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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2012 - Vol.17 - Nº 12

Psicanálise em debate

PSICOTERAPIA E MERCADO

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

No último 23 de novembro, o New York Times publicou o artigo What brand is your therapist?, no qual a escritora e terapeuta iniciante Lori Gottlieb conta das dificuldades no exercício de sua profissão.

Após 6 anos de estudos e treinamento, Lori acreditava que ao se estabelecer profissionalmente logo estaria auferindo a satisfação esperada na aplicação de seus conhecimentos e recebendo a merecida remuneração que compensaria os investimentos em tempo e dinheiro despendidos nos estudos. Mas suas expectativas esbarraram com uma acabrunhante falta de clientes, que logo soube ser um problema que afligia não só a ela como a muitos colegas, até mesmo os mais antigos e veteranos. Isso se devia em grande parte à política dos planos de saúde, que deixaram de reembolsar os gastos com este tipo de tratamento ou a restringir ao mínimo o número de sessões por eles cobertas, o que não ocorria com o tratamento medicamentoso.  Só no ano de 2005, a indústria farmacêutica gastou 4.2 bilhões de dólares em publicidade direta ao consumidor e 7.2 bilhões de dólares em promoções para a classe médica – o dobro do que é gasto em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos.

Lori tomou conhecimento de que, para manter o trabalho, muitos colegas recorriam ao auxílio de marqueteiros e publicitários, cuja estratégia maior residia na criação de apelos (marcas ou brands) que dotavam o terapeuta de um diferencial que o distinguia da massa de colegas, tornando-o mais visível para o grande público.

Na opinião dos marqueteiros, as pessoas se interessariam menos pelo enfoque tradicional da psicoterapia, desejariam soluções rápidas e fáceis para seus problemas e estariam susceptíveis a propostas mais atraentes. Por exemplo, um profissional não mais deveria se apresentar como “terapeuta familiar”, o que pareceria “genérico e superado”, mas usar algo como “perito em ajudar famílias modernas a navegar na mídia digital”, alguém capaz de lidar com o cyberbullying e o sexting (palavra criada a partir de sex e texting, que designa a mania recente adotada por adolescente de postarem textos e fotos eróticas suas na internet).

Mais ainda, para não ser considerado “frio e distante”, o terapeuta precisaria mostrar-se o mais aberto possível, falando de sua própria vida. Por exemplo, deveria expor nas redes sociais, onde seus anúncios seriam veiculados, se tem filhos, se é gay, se sofre de uma doença crônica, se provém de uma família de pais divorciados, se perdeu recentemente um ente querido, se tem ou teve problemas alimentares, etc. Tais revelações proporcionariam a aproximação de pacientes com problemas semelhantes. 

Lori fica escandalizada, pois todas essas orientações vão diretamente contra tudo aquilo que aprendera na escola e nas supervisões clínicas. Tal abertura cria uma atitude sedutora de falsa intimidade do terapeuta para com o cliente, além de dificultar o estabelecimento dos movimentos transferenciais  essenciais para o desenvolvimento do processo terapêutico.

O relato tragicômico de Lori não é muito diferente do que acontece no Brasil e mostra algo que é próprio do começo da vida de qualquer profissional liberal. Mas aponta para fatores antes inexistentes, como a mudança radical introduzida no mercado pelos planos de saúde, que reduziram ao mínimo a prática privada da medicina ou da psicologia, além de ressaltar que, no campo da psiquiatria, os planos de saúde dão prioridade ao tratamento medicamentoso, muito menos custoso do que o tratamento psicoterápico.

Mas o que no relato é chamativo é a aplicação direta de apelos comerciais característicos de produtos de consumo a uma prática médica-psicológica, com o objetivo de melhorar sua posição no mercado de trabalho. 

O espírito da publicidade é negar as limitações, as dificuldades, as impossibilidades que são inerentes à vida, vendendo a ideia de que tudo é possível – desde que se consuma os produtos por ela anunciados, é claro. O objeto de consumo é um fetiche que supostamente garante bem estar imediato e definitivo àquele que o possui, protegendo-o de toda e qualquer percepção de infelicidade, incompletude e vazio. Tal ilusão não se sustenta por muito tempo, gerando frustrações que são muitas vezes confundidas com “depressões” a serem medicadas.

Assim, tratar a psicoterapia como um item de consumo não só fere a ética, que estabelece parâmetros estritos sobre como o profissional deve divulgar seus serviços, como é desastroso, pois reforça distorções da realidade que a psicoterapia tem por ofício analisar.

Seria ótimo se houvesse soluções fáceis e imediatas para os problemas que nos acometem. Mas as coisas não são simples. É por esse motivo que, ao invés de oferecer soluções mágicas ao paciente, o psicoterapeuta se dispõe a ajudá-lo a entender a complexidade de seu próprio psiquismo, sua dimensão inconsciente que abriga fantasias infantis ainda vigentes na atualidade, cujos padrões anacrônicos de funcionamento continuam a influenciar seu comportamento, seus relacionamentos pessoais e decisões sem que ele mesmo disso se aperceba. A terapia pode dar-lhe condições para lidar melhor com os impedimentos e perdas inevitáveis que a vida impõe a todos, bem como libertá-lo de inibições e medos imaginários que dificultam o exercício de suas potencialidades. Tudo isso demanda tempo e perseverança no trabalho conjunto realizado pela dupla terapeuta e paciente, mas o alívio buscado por este ao procurar a terapia não precisa esperar pelo término do processo para se fazer sentir. O poder expressar suas dificuldades, a paulatina compreensão de seus conflitos internos proporciona um progressivo domínio sobre o sofrimento e a angústia. 

Se a psicoterapia e os hábitos de consumo se constituem como mundos inconciliáveis, há uma incômoda proximidade entre as leis do consumo e o tratamento medicamentoso. Produto da poderosa indústria farmacêutica, ele disputa o mercado usando agressivamente dos recursos da publicidade, com o objetivo de induzir um consumo cada vez maior, como a pequena mostra de números citada acima evidencia. Mais ainda, da forma como muitas vezes é apresentada, a medicação em si, o próprio comprimido, aproxima-se perigosamente do objeto fetiche, do talismã cuja posse (ingestão) garante a resolução de todos os problemas.

Essas observações não implicam uma negação da grande importância da medicação psicotrópica nos distúrbios mentais. Antes se opõem aos excessos no uso deste recurso, que muitas vezes levam a uma equivocada depreciação da psicoterapia, ignorando que ela é um inestimável e insubstituível instrumento para o autoconhecimento e balsamo para o sofrimento do paciente. 

 

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 08/12/2012


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