, noch eines meiner Familienmitglieder, noch einer unserer europäischen Museumsangestellten wegen Hitze nicht zu einem erquicklichen Schlafe gelangen können”. 7*

***(7 * Em alemão no original: “Nunca, durante uma permanência de mais de sete anos, nem eu, nem um membro de minha família, nem um dos nossos funcionários europeus do Museu pudemos dormir sob uma temperatura fresca, devido ao calor.” (Nota da revisora).

 

Já se observou como particulares aos climas quentes duas síndromes, conhecidas pelos indígenas do Arquipélago Malásio sob os nomes de Latah e de Amok.

A leitura atenta dos trabalhos de Swaving (apud van Brero), de Vogler (1853, apud van Brero), de van de Burg (apud Van Brero), de Rasch (1895), de Gillmore Ellis (1893), de Van Brero (1896; 1905) e, finalmente, de Kraepelin (1904; 1904b), que visitou Java o ano passado, leva-nos a crer que o Latah e o Amok não são duas doenças independentes e que não são particulares dos climas quentes. Os fenômenos do Latah (um mioespasmo impulsivo imitativo provocado, segundo Marina e Van Brero)

pertencem certamente, no geral, à doença de Gilles de la Tourette e à histeria. Eles oferecem pontos de semelhança com o Miryachit dos siberianos e dos lapões, o Jumping dos saltadores norte-americanos e o Bah-tschi dos siameses.

O Amok, em contrapartida, não é uma forma mórbida unívoca, mas o nome genérico sob o qual se designam atos impulsivos extremamente violentos, acompanhados de obnubilação. Na verdade, a maioria destes estados deve ser relacionada à epilepsia.

No ano passado, os jornais do Rio de Janeiro se ocuparam demoradamente do caso de um indivíduo, que um deles nomeou de Homem-fera. Este indivíduo, posteriormente internado no Hospital Nacional de Alienados, é um epiléptico: se morasse nas Índias holandesas, seria um típico caso de Amok.

 

6 * Ou seja, a excessos alimentares, alcoólicos e sexuais (Nota da revisora).

***

É o momento de dizer algumas palavras sobre os acidentes determinados no homem pelos raios caloríficos do sol. Mas eles não são particulares dos climas tropicais. Nós os temos visto em Berlim e em Paris. São observados sob todas as latitudes, mesmo nos limites setentrionais das regiões temperadas (vide Hirsch: Handbuch der historish-geographischen Pathologie – 2 a. edição, e R. Vitor8*).

Até hoje muito raramente tivemos a ocasião no Brasil de observar estas perturbações. Há mais: uma coincidência notável. Um caso de paralisia geral que observamos no Hospital, tendo uma insolação nos antecedentes, começou em uma cidade da República do Uruguai, já situada em uma isoterma da zona temperada.

Autores afirmaram que, quando o golpe de calor (coup de chaleur) atinge o sistema nervoso central, ele pode ostentar três formas: a comatosa, a convulsiva e a delirante. Esta última é caracterizada por um delírio agudo. Texier observou um caso em que o doente atingido pelo delírio furioso queria se jogar ao mar. Este tipo era anteriormente conhecido sob o nome de calentura ou parafrosina calentura, como o chamava Sauvages. A calentura, diz Fonsagrives, é um delírio febril, súbito, particular dos

países quentes, e cujo caráter específico é inspirar no doente o desejo de se jogar ao mar. A existência desta afecção havia se apoiado em alguns fatos, entre os quais o mais importante é a história, relatada por Gaulthier, de trinta marujos e do médico de bordo se jogando ao mar em um acesso de delírio furioso (apud Boudin, Géographie et statistique médicales). Acreditamos que esta modalidade mórbida torna-se rara graças, sobretudo, aos progressos da higiene dos navios, porque por diversas vezes

atravessamos o equador e não observamos um único caso.

Há muito tempo, aliás, Fonsagrives dizia não haver encontrado um único exemplo, durante quatro anos de navegação nas costas da África, em um efetivo de 3.000 homens. Em terra, diz-se, o golpe de calor delirante pode acometer com a mesma intensidade. Repetimos que esta forma mórbida não é particular aos climas quentes porque, segundo Pringle, é durante os maiores calores na Holanda que se observaram no exército inglês estas febres, assinaladas em seu início por um frenesi súbito e tão

violento que os soldados se lançavam de seus carros nos pântanos que bordejavam a estrada.

O que quer que signifique a patogenia do golpe de calor, o aparecimento de seus acidentes cerebrais é favorecido por predisposições individuais. A influência do alcoolismo costumeiro, ou do abuso acidental de bebidas alcoólicas, é evidente. Kelsch insistiu com muita razão sobre a vulnerabilidade especial dos sujeitos portadores de taras orgânicas, de insuficiência funcional do rim e principalmente

de disposições mórbidas, inatas ou adquiridas, do músculo cardíaco.

O Professor Le Dantec (1905, p. 180) escreveu: “Os fortes calores acompanhados de noite por insônia, a ausência de qualquer distração, criam nas colônias um estado mental particular que se chamou pelo nome característico de sudanita, porque é observado com máxima intensidade no Sudão. As outras colônias não estão imunes a isto, etc.”

Nas zonas mais quentes do Brasil, não observamos absolutamente nada de semelhante à conhecida sudanita. Aliás, estamos convencidos de que as vítimas desta psicopatia pseudotropical são degenerados comuns que facilmente começam a delirar, principalmente por causa da maneira viciada de viver nos climas quentes. É preciso sanear as cidades: nelas quase todos se dedicam a perder a saúde.

A estafa, o alcoolismo, o relaxamento mais ou menos disfarçado dos costumes, tudo isso forma candidatos ao fracasso moral e intelectual.

Assim dizia o Professor George Treille, desde 1899: “nos países quentes assim como na zona temperada, é menos do lado dos meteoros do que das deficiências da higiene individual e social, menos nos transtornos funcionais causados pelo clima na fisiologia do homem do que nas aberrações do regime de vida que é preciso procurar as causas da alteração da saúde do europeu”.

 

8 * Sobre esse último autor, a referência dada é apenas: Allg. Zeits. f. Psych. [Allgemeine Zeitschri#t für Psychiatrie], XL,n. 1 e n. 2. (Nota da revisora).

 

Há uma questão ligada a esta dos climas, que é a influência dos grupos étnicos sobre a produção e a frequência das psicoses. Para evitar prolongar este trabalho, não publicaremos agora os resultados de nossas pesquisas. Em relação a esta questão, acreditamos que há um número de preconceitos a destruir.

Nós a discutiremos em um trabalho posterior.

 

Conclusões

 

1. Não existe, nas zonas climáticas chamadas tropicais, nem nos nativos do país, nem nos europeus, nenhuma forma patológica estranha à neuropsiquiatria de outros climas.

2. Não existe nenhuma relação entre a proporção dos casos de loucura acontecidos no Rio de Janeiro e nas outras cidades do Brasil, e as máximas térmicas das mesmas cidades.

3. Não existe nenhuma correlação entre os componentes climáticos (temperatura, estado higrométrico etc.) e o número de casos de loucura, nas regiões quentes do Brasil.

4. Nos climas quentes, as correlações das influências meteorológicas e das estações sobre os alienados apresentam, assim como nos climas frios, diferenças individuais. Não poderiam se formuladas regras gerais a este respeito.

5. A influência dos trópicos sobre o sistema nervoso dos indivíduos originários de países frios varia muito de indivíduo para indivíduo mas, na maioria das vezes, ela está ligada à maneira de viver de cada um e à organização de seu sistema nervoso.

6. Não há motivos para crer que nos climas tropicais haja uma maior frequência de psicoses ligadas à malária. Seu aparecimento nos indivíduos atingidos pelo impaludismo depende de outros fatores.

7. O clima não influi em nada sobre os sintomas das diversas psicoses. É no grau de instrução do indivíduo que reside à causa das diferenças que podem se apresentar. O descendente puro de dois caucasianos, igualmente puros, criado no interior, no meio de pessoas ignorantes, apresenta os mesmos delírios rudimentares que os indivíduos de cor desprovidos de instrução.

Quadro: Proporção das síndromes mentais observadas em 1.806 admissões no Hospital Nacional de Alienados e na Colônia de Alienados do Rio [de Janeiro], em 1904

Em 670 mulheres Em 1.136 homens Em 1.806 admissões Número de casos e percentual

Número de casos e percentual

 

Idiotia 10 (1,4%)

28 (2,4%)

38 (2,1%)

 

Imbecilidade

19 (2,8%)

81 (7,1%)

100 (5,5%)

 

Debilidade mental 11 (1,6%)

35 (3,0%)

46 (2,5%)

 

Neurastenia 4 (0,4%)

4 (0,2%)

 

Histeria 186 (27,7%)

9 (0,8%)

195 (10,8%)

 

Epilepsia 72 (10,7%)

121 (10,6%)

193 (10,6%)

 

Estados psicopáticos: degeneração 10 (1,4%)

66 (5,8%)

76 (4,2%)

B

Paranóia 4 (0,6%)

16 (1,4%)

20 (1,1%)

 

Psicose tóxica: alcoolismo 103 (15,3%)

328 (28,8%)

431 (23,9%)

 

Psicose autotóxica: puerperal 2  (0,3%)

---

2  (0,1%)

 

Psicose autotóxica: de esgotamento 8  (1,2%)

3  (0,3%)

11 (0,6%)

 

Psicose infecciosa: sífilis --- 17 (1,5%)

17 (0,9%)

 

Psicose infecciosa: varíola ---

1  (0,1%)

1  (0,05%)

 

Psicose infecciosa: beribéri

---

1  (0,1%)

1  (0,05%)

 

Psicose infecciosa: malária ---

3  (0,3%)

3  (0,15%)

 

Psicose infecciosa: febre amarela 1  (0,1%)

---

1  (0,05%)

 

Psicose infecciosa: anônima (atípica)

5 (0,7%)

22(2,0%)

27(1,5%)

Loucura maníaco depressiva 90  (13,3%)

89 (7,9%)

179 (9,9%)

 

Paralisia geral 1  (0,1%)

44 (3,9%)

45 (2,4%)

 

Demência precoce 52 (7,8%)

165 (14,5%)

217 (12,0%)

 

Demência terminal consecutiva a diversas psicopatias 64 (9,5%)

53 (4,7%)

117 (6,5%)

 

Involução senil paranóide  ---

2  (0,2%)

2  (0,1%)

Melancolia de involução --- 7  (0,6%)

7  (0,3%)

 

Demência senil 20 (2,9%)

11 (1,0%)

31 (1,7%)

 

Não-alienados  2 (0,3%)

15 (1,3%)

17 (0,9%)

Em observação 10 (1,4%)

15 (1,3%)

25 (1,4%)

 

Total

670 (100%)

1.136 (100%)

1.806 (100%)

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A seleção individual de imigrantes no

programa da higiene mental (1925) *

Juliano Moreira

* Originalmente publicado em Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, vol. 1, p. 109-115, março de 1925. A ortografia foi atualizada.

 

 Em países novos de vasto território e em via de crescimento demográfico, os problemas de higiene mental têm de estar em estreita dependência com os de imigração de gentes provindas de outras terras. O nosso Brasil, em virtude da desproporção atual entre sua população e a sua enorme superfície,há de ser durante muitos e muitos anos um país de imigração. Temos, pois, de fiscalizar os elementos

que nos chegam de todas as partes do mundo, pois não nos devemos conformar com a pouco agradável posição de escoadouro de quanto emigrado indesejável, sob o ponto de vista mental, que porventura para aqui se dirija.

De nada nos servirá envidar esforços no sentido de melhorar as condições de saúde física e mental de nossa gente, se tivermos sempre a chegar novas levas de tais indesejáveis. As medidas tomadas pelos Estados Unidos do Norte, pela Inglaterra em seus domínios, não foram mais do que a resultante da verificação da soma de males provenientes da imprevidente liberalidade com que eram recebidos os emigrantes de toda parte do mundo.

O número de criminosos e alienados estrangeiros entrados nos Estados Unidos atingiu tais proporções que foi preciso providenciar no sentido de parar a corrente perniciosa.

Sem nenhuma dúvida a história do desenvolvimento da civilização norte-americana seria apenas um estudo do processo de assimilação dos vários elementos raciais que hoje constituem a grande nação.

Contudo é inconteste que dos muitos emigrantes maus ali entrados até certa época sem nenhuma seleção, provém em grande parte o tremendo aumento de doenças nervosas e mentais ali verificado. A importância social e econômica do problema tem sido ali explanada em estatísticas dignas de estudo.

Para não citar muito, basta-me referir que o Estado de Nova York só em 1912 despendeu com os seus doentes estrangeiros nos hospitais psiquiátricos a respeitável soma de 2.579.902 dólares.

Há precisamente cem anos (1824) o Estado de Nova York introduziu em sua legislação dispositivos no sentido de impedir a entrada de alienados e atrasados mentais em seu território. Em 1838 a Comissão de Justiça do Congresso norte-americano recomendou a promulgação de leis proibitórias da entrada de idiotas, alienados, doentes de afecções incuráveis e condenados por crimes. Essa última

prescrição provinha da existência de certos países da Europa que perdoavam criminosos com a condição de emigrarem eles para os Estados Unidos. O Congresso norte-americano em 1860 não só protestou contra tais disposições, como rejeitou uma lei tendente a incrementar a entrada de gente estrangeira. Um inquérito feito pela Comissão de Imigração pôs em evidência o fato de que o grande aumento de emigrantes para o território dos Estados Unidos provinha de propaganda dos agentes das companhias de vapores e que eles só no território da Galícia austríaca chegavam a ter cinco ou seis mil sub-agentes.

Assim foi pouco a pouco a grande nação norte-americana modificando sua lei proibitiva, ate chegar às rigorosas disposições atuais. Sirva-nos, pois, de exemplo a lição que nos é transmitida por um povo que, apesar de opulento, não deixa de queixar-se das conseqüências do mal de não ter melhor escolhido em tempo os seus imigrantes sob o ponto de vista mental.

Infelizmente velhos preconceitos de raça orientaram ali as mais recentes determinações legais. É real que a grande nação norte-americana, já estando muito bem povoada, julga-se no direito de escolher muito a gente que para lá queira emigrar. Nós temos de aproveitar a lição que lá ocorreu, mas aproveitemo-la com as correções que o tempo lhe impôs: temos de adaptar os remédios às condições de receptividade do nosso organismo social. Os métodos menos drásticos nos convêm muito melhor

a nossa índole e educação e permitem em tempo acudir aos choques que por ventura sobrevenham.

Vejamos agora se em nosso país as coisas se têm passado de modo a tranquilizar-nos e eximir-nos de cogitar do problema.

Em uma estatística de dez anos (1905-1914) de pacientes admitidos no Hospital Nacional para tratamento de doenças mentais, verificamos que em 7.212 alienados homens, 2.258, isto e, mais de 31 % eram estrangeiros. Depois daquela data, a proporção tendendo a aumentar de modo assustador, achei de bom alvitre ampliar o serviço de assistência externa aos pacientes que pudessem ser tratados em domicilio, vindo apenas à consulta no ambulatório do Hospital. Da parte de parentes e amigos

dos respectivos doentes tenho conseguido o máximo de tolerância neste sentido, diminuindo assim o número de entrados não só brasileiros como estrangeiros. Além disso, recorrendo a esses parentes e amigos, assim como por vezes aos respectivos cônsules, tenho alcançado o repatriamento de muitos psicopatas (sic.) estrangeiros. Não devo ocultar que alguns destes, depois de mais ou menos longa estadia na Europa, sentindo-se curados ou apenas melhorados voltaram no Brasil e aí vão vivendo sem novas manifestações alarmantes. Sei, porém, de vários que voltaram ao Hospital e aí estão pesando em nosso orçamento de assistência a alienados. Um desses por muito desastroso merece menção especial.

Trata-se de um europeu que ao vir para o Brasil já era evidentemente um maníaco-depressivo, pois que na sua pátria havia tido duas internações. Depois da segunda internação ali, formulou ele projetos grandiosos de vir a América pôr em prática umas ideias de largo surto. Escolheu infelizmente o Brasil para execução dos planos, pois por aqui tinha parentes e amigos e havia lido algo sobre fortunas formidáveis adquiridas por patrícios seus em S. Paulo. Pouco depois de chegar ligou-se a uma patrícia viúva. Não tardou muito que lhe sobreviesse um terceiro acesso maníaco, que o trouxe ao manicômio, onde permaneceu uns meses. Teve alta. Trabalhou uns dois ou três meses, porém durante este tempo foi ter varias vezes a cadeia, porque facilmente irritável entrava com a mesma facilidade cm conflitos por motivos fúteis. Sobrevindo a guerra grande apressou-se ele em seguir para o campo de ação, onde

trocou em atos de bravura suas impulsões doentias. Se acreditarmos em suas revelações, deve ter matado muita gente sem necessidade. Feita a paz deram-lhe logo baixa. Imediatamente regressou no Brasil, trazendo a mais uma infecção luética adquirida lá e que foi logo transmitida à mulher com a qual se havia ligado e que ate hoje sofre as consequências do mal, frequentando embora assiduamente

os ambulatórios de profilaxia de doenças venéreas. Ele depois que regressou teve dois novos acessos maníacos que o trouxeram ao manicômio, onde pela violência de suas reações causou prejuízos incalculáveis em roupas e objetos, além dos feridos, guardas e doentes que por causa dele tiveram de ir aos serviços de cirurgia do hospital.

De um outro sei que em sua pátria, fora liberado condicional após o primeiro delito ali praticado e que logo emigrou para o Brasil, onde tem oscilado entre a cadeia e o manicômio, sem nenhum proveito para o país.

Temos ate hoje no Hospital Nacional um escandinavo, aliás, pertencente a família educada, que para aqui emigrou já francamente doente, quebrando pouco depois da chegada a vitrine de urna importante casa comercial da Avenida Rio Branco, e que eu já duas vezes consegui fosse repatriado pelo respectivo cônsul, mas que tem regressado, continuando a pesar sobre a nossa Assistência a tais doentes.

Dos muitos que tem vindo diretamente de bordo ou da Ilha das Flores para o Manicômio não falarei, porque apesar do prejuízo que nos trazem em sustentá-los, não são dos piores do ponto de vista eugenético, por isso que muitos desses internados logo a chegada, não tiveram tempo de deixar entre nós sucessão perniciosa.

Entre nós, como algures, aliás, não se tem meditado bastante sobre o papel valioso dos manicômios na profilaxia das doenças nervosas e mentais. As internações não previnem apenas delitos comuns, mas também os atentados contra a saúde mental da população, interrompendo a série de casos mórbidos hereditários. Tenho conhecimento de mais de uma série mórbida familiar descontinuada, graças

a internação do indivíduo propagador do mal.

Pode ser esquecido que a sequestração de um toxicômano impeça as probabilidades de procriação durante ao menos o período de impregnação que, evidentemente, é o que dá em resultado nefasto os piores produtos? E para o ambiente de família pode ser negado que o afastamento dos pacientes seja de alto valor profilático? A sequestração do toxicômano previne evidentemente muitos delitos. Bem

melhor será que ela se faça precocemente do que tardiamente. De um caso devo fazer aqui referência, embora curta. Um estrangeiro grande bebedor, de uma feita afetado de delírio de ciúmes investiu contra a mulher. Um filho do casal, rapaz de 14 anos, ao ver a violência da investida materna, pegou de um machado de cozinha que lhe estava à mão e com ele investiu sobre o pai, quase o matando. Só depois disso internaram o paciente para a cura dos ferimentos produzidos. De sua internação prolongada resultou então a cura do alcoolismo, vindo o homem a falecer alguns anos depois, por ocasião da pandemia gripal. E outros fatos poderia eu citar em prol da minha afirmativa de que os manicômios e outros estabelecimentos de assistência a psicopatas representam um papel não desprezível na profilaxia das doenças nervosas e mentais.

Que os nossos legisladores e homens de Estado reflitam um pouco sobre isto, quando lhes parecerem pesadas as verbas de manutenção dos serviços da referida Assistência.

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Os norte-americanos com estatísticas mais ou menos numerosas têm procurado estabelecer quais os grupos étnicos que fornecem maior contingente de psicopatas aos manicômios dos Estados Unidos

Da meditação severa destas estatísticas e do confronto imparcial com o que ocorre entre nós, acho que não se deve argumentar contra os emigrantes deste ou daquele povo, porque seja maior a cifra de pacientes por ele fornecidos. A questão tem de ser individualizada. Cada emigrante tem que ser examinado a parte, desde que se não possa fazer em confronto com a própria família, o que seria o ideal da seleção, porque um indivíduo, mesmo são, membro de uma família cheia de alienados é pouco

menos perigoso que um alienado no meio de urna família de sãos. Enfim, enquanto se não generalizar o uso salutaríssimo da ficha genealógica de saúde mental de cada individuo, contentemo-nos em pedir a observação de cada emigrante.

Se os bons princípios de verdadeiro internacionalismo já estivessem bem estabilizados eu pediria que os próprios países que por circunstâncias sociais de sobra conhecidas, tivessem de fornecer emigrantes também se preocupassem com a seleção física e psíquica dos que tivessem de deixar a pátria. A preocupação tinha de ser não somente a de conservar o emigrado fiel ao país de origem, mas a de que em seu novo “habitat” jamais fosse ele um eco dissonante da boa reputação da gente de seu sangue e de sua nacionalidade de origem. O bem que daí proviria para melhor aproximação dos povos seria inconteste. Se isso ao menos se fizesse no que diz respeito às intitutrices

teríamos evitado a frequência delas em nossos manicômios. Há pouco tempo em uma secção do Hospital Nacional tivemos cinco dessas infelizes que se tivessem sido bem examinadas psicologicamente antes da partida não teriam deixado os seus respectivos países, se esses já estivessem compenetrados da desvantagem de tais representantes no estrangeiro.

Enquanto não for possível o referido acordo entre as nações que fornecem emigrantes e as que necessitam de imigrantes, devemos fazer sem distinção de raça ou nacionalidade uma seleção individual o mais que possível rigorosa sob o ponto de vista mental, isto é, não devemos receber imigrantes que apresentem perturbação mental congênita ou adquirida: nenhum idiota, nenhum imbecil evidente, nenhum demente de qualquer espécie, nenhum epiléptico, nenhum maníaco-depressivo, nenhum parafrênico, nenhum paranóico, nenhum doente de qualquer outra psicose definida poderá saltar em nenhum porto nacional e se entrar pelas fronteiras terrestres deverá ser repatriado, mesmo que seja a custa da nação. Se dentro dos 12 primeiros meses da entrada do imigrante no país lhe sobrevier algum dos referidos estados psicopáticos, deverá também ser repatriado o mesmo imigrante. Nenhum estrangeiro de mais de dez anos poderá permanecer no país por mais de seis meses se não souber ler e escrever pelo menos a própria língua.

Almejo à saúde mental da nacionalidade brasileira que elementos maus não venham de países estranhos concorrer para abaixar-lhe o nível.

 

*Diretor Geral da Assistência a Alienados. Presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Presidente de honra da Liga Brasileira de Higiene Mental.


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