Hilda Doolittle (1886- 1961) é uma poetisa, romancista e memorialista norte-
americana praticamente desconhecida no Brasil. Participou do imagismo,
movimento literário de grande impacto no mundo anglo-americano antes da 1.ª
Guerra Mundial e depois traçou uma rota própria pelos caminhos abertos pelo
modernismo. Incansável viajante, morou muitos anos na Europa, onde se
envolveu com a vanguarda artística, privando com gente como Ezra Pound (que
foi seu mentor e a batizou de “HD”, sigla com a qual passou a assinar seus
livros), William Carlos Williams e D.H. Lawrence. Casou-se com o poeta
Richard Aldington, com quem teve uma filha, e viveu vários relacionamentos
héteros e homossexuais até encontrar aquela que seria a companheira de sua
vida, a herdeira Annie Winifred Ellerman (“Bryher”, como gostava de ser
chamada). No Hemisfério Norte, a obra de HD foi redescoberta nos anos 70 e
80 pelos movimentos gay e feminista, que nela reconheceram elementos
precursores das importantes questões de gênero com as quais lidavam.
HD fez dois pequenos períodos de análise com Freud, em 1933 e 1934, e
registrou sua experiência em um par de textos, Advento e Escrito na Parede.
Ambos estão reunidos em Por Amor a Freud - Memórias de Minha Análise com
Sigmund Freud. Em nenhum deles o leitor encontra um relato minucioso no
qual possa satisfazer sua curiosidade sobre o andamento de uma análise ou
sobre a forma como Freud a conduzia.
Advento é a anotação bruta, não lapidada, feita por HD na vigência da análise. É
fragmentária, alusiva, críptica, impossível de ser entendida. É o testemunho
febril de alguém que está, entre assustado e fascinado, descobrindo os labirintos
do sonho, das associações, das aliterações, do conteúdo latente escondido e
disfarçado, a dinâmica de seu próprio funcionamento mental inconsciente.
Denota o esforço e o sofrimento envolvidos no trabalho de se resgatar dos
impedimentos impostos pela neurose, bem como o renascimento da esperança
de atingir a almejada meta, o “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o
universo” - já referido pelo oráculo de Delfos na Grécia antiga.
Escrito na Parede é a elaboração estética de Advento, resultando num texto
poético que bem exibe os dons literários de HD na hábil recriação do discurso
característico do processo analítico, o fluxo não linear das associações livres.
Recheado de imagens ligadas à mitologia grega, da qual era grande
conhecedora, o texto quase nada explicita sobre sua turbulenta e sofrida vida
mental.
Com sensibilidade, HD faz uma analogia da análise com a poesia A Canção de
Mignon, de Goethe (parte da obra Os Anos de Aprendizado de Wilhelm
Meister). Ali se evoca um lugar ideal (“Conheces o país onde florescem os limoeiros?”), que só pode ser alcançado com a ajuda de competente guia, no
qual o cansado viajante, após atravessar íngremes veredas e penhascos onde
mora perigoso dragão, é acolhido amorosamente (“que te fizeram, minha pobre
criança?”).
Em outro ponto, Hilda Doolittle diz que Freud “erguia dos corações mortos e
das mentes fulminadas e dos corpos desajustados uma hoste de crianças vivas”.
É uma imagem poética que sintetiza de maneira feliz o trabalho analítico. De
fato, resgatar as “crianças vivas”, simultaneamente vítimas e algozes, que vivem
no inconsciente de cada um é uma das tarefas de libertação e superação da
psicanálise.
Por Amor a Freud... traz, além dos dois textos mencionados, um adendo com a
correspondência trocada entre Freud, Bryher e HD. Dele consta ainda uma
introdução de Elisabeth Roudinesco, dando alguns parâmetros da teoria
psicanalítica sobre a sexualidade feminina.
(*) Publicado no caderno “Sabático” do jornal “O Estado de São Paulo” em
30/06/2012