Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Janeiro de 2012 - Vol.17 - Nº 1 Psicanálise em debate UM CRIADO MUITO PECULIAR (*) Sérgio
Telles Robert
Walser (1878-1956) é um escritor cujo prestígio tem crescido de forma
significativa nos últimos tempos. Tendo tido algum reconhecimento no início de
carreira, quando foi admirado por gente como Franz Kafka, Robert Musil, Bruno
Cassirer, Walter Benjamin e Hermann Hesse, entrou em relativo ostracismo ao
passar os últimos 23 anos de vida em um manicômio na Suíça, sua terra
natal. Mais recentemente inspirou
autores como J. M. Coetzee[1]
, W. G. Sebald[2]
e Enrique Vila-Matas[3],
que sobre ele escreveram ensaios ou nele se inspiraram para criar seus próprios
personagens. A
atenção que tem provocado deve-se as difíceis circunstâncias de sua vida e as
características únicas de sua obra, cuja singularidade se deve não só a uma
temática surpreendente e extravagante, a um estilo cheio de peculiaridades um
tanto bizarras, além do trato peculiar que deu ao próprio ato de escrever. Tudo
isso faz com que seu trabalho se situe no interessante e indefinido espaço
entre a produção psicopatológica e a inovação artística. Walser
era filho de um pequeno comerciante que vivia em permanente insolvência sem
poder dar segurança à família, que era considerada na ocasião, segundo Coetzee,
como “degenerada” ou “corrompida”, devido aos muitos casos de doença mental que
nela havia. A mãe de Walser era tida como louca, provavelmente sofria de
depressão grave e crônica, seus dois irmãos eram psicóticos e um deles
suicidou-se. A irmã, elemento mais saudável da casa, também teria tido
problemas emocionais. Walser
procurou trabalho em Berna, tentou ser ator em Stuttgart e em Berlin entrou
numa escola para criados, experiência que usou em Jakob von Gunten, um diário, um de seus livros mais importantes,
sobre o qual me estenderei O
início de sua doença mental se deu aos 30 anos, com um sintoma ligado
justamente ao ato de escrever. Era tomado por câimbras nervosas toda vez que
pegava a caneta, o que terminou por lhe impossibilitar qualquer escrita. Ele
mesmo disse que isso se devia a conflitos frente ao ato de escrever. Passou a
escrever a lápis, numa letra microscópica e de forma abreviada, dando a esta
forma de escrita o nome de “sistema ou método do lápis”. Após sua morte foram encontradas mais de 500
folhas manuscritas neste sistema. Pensou-se inicialmente que deveria ser seu diário
escrito num código secreto. Somente anos depois os estudiosos Werner Morlang e
Bernhardt Echte conseguiram decifrar esta escrita, realizando com isso o que
Sebald considera ser um dos maiores serviços prestados à literatura mundial nas
últimas décadas. Ao serem publicados por volta de 1970, estes textos foram
chamados de “microgramas” ou “microescritos”[4].
Coetzee comenta que esta parte da obra de Walser suscita permanente incerteza
ou insegurança no leitor, por ser fruto deste paciente trabalho de
deciframento. “O Salteador”, sua perturbadora novela na qual relata as
experiências alucinatórias, foi escrita por volta de 1925 e publicada apenas em
1972, graças a este trabalho. Na
ocasião em que criava estes “microgramas” internado em Herisau, um dos poucas
pessoas de fora da instituição com quem tinha contato era seu amigo Carl Seelig,
para quem nunca mencionou a existência destes escritos. É significativa tal
atitude, pois numa ocasião Esta
forma secreta e cifrada de produzir sua obra dá uma boa medida dos impedimentos
internos que Walser tinha de superar para poder escrever. Ao que parece, não se
sentia autorizado a pegar resmas de papel e livremente nelas escrever o que bem
entendesse, usando sua caligrafia normal. Procurava restos de papel e ali escrevia
microscopicamente seus textos. Escrevia como que desafiando uma cruel
proibição, rabiscando mensagens secretas numa linguagem cifrada e as jogando ao
mar, esperando que algum dia fossem encontradas e que alguém se desse ao
trabalho de decifrá-las, o que de fato aconteceu. Essa característica da
escrita de Walser dá especial relevo à “materialidade do texto”, à “fisicalidade
da escrita”, no dizer de Coetzee, pois muitas vezes o tamanho do papel e a
possibilidade de ser ele preenchido condicionam por completo o teor do escrito.
Sua
produção chama a atenção não só pela forma pouco usual de abordar questões
conhecidas, como também pela descrição simples e direta com a qual relata acontecimentos
inusitados. Não poucas vezes a pessoa física do autor se intromete
inesperadamente no texto, tomando a palavra do narrador ou dos personagens,
rompendo a trama e impondo a realidade factual do escritor às voltas com as
dificuldades em redigir seu texto, aquele texto. Se por um lado isso pode ser
visto como uma inovação estética geradora de efeitos cômicos, não se pode
deixar de pensar que são manifestações de uma desagregação do pensamento, uma
impossibilidade do autor em se defender de idéias parasitas que invadem o campo de forma
indesejada. Um
exemplo de comentários do escritor além e fora da narrativa: “Tudo
que é proibido ganha vida de centenas de maneiras; ou seja, tanto mais vívido se torna o que deveria estar
morto. Assim é, no atacado e no varejo. Muito bem-dito, aliás, em linguagem
cotidiana, e é no cotidiano que encontramos as verdades verdadeiras. Estou
tagarelando de novo, não estou? Admito de bom grado que sou tagarela, mas tenho
de preencher estas linhas de alguma forma. Fascinantes, deveras fascinantes são
os frutos proibidos” (p. 94/4) Coetzee
diz que a estranheza das narrativas de Walser fez Benjamin afirmar que seus
personagens pareceriam habitantes dos contos de fada depois que a história
acaba, quando o encantamento até então vigente se dissipa e eles têm de se
haver com o mundo real. Haveria neles algo de “dilacerante, inumano e
superficial”, pois, como se resgatados da loucura (ou do encantamento),
tivessem agora de andar cuidadosamente para não voltar ao estado anterior. Sebald
aproxima Walser de Gogol, propondo a idéia instigante de que ambos escrevem com
o objetivo de se despersonalizarem, de se livrarem definitivamente do passado,
de o apagarem, como se cada frase escrita por eles tivesse o propósito de anular
a anterior. Agiriam ao contrário da maioria dos escritores, que pretendem firmar
suas personalidades com suas obras Uma
outra peculiaridade de Walser decorre daquilo que Coetzee considera uma
situação lingüística sem equivalentes – o uso de uma mesma língua com dois
registros diversos. Walser escrevia Com
vários de seus livros publicados em Portugal, Jakob von Guten, um diário é a segunda tradução brasileira[5].
É episódio ficcional baseado numa experiência vivida pelo Walser, que,
envergando libré, trabalhou como criado num castelo de Dambrau na Silésia. O
livro é tido como um de seus romances mais provocadores, dado a forma
aparentemente ingênua e até simplória com que relata fatos sem grande
importância, mas que revelam, se olhados com cuidado, uma insuspeitada
profundidade. Como
indica o título, nele vamos ler as anotações íntimas do jovem Jakob, que tem
como projeto de vida se despojar de todo e qualquer desejo próprio que não seja
o de servir ao outro, a quem almeja obedecer de forma absoluta e subserviente.
Com este fim, ingressa no Instituto Benjamenta, esperando ali aprender a
receber ordens e cumpri-las sem questionamento e da melhor forma possível. No
diário anota suas reflexões e fantasias, a relação com os colegas, suas
opiniões sobre o programa de ensino e os professores, confessando grande
admiração frente ao poder e majestade do Sr. Benjamenta e sua irmã, Srta.
Benjamenta, diretores responsáveis que reinam incontestes pelos corredores e
salas da instituição. Escrito
em 1907, “Jakob von Gunten” é uma bela comprovação de que os artistas são, de
fato, as antenas da raça, como disse Ezra Pound. O aparentemente despropositado
empenho de Jakob em ser um perfeito serviçal no universo confinado e tacanho do
Instituto Benjamenta, revela-se como extraordinária percepção critica de uma
sociedade que caminhava a largos passos para a hecatombe da Primeira Grande
Guerra, que destruiria para sempre a idéia de um progresso linear, a fé na
instrução como arma contra a barbárie. O
Instituto Benjamenta é a ridicularização da idéia de que a escola é o lugar
onde o conhecimento e a cultura são transmitidos de uma geração à outra, onde
os talentos dos aprendizes são detectados e
estimulados a produzirem o melhor, gerando crescimento e autonomia para
cada um e para a sociedade como um todo.
De que adianta o longo processo educativo, se o que se aprende se
distancia radicalmente de uma realidade brutal que descamba na submissão ao Estado,
ao qual se deve servir, indo-se morrer em guerras movidas por remotas
motivações, alimentadas por irracionais patriotismos? Vai-se ao colégio para
aprender a construir o futuro ou para se submeter às autoridades? Não é melhor
simplificar, deixar a hipocrisia de lado e organizar escolas cujo objetivo
explícito seja o ensino da servidão aos poderosos da ocasião? O estranho Instituto Benjamenta é como a
grande barata de Kafka, uma imensa e complexa metáfora. A
esta leitura sócio-política do livro de Walser pode-se acrescentar o enfoque
analítico, pois a atitude de Jakob parece francamente masoquista, de completa submissão
ao desejo do outro. Ele mostra o gozo da servidão voluntária, do abdicar de
qualquer independência para garantir a proteção de um amo e senhor, figura
representativa de um pai poderoso do qual não consegue fazer o luto necessário
para ingressar na vida adulta, permanecendo uma eterna criança. Mas, ainda aí, Walser inverte o roteiro, pois
Jakob passa da posição passiva e submissa à prática de uma tirania cínica e
dissimulada com a qual triunfa sobre todos, percorrendo com isso o périplo que
vai do masoquismo ao sadismo. Coetzee
diz que Jakob von Guten é um personagem sem precedentes na literatura, dele
aproximando apenas o narrador de Memórias
do Subsolo, de Dostoievski. Pensa ainda Coetzee que Jakob von Guten teria
inspirado Kafka a criar os interceptores do
Inspetor K, em O processo. Da
mesma forma, Lucia Ruprecht[6]
acredita que um dos personagens de W. G. Sebald, o Ambros Adelwarth de Os emigrantes, teria como modelo o Jakob
von Guten. Como este, Adelwarth voluntariamente se interna numa clínica psiquiátrica
no final de sua vida, após ter sido, por um longo tempo, companheiro e criado
de um jovem milionário. Na linha próxima a que abordei, Ruprecht vê o
confinamento de Jakob no internato do Instituto Benjamenta como um projeto oposto
ao do ideal bélico da mobilização geral que logo tomaria toda a Europa. A
relação entre as duas situações se mostraria no devaneio do personagem no qual
se vê como um soldado de Napoleão, na campanha contra Moscou. A acuidade psicanalítica com que Walser
descreve determinadas situações merece ser ressaltada, como passo a fazer
agora, pinçando alguns trechos do livro. Seu
desejo de subserviência e autodegradação é mostrado já no início. Referindo-se
à escola, diz: “Aqui
se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto
Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos, todos, coisa muito pequena e secundaria
em nossa vida futura” (p. 7). Seus
conflitos identitários se explicitam quando fala do uniforme que os alunos do
Instituto Benjamenta são obrigados a usar: “Vestimos
uniformes. Usar uniforme é algo que, a um só tempo, nos humilha e enobrece.
Parecemos pessoas privadas de liberdade, o que talvez constitua humilhação, mas
ficamos bem de uniforme, e isso nos distancia da vergonha profunda dos que
andam por ai em trajes mais que próprios e no entanto sujos e esfarrapados.
Para mim, por exemplo, vestir uniforme é muito agradável, porque nunca soube ao
certo que roupa usar. Também nisso, porém, sou, por enquanto, um enigma para
mim mesmo. Talvez abrigue um ser humano
bastante vulgar. Ou talvez corra sangue aristocrático em minhas veias. Não sei. De uma coisa tenho certeza: no
futuro, o que vou ser é um zero à esquerda, muito redondo e encantador. Na
velhice terei de servir a jovens grosseirões, arrogantes e mal-educados; do
contrário, vou precisar mendigar para não perecer” (p.8). Seu
desprezo pela escola fica evidente quando diz: “Na
verdade, nós, discípulos ou pupilos, temos muito pouco que fazer, quase não nos
dão tarefa nenhuma. Aprendemos de cor as regras que aqui vigem. (...)
Conhecimentos, não nos transmitem. Como já disse, faltam professores, isto é,
os senhores educadores e professores estão ou dormindo ou mortos; ou parecem
estar mortos, ou petrificados – tanto faz, o fato é que não nos ensinam coisa
nenhuma” (p.9). Vivências
de desrealização aparecem num momento de descanso: “Durante
a hora do almoço, com freqüência me sento à toa num banco. As árvores no parque
não exibem cor nenhuma. As folhas pendem feito chumbo, desprovidas de naturalidade.
É como se, por vezes, todas as coisas se constituíssem de lata e de um ferro
fino. Depois a chuva torna a cair e molha tudo” (p. 22-3). Seu
desejo de auto-imolação e subserviência se revela como uma formação reativa
frente a insubmissão e rebeldia agressivas. São traços anais de oposição e
controle, situados na transição entre neurose obsessiva e melancolia. Apresenta
aspectos narcísicos de afastamento e indiferença pelo outro, com quem a relação
é marcada pela desconfiança, pelo desejo de enganá-lo para melhor triunfar e
tripudiar sobre ele. Muitas vezes isso é feito através do gozo masoquista de se
apresentar como um tolo. Em se fingindo de bobo e em sendo tratado como tal
pelo outro, goza por enganá-lo e sobre ele triunfar, ao mesmo tempo em que cria
uma situação para ser punido e castigado por sua própria agressão, desde que se
oferece como presa indefesa ao sadismo do outro. Ilustra assim, de maneira muito clara, a íntima
relação entre masoquismo e sadismo. Nestes momentos, Jakob von Gunten muito se
assemelha a outro grande oposicionista, o Bartleby de Mellville: “Quase
nunca me deixo aturdir ou surpreender. A
despeito das emoções a que estou sujeito, trago em mim indizível frieza” (p. 37).
(...) “Prestar serviço a alguém que não
conhecemos, que pouco nos importa, é encantador, coisa que nos descortina
paraísos envoltos em névoa divina” (p.21). (...) “Gosto de ver pessoas
adoráveis um pouco raivosas. Nada me agrada mais do que transmitir uma imagem
inteiramente falsa de mim mesmo àqueles que guardo no coração. Talvez seja
injusto, mas é ousado e, portanto, apropriado. É verdade que, no meu caso, esse
comportamento é um pouco doentio. Eu, por exemplo, acho de uma beleza indizível
morrer tendo na consciência o peso de haver ofendido e impregnado de opiniões
ruins a meu respeito aqueles que mais amo neste mundo. Isso ninguém saberá
entender, a não ser os capazes de sentir um calafrio de beleza na prática da
teimosia, em ser do contra” (p. 24). (...) “Eu percebi com toda clareza, mas
agradava-me que ela me tivesse por bobo. Que singular depravação: alegrar-se em
segredo com a possibilidade de perceber que se está sendo surrupiado” (p. 25). (...)
“A interdição de certas coisas é por vezes tão encantadora que não se tem como
não fazê-las. É por isso que todo tipo de obrigação me é cara: porque me
possibilita a alegria da transgressão. Se não houvesse nenhum mandamento neste
mundo, nenhuma obrigação, eu morreria, pereceria de inanição, me estropiaria de
tédio” (p. 26). (...) “É estranha essa
vontade que sinto de provocar explosões de raiva nos poderosos. Será que, na
verdade, desejo ser castigado por este Sr. Benjamenta?” (p.40 -41). (...) “Eu,
justamente, é que preciso aprender a sentir admiração e respeito confiante
pelas coisas do mundo; do contrário, onde vou parar, se me permitir
desrespeitar os mais velhos, negar Deus, zombar das leis e enfiar meu nariz juvenil em tudo quanto é sublime,
importante e grandioso?” (p. 59). (...) “Tudo que não é permitido, que sou
obrigado a conter, me faz gosto. O que foi reprimido se torna mais penoso, mas,
ao mesmo tempo, mais valoroso também. Sim, sim, eu confesso: gosto que me
reprimam. E, aliás... Não, chega de aliás. Que o Sr. Aliás vá passear. O que eu
queria dizer é: não poder fazer uma coisa significa fazê-la em dobro em alguma
outra parte” (p. 94-5). Sua
sexualidade ambígua o faz entrar num jogo sedutor simultaneamente com a Srta
Benjamenta e o Sr. Benjamenta. Provoca o diretor com o desejo secreto de ser
punido por ele, em claro masoquismo erógeno que vai se insinuando até a franca
paixão homossexual: “Sim, esse homem me encantou, ele me
interessa. Também a professora me desperta profundo interesse. Sim, e é por
isso, para descobrir alguma coisa em todo esse mistério, que o provoco, para
ver se lhe escapa alguma observação descuidada. Que mal faz se ele me bater?
Minha vontade de descobrir coisas adquire contornos de uma paixão dominadora, e
a dor que a irritação deste estranho homem me causa é pequena, comparada ao
desejo fremente de induzi-lo a se abrir um pouco comigo. Ah, até sonho com isso
– que coisa mais magnífica: apossar-me da impetuosa confiança deste homem. Bem,
vai levar ainda um bom tempo, mas acredito, sim, acredito que vou conseguir
penetrar enfim no mistério dos Benjamenta. Segredos dão a pressentir uma magia insuportável, exalam perfume muito
belo, indizivelmente belo. Quem sabe, quem sabe? Ah... “ (p. 41). À
medida em que constata a eficácia de sua sedução e com isso passa a ter acesso
a todas as dependências da instituição, inicia-se o processo de desidealização:
“Sim,
os aposentos interiores tinham vida, e agora me foram quase roubados. A parca
realidade: que tremenda ladra ela às vezes é. Rouba coisas com as quais,
depois, não se sabe o que fazer. Ao que parece, diverte-se espraiando melancolia.
Melancolia que, aliás, torno a querer bem e que me é muito, muito valiosa.
Porque forma” (p. 120). Walser
dá uma possível pista sobre a conduta sado-masoquista de Jakob. Talvez venha da culpa pela violência contra o
irmão a necessidade de punição que se expressa na impossibilidade de crescer. A
confissão de Jakob de que “abriu um buraco na cabeça do irmão” adquire uma nova
significação quando lembramos que Walser tinha dois irmãos psicóticos (um deles
suicida), pois talvez ecoe sua própria culpa
frente a doença deles: “Na
verdade, nunca fui criança, razão pela qual acredito piamente que vou carregar
comigo algo de infantil. Cresci, é verdade, tornei-me mais velho, mas minha
essência não mudou. Travessuras tolas ainda me dão tanto prazer quanto davam
anos atrás, mas aí é que está: na verdade nunca fiz travessuras tolas. Ainda
bem pequeno, abri um buraco na cabeça do meu irmão. Mas isso foi um
acontecimento, e não uma tola travessura. (...) Que feliz sou eu por não conseguir
enxergar em mim nada que seja digno de atenção ou contemplação! Ser e permanecer
pequeno. E caso uma mão, circunstância ou onda me erguesse e carregasse até o
primado do poder e da influência, eu destruiria as relações a me privilegiar e
me precipitaria rumo à escuridão rasteira e insignificante. Só nas regiões
inferiores consigo respirar” (p. 131). Uma
derradeira observação sobre a questão educacional implícita na obra de
Walser. Sob o prisma da psicanálise, o
processo educativo – além da transmissão de conhecimento - se alinha entre os
principais procedimentos repressivos das pulsões agressivas e sexuais,
imprescindíveis para a viabilização da convivência social. Por isso mesmo
auxilia indiretamente no momentoso trânsito psíquico entre o princípio do
prazer (agir em função da busca imediata de satisfações) e o princípio da
realidade (compreender que as satisfações devem ser adiadas até que possam ser
realizadas sem que isso coloque em risco nossa segurança). Apesar
dos avanços realizados, a educação continua basicamente focalizada nos aspectos
cognitivos racionais conscientes da mente, ignorando a dimensão inconsciente
descoberta por Freud. Isso significa que frente aos fortes sentimentos que nos
inundam (ainda mais quando somos crianças), como medos, angústias, ódios, ciúmes,
invejas, necessidade de dar e receber amor, o máximo que a escola faz é
estabelecer os já referidos limites repressivos através da coerção física e da
transmissão de princípios éticos, morais e religiosos. Nem sempre estas medidas
são eficazes, resultando que no final cada um de nós vai ter de aprender a
lidar sozinho com seus próprios demônios. Esta educação favorece a
concomitância de aspectos cognitivos conscientes racionais que podem ser
extraordinariamente desenvolvidos e uma gritante imaturidade emocional, um
infantilismo afetivo - combinação neurótica que impede um manejo adequado da
realidade. Todos conhecemos exemplos dessa discrepância interna, vivenciada em
nós mesmos ou percebida em pessoas de nosso entorno, públicas ou privadas. Recentemente
dois casos ilustram bem o que estamos comentando: Paloci e Strauss-Kahn. Como entender que homens como eles, cuja
inquestionável inteligência se evidencia no fato de terem chegado ao topo do
poder, possam ter agido de forma tão estúpida, colocando a perder a posição
pela qual seguramente se empenharam ao máximo para conseguir? Na ausência de
explicações lógicas, podemos evocar duas hipóteses psicanalíticas. A insolência
do narcisismo onipotente reforçado pelo exercício do poder, a crença na
impunidade, o se crer acima da lei. Ou um ignorado desejo autodestrutivo,
secretas culpas que impossibilitam o usufruir daquilo pelo qual tanto se lutou. (*)
Publicado na revista Percurso, n. 45, junho 2011, p. 135-140 [1] Coetzee, J. M. - The
genius of Robert Walser - The New York Review of Books, November 02 2000,
na rede em 14/06/2011 em http://www.nybooks.com/articles/archives/2000/nov/02/the-genius-of-robert-walser/ [2] Sebald, W.G. – O passeador solitario – Em memória de Robert Walser – Serrote, vol. 5. Julho 2010, p. 85-107 [3] Vila-Matas, Enrique – Doutor Pasavento – Editora Cosac Naif, 2010, São Paulo [4] Fragopoulos,
George – Toward the Sanitarium – The
Walser’s Microscripts – [5] A primeira foi seu romance O
ajudante, traduzido por José Pedro
Antunes e publicado pela Arx / Siciliano, São Paulo, 2003. [6] Ruprecht, Lucia – “Virtuoso servitude and
(de)mobilization in Robert Walser, W.G. Sebald and the brothers Quay” –
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