Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8 Psicologia Clínica CONSTRUCIONISMO SOCIAL: ALTERNATIVA TEÓRICA PARA PRÁTICAS EM PSICOTERAPIA Braz Dario Werneck Filho O objetivo deste trabalho é apresentar o Construcionismo
Social como uma postura teórica relevante no campo das psicoterapias.
Considerando a importância da Linguagem na construção de todos os significados
e da crítica da realidade oferecida pela Ciência positivista, procuramos
elaborar uma proposta de oferecimento dessa postura teórica que vem conseguindo
resultados interessantes no processo de psicoterapia individual e terapia
familiar. Feito isso, passamos à exposição de um caso clínico, com o objetivo
de ilustrar as dificuldades exploradas pelo terapeuta com uma postura
construcionista: dificuldades relativas aos procedimentos clínicos e às
premissas teóricas no trabalho Descritores:
construcionismo social, psicoterapia, saúde mental O Construcionismo
Social desponta no meio das práticas clínicas emergentes do final do século XX
e do início século XXI como uma perspectiva teórica que lança seu foco sobre
processos relacionais e discursivos a partir dos quais as pessoas constroem a
si mesmas e o mundo em que vivem (Guanaes, 2006). Em minhas pesquisas sobre o
Construcionismo Social, pude constatar que duas ideias apareciam de forma
contundente em todos os autores que propunham uma conceituação. Para a
conceituação que propomos neste trabalho, basearemo-nos então nestas duas
concepções. A primeira diz respeito ao lugar
ocupado pela linguagem nas concepções teóricas do Construcionismo Social
(Guanaes, 2006; Rasera & Japur, 2007). Pode-se dizer que a linguagem - em
sua relevância nas práticas discursivas, sociais e culturais - ocupe lugar de
destaque nas concepções construcionistas (Guanaes, 2006). Em outras palavras,
todas as realidades são construídas socialmente, e o campo ambiental de tais
construções é a linguagem. Como segundo ponto, que tem direta relação com o primeiro, traz-se aqui
o caráter de crítica das verdades oferecidas. O próprio Construcionismo Social,
inclusive se propõe a uma reflexividade, ou seja, uma autocrítica permanente.
Nesses complexos moldes conceituais, o Construcionismo surge como alternativa à
forma cientificista de relação com o conhecimento, trazendo uma proposta
diferente daquela de acessar as verdades e as informações corretas, por meio do
conhecimento empírico (Grandesso, 2011). Esta proposta move para o campo da
construção a própria verdade, as teorias etc. Por conta desses e de outros
fatores, observamos que conceituação do Construcionismo Social é complexa, não
está terminada e possui várias dimensões que devem ser consideradas. A definição se torna difícil posto
que não se tenha chegado, ainda hoje, a uma definição única e amplamente aceita
sobre o termo, tal como ressaltam Rasera & Japur (2007). Segundo estes
autores, assumir que não haja uma definição melhor, dentre as tantas que
existem, se mostra a postura mais eficaz. Nas palavras de Guanaes (2006): É
importante ressaltar, contudo, que o termo construcionismo social não traduz um
campo homogêneo, constituído por estudos que partilham o mesmo conjunto de
sentidos. Ao contrário, existe uma grande variedade de propostas
construcionistas, nem sempre concordantes entre si. (p. 23). Talvez a dificuldade de uma conceituação esteja mesmo coerente com a
proposta construcionista, que versa sobre uma importância maior dada aos
processos conversacionais e à relação que se estabelece nos encontros
terapêuticos do que às conclusões que possam ser alcançadas. A discussão, o
modo como ela acontece, o contexto criado por pacientes e terapeutas no
consultório são os fatores mais importantes. Nessa situação, nesse contexto
construído, acredita-se que novos significados serão erigidos. Um conceito puro talvez esteja na contramão do processo
construcionista. Grandesso (2000) e McNamee (2003) são referências para as
palavras de Guanaes: De
certo modo, a busca pela pureza conceitual e por uma delimitação rígida desses
campos de investigação acaba contribuindo mais com o fechamento de
possibilidades de diálogo do que com a troca de conhecimento entre grupos que
têm, na maioria das vezes, interesses comuns (ibidem; p. 24). Não cabe no pensamento
construcionista uma definição concreta e imutável sobre as coisas. Cabem sim,
perguntas, às vezes desconcertantes sobre as concepções vigentes, que trabalham
com a ideia de uma verdade factual independente dos contextos onde surge. Assim, qualquer proposta ontológica
definitiva sobre o Construcionismo, será contrária à concepção central de que
todos os significados são construídos socialmente por meio da linguagem e devem
ser contextualizados para que sejam avaliados e trabalhados de modo a ampliar
possibilidades. No campo clínico, acreditamos que
esta postura venha provocando mudanças importantes de cunho teórico e prático.
De acordo com as ideias expostas até aqui, no trabalho inspirado pelo
Construcionismo Social, podemos encontrar o estímulo a uma crítica curiosa das
informações que outrora seriam inquestionáveis. Uma das mais contundentes mudanças que as ideias
construcionistas acarretaram na clínica, são observadas na terapia familiar de
família, com o advento da Equipe Reflexiva, que emergiu dos trabalhos de Tom
Andersen (1991). Na terapia Familiar, por ele conduzida, depois de um longo
tempo de germinação, segundo Andersen “a própria ideia forçou seu
nascimento” (ibidem; p. 33). Após várias situações de hipóteses e incômodos
pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado
momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de
interação com a família, no mesmo ambiente. O contexto
clínico do surgimento da Equipe Reflexiva foi marcado por uma mudança
paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele
observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse
momento divisor de águas. A partir de então, surge a prática da Equipe Reflexiva que, presente no consultório, num momento em que é solicitada pelo terapeuta de campo, faz uma reflexão sobre o que ouviu até ali. Espera-se que esse momento seja uma diferença facilitadora da mudança. Essa crítica
curiosa, proposta a partir do Construcionismo tem como uma das bases a crença
de que os significados, as verdades humanas sejam variáveis dependentes do
discurso, das conversações, enfim, da linguagem. Tal posicionamento possibilita
ao terapeuta construcionista considerar em sua avaliação e em todo o seu
procedimento num caso clínico, as variáveis relacionadas ao ambiente construído
a partir das práticas discursivas. Ressaltamos que esta proposta só faz
sentido se pensada a partir daquele que busca o conhecimento e a articulação,
neste caso, o construtor deste trabalho. Consideramos que esta postura esteja
de acordo com as propostas que encontramos na literatura sobre o
Construcionismo Social. Não propomos aqui uma generalização didática, mas a
exposição e discussão de experiências que podem vir a ser relevantes. Na questão sobre relativização da
realidade, observamos o Construtivismo despontar com alguns pontos de partida
epistemológicos próximos aos do Construcionismo. Essas duas linhas de
pensamento têm em comum a ideia de que não exista realidade independente do
observador. O Construtivismo vai oferecer a oportunidade de pensarmos sobre
como se produz o conhecimento. O Construtivismo teve uma importante
função no advento da pós-modernidade, que foi afastar a terapia familiar de sua
crença na objetividade, e sua consequente busca pela verdade (Nichols, 2007). Do ponto de vista clínico, podemos
observar que o Construtivismo e o Construcionismo compartilham ideias como a
importância maior dada ao cuidado do que à cura, ou ainda a ideia de que o
terapeuta passe a ocupar um lugar de parceria com a família - se afastando da
ideia de perito (ibidem). Considerando as semelhanças e o
ambiente epistemologicamente complexo onde afloraram os dois referenciais
teóricos, verifica-se a dificuldade de uma distinção conceitual clara e
objetiva entre eles. Para este trabalho, embora seja
importante considerar as duas concepções como tangenciais, assume-se a postura
de Gergen, quanto ao aspecto positivo de se marcar alguma diferença inteligível
entre elas. Nas palavras de Rasera e Japur: O
próprio Gergen (1997) aponta que, em relação, especificamente, ao
construtivismo social, é possível reconhecer uma semelhança no que se refere à
visão do conhecimento como determinado por processos sociais, tal como no
construcionismo. Contudo, os autores do construtivismo social ainda pensam o
mundo mental como um objeto específico, diferentemente do proposto pelo
construcionismo (2007; p. 26). Caminhar na direção de estabelecer
alguma diferença, também foi o processo escolhido por Nichols (2007), quando
fala do momento de encontro entre o Construcionismo Social e a Terapia
Familiar. Em suas palavras: O
construtivismo concentrou-se em como os indivíduos criavam sua própria
realidade, mas a terapia familiar sempre enfatizou o poder da interação. Como
resultado, outra psicologia pós-moderna, chamada construcionismo social, agora influencia muitos terapeutas
familiares (p. 287). O ponto ressaltado como diferença
entre as duas correntes pode ser tratado como crucial em termos filosóficos, o
que provavelmente trará repercussões práticas. No caminho para a compreensão das
práticas orientadas pelo Construcionismo Social, acreditamos ser importante,
além das formulações teóricas, uma contextualização histórica. Considerando os acontecimentos de
repercussões mundiais da segunda metade do século XX, em relação aos paradigmas
científicos e filosóficos, constrói-se uma premissa norteadora para as origens
do Construcionismo Social. Pensamos que a ideia da pós-modernidade[2]
possa servir como uma ferramenta a mais para a compreensão do Construcionismo
Social. Consideramos que partir de uma atitude norteada pelas concepções
pós-modernas, como a flexibilidade quanto à verdade e às conclusões, por
exemplo, venha a ser um facilitador para o entendimento das propostas
construcionistas. Tentamos adiante situar o Construcionismo Social em meio às mudanças
paradigmáticas ocorridas no mundo e que possam servir de ambiente para que a
forma construcionista de pensar tenha se edificado. 2 – Contextualização histórica na
pós-modernidade Não é só a
conceituação do Construcionismo Social que se apresenta de forma complexa, mas
também a questão de sua origem merece uma abordagem centrada na
contextualização. É difícil precisar a origem do
Construcionismo Social, posto que ele desponte a partir de um conjunto de
fatores históricos, culturais, filosóficos e sociais. Além disso, a dificuldade existente
em conceituar e em precisar a origem do Construcionismo parece ter influência
na forma como ele é concebido teoricamente. A questão da origem e da dificuldade
para que se estabeleça um ponto-zero
é apontada por Guanaes (2006): Muitos
situam o artigo de Gergen (1985) the
social constructionistmovement in modernpsychology, publicado pela revista American Psychologist, como precursor do
movimento construcionista social nesse campo, sobretudo Como introdução teórica e epistemológica, a ideia de uma definição
complexa para o Construcionismo favorece a concepção de um percurso conceitual
diferente dos caminhos científicos tradicionais. Assumindo esta direção
alternativa, deparamos com as diferenças relacionadas à origem. Segundo Gergen (in Grandesso, 2011),
os históricos debates entre correntes ligadas ao empirismo e ao racionalismo se
constituíram nas raízes do Construcionismo social. Esse autor afirma que a
intenção construcionista “é ir além do
dualismo, colocado por essas duas escolas, entendendo o conhecimento como construído no processo de intercâmbio
social” (ibidem, p. 85). Encontramos em Gergen também, a ideia de que
a busca de origens precisas para o Construcionismo seria infrutífera, dado o
teor de significado construído socialmente, mesmo nas teorizações sobre o
Construcionismo (ibidem). Pelos motivos expostos até aqui,
buscamos ressaltar a proposta deste trabalho de estabelecer não a origem,
mas o contexto histórico em que emergiram as propostas e práticas
construcionistas. O Construcionismo Social emergiu num
momento histórico especialmente rico e aquecido – a segunda metade do século XX
- e vem se reconstruindo em suas concepções até os dias de hoje. Nessa época
foi possível observar em várias áreas, formas de reação a uma concepção
científica que buscasse a verdade absoluta. Grandesso (2011) considera que a
virada pós-moderna, no que se refere ao conhecimento, vem se consolidando a
partir desse contexto, sobretudo a partir de 1970. Para relacionar o contexto da
pós-modernidade às concepções que norteiam o Construcionismo Social, propõe-se
a visita alguns argumentos. Inicialmente, chama-se atenção para
o ambiente filosófico-científico efervescente da segunda metade do século XX.
Nas palavras de Grandesso: Impulsionados
pelos neokantianos e a nova física de Heinsenberg, no início do século XX, já
não se podia apoiar nos parâmetros para o pensamento certo e seguro que, desde
o século XVII, norteava a produção do conhecimento válido. Um dos pontos
centrais para o abandono do pensamento moderno tem sido a ideia de que a
compreensão humana é uma construção negociada entre as redes conceituais das
pessoas e suas transações no mundo (Polkinghorne, 1995), abandonando, assim, a
dualidade indivíduo-mundo. (2011; P. 57). Além disso, nesse contexto e a partir da ideia de que as formas de reação
ao objetivismo, empirismo e racionalismo puros formaram base para novos
paradigmas em várias áreas (Nichols, 2007), observamos as primeiras
manifestações que se poderiam chamar de construcionistas. Outro argumento a respeito da pós-modernidade e suas implicações nos
convida a refletir sobre a concepção do que venha a ser uma teoria. Segundo
Guanaes (2006), a teorização, a partir de um enfoque moderno, levava ao alcance
da condição de representação da realidade. As teorias buscavam a fidedignidade,
a explicabilidade etc., em acordo com o método científico. Alternativamente, a perspectiva construcionista tem como uma de suas
características, outra proposta para esse entendimento. Para Guanaes (ibidem),
sob a ótica construcionista, “as teorias
não representam a verdade sobre o mundo e as coisas, pois são construções
sociais, fruto da negociação de sentidos em contextos particulares” (p.
24). A autora ressalta ainda o caráter discursivo da construção de verdades,
que adquirem o seu poder a partir da legitimação dada por grupos sociais. Um aspecto a ser ressaltado é que a proposta construcionista fundou-se
como produto e como produtora de mudanças paradigmáticas. Este detalhe é
ressaltado também por Guanaes (2006): O
construcionismo constitui-se, portanto, também uma construção social, um
discurso possível (ou vários, considerando sua multiplicidade) entre tantos
outros (McNamee, 2003). Sua principal diferença em relação a outros
diferenciais é que, não clamando para si o status de verdade, ele se coloca
naturalmente em uma posição autorreflexiva, de crítica de suas próprias
descrições, mantendo-se atento aos valores que sustentam os seus pressupostos
e, sobretudo, aos efeitos que suas descrições geram na criação de práticas
sociais. (p. 26). Alguns dos principais efeitos práticos vêm sendo observados e
experimentados no ambiente da psicoterapia e da terapia familiar. O pressuposto de que a linguagem e as construções de discurso tenham
papel crucial nas questões vivenciadas por nossos pacientes vem promovendo concepções
diferentes sobre o lugar do terapeuta, a forma de se fazer terapia e o objetivo
de um encontro terapêutico, entre outras coisas. Não nos parece exagero dizer que a busca por respostas seja uma
característica facilmente observável no ser humano. A ciência e seus avanços,
principalmente no início do século passado, pareceram transmitir o sentimento
de que as verdades sobre as coisas estariam como que a esperar para serem
descobertas por meio da mensuração objetiva (Nichols, 2007). A ciência positivista parece ter
contribuído para a construção da ideia do empirismo como fonte do conhecimento
genuíno. Isto, caso pensemos nos fundamentos racionalistas do conhecimento
sobre os quais nos falam Gergen e Warhuus (in
Gonçalves e Gonçalves, 2001). Segundo esses autores, nesse contexto eram
construídas também as orientações terapêuticas. Os fundamentos racionalistas estariam ligados à ideia de que, a partir
de uma observação rigorosa e contínua, seria possível chegar à verdade dos
fatos. Ainda para o caso específico das práticas terapêuticas, essa concepção
seria formadora de critérios que permitiriam a escolha da prática mais indicada
para tratar várias formas de ‘anormalidades’ (ibidem). Vale, no entanto, ressaltar que, se a forma cientificista de tentar compreender
o mundo fosse concretamente uma forma desumana, ineficaz, ou contraproducente,
provavelmente não teria se mantido inquestionável por tanto tempo. A crítica que surge com o Construcionismo, aparece, segundo a maior
parte de seus autores, com o teor de proposta, de alternativa. Sendo assim,
parece-nos coerente com uma perspectiva construcionista reconhecer a eficácia
do cientificismo, quando consideradas as formas narrativas que mantenham o
sentido do discurso científico. Segundo Nichols (2007), sob o prisma da busca de verdades e da
identificação objetiva de problemas a serem resolvidos, especificamente no
campo da terapia familiar, a clientela era trabalhada a partir de uma
perspectiva que os considerava como sistemas a serem reprogramados. Nesse ambiente, tínhamos o terapeuta como uma espécie de perito, que
era o responsável pela utilização de esquemas estruturais e estratégicos
escolhidos por ele, para descobrir e consertar o que estivesse apresentando
defeitos (ibidem). Chamamos a atenção para a mudança ocorrida em certo momento no valor
dado às informações recebidas. As informações que tivessem embasamento
científico seriam as mais aceitas como verdade, gozando de alguma
fidedignidade. Segundo Guanaes (2006), podemos observar como nossa relação com o mundo
é orientada pelo que falamos desse mundo, pela forma como construímos
explicações sobre o que as coisas são. Tais explicações podem ser uma classe de
informações fidedignas. Nichols (2007), no entanto, alerta para o tal momento em que as explicações
e as verdades únicas começaram a ser questionadas, até mesmo cientificamente. A Teoria da Relatividade de Einstein destruiu inúmeras certezas. As
ideias de Marx desafiaram a concepção de que uma classe social poderia dominar
outra, além doe outros eventos científicos, artísticos, sociais etc. A história mundial conta um
capítulo à parte nos anos sessenta do século XX. O movimento de maio de 1968,
na França; o enfrentamento das ditaduras militares em vários pontos do mundo,
inclusive no Brasil, manifestações artísticas esteticamente contrárias ao que
era imposto como verdade absoluta formaram um terreno fértil para concepções
que viriam a romper com o status quo.
Esse foi um momento representativo do que neste trabalho chamamos de
pós-modernidade. Consideramos que o referido momento, que teve reflexos em todas as
manifestações humanas na segunda metade do século XX, rompeu com dogmas
cristalizados em relação ao que deveria ser aceito, ao que era certo, ao que
era direito. Práticas até então aceitas foram desconstruídas, como se tivessem sido
desmascaradas, pois foram trazidas à tona “convenções
sociais criadas a partir de intenções pessoais” (Nichols, 2007). Ainda segundo Nichols, uma pergunta realmente intrigante e pós-moderna
foi cunhada durante esse período: fomos além de duvidar do que se nos era
oferecido como verdade, chegamos ao ponto de questionar se era possível, mesmo
num futuro distante, conceber a ideia de chegar à verdade absoluta (ibidem). Este questionamento contribuiu para a construção de formas de pensar e
de falar sobre o mundo que não tivessem como objetivo principal o alcance de
uma verdade absoluta. O Construcionismo Social, então, como prática
construtiva, conversacional e relacional começou a se destacar, assim como
outras manifestações pós-modernas. 3. Caso Clínico: que linguagem é essa? O meu trabalho com
Eduardo começou por uma demanda familiar para seu tratamento individual. Ele
tinha 40 anos, era solteiro, tinha dois filhos que moravam com a mãe. Morava
com seu pai que era viúvo já havia dez anos. Tinha dois irmãos mais velhos, um
com 44 e outro com 46 anos. O mais velho era casado, tinha três filhas e morava
em outra cidade; raramente visitava a família. O irmão do meio morava no mesmo
bairro com a esposa e seus filhos. O pai era advogado e
tinha 73 anos e era quem se responsabilizava totalmente por Eduardo. Eduardo tinha sido diagnosticado com
Esquizofrenia Paranoide dois anos antes. O momento era de negatividade total
quanto ao tratamento. O paciente dizia que não iria mais ao consultório, nem
faria nenhum outro tipo de tratamento “porque nada adiantava, ele estava
perdido de qualquer jeito e iria morrer em breve” (sic). Ele se mantinha no
quarto, com janelas e cortinas fechadas e começava a recusa ao banho e aos
alimentos. Perdeu dezoito quilos em quatro meses e sua rotina se resumia a
ficar trancado no quarto, falar com as pessoas que iria ser sequestrado e
morto, comendo muito pouco e com muita dificuldade. De acordo com o relato de seu pai,
Eduardo e os irmãos tinham sido grandes jogadores de futebol na infância e
adolescência. Chegaram a jogar futebol de salão pelo Flamengo e só pararam
quando foram reprovados em duas ‘peneiras’[3]
consecutivas. Eduardo seguiu jogando o futebol de salão até os 18 anos, quando
começou a se interessar por música e pintura. Desenhava bem, e aprendeu a tocar
teclado. Durante dois anos, engajou-se no projeto de gravar um disco e de fazer
uma exposição de quadros. Com a ajuda financeira do pai, conseguiu fazer as
duas coisas. Durante os dois anos em que esteve
ligado aos seus projetos, o pai conta que Eduardo começou a apresentar sinais
de isolamento e alguma agressividade, ao que os outros denominavam como “traços
de personalidade artística” (sic), não dando maior atenção, pois a vida da família
continuava normalmente. A situação só despertou algum
espanto quando Eduardo passou a querer vender os seus discos na rua e começou a
incomodar as pessoas do bairro com sua abordagem. O comportamento se tornou
bizarro a ponto de ele ser internado por seis meses. Já na primeira internação, ele
recebeu o diagnóstico de Esquizofrenia. O pai fez questão de tratar o assunto
com médicos conhecidos, “para que o melhor tratamento fosse dado ao filho”
(sic). Durante quinze anos, o tratamento funcionou e Eduardo teve a vida
estabilizada, sem internações. Conheci Eduardo quando de sua
segunda internação. Ele passou quinze dias num hospital psiquiátrico e saiu
para iniciar o tratamento de Acompanhamento Terapêutico comigo e minha equipe. A primeira coisa que fizemos após o
primeiro atendimento a ele foi conversar com o pai e tentar conversar com os
irmãos. O pai se mostrou totalmente cooperativo com a ideia de um atendimento
domiciliar para Eduardo. Começamos a participar do quotidiano do paciente. A
negatividade era relacionada a tudo o que lhe era oferecido. Com a ideia de
tentar promover um novo movimento na casa, começamos a incluir a empregada em
nossos atendimentos. Eduardo, a essa altura, só se alimentava ingerindo
líquidos, e continuava a perder peso. O novo psiquiatra mudara a medicação, mas
advertira que levaria pelo menos dez dias para que algum efeito terapêutico
fosse observado. A nossa atenção, a partir de
encontros com o médico do caso, voltou-se para o chamado pragmatismo do
paciente e para as questões que pareciam emergenciais naquele momento. O médico
estava preocupado com a perda de peso de Eduardo, e disse que, se ele não
voltasse a se alimentar, teria que ser internado. Durante dez dias nada funcionava.
Qualquer estratégia ou técnica motivacional que utilizássemos era vencida pelo
negativismo dele. Num dado momento, decidimos que o trabalho não poderia
continuar daquela forma. Quando o colega que atendia o caso comigo chegou lá,
definiu que Eduardo iria tomar banho naquele dia e que depois os dois iriam
sair, porque tinha que ser daquele jeito e não havia alternativa. Com muito
medo, Eduardo tentou argumentar, mas o terapeuta se manteve mais rígido do que
ele e nada respondeu. Depois de dez minutos olhando fixamente para os olhos de
Eduardo sem dizer palavra, Eduardo cedeu. Levantou-se da cama e foi para o
banheiro. Após o banho, lanchou e saiu cm o terapeuta para a caminhada que
havia sido planejada. A partir desse dia, apesar de não
ter sido fácil, tornou-se possível o trabalho de movimento com o paciente. Ao
longo do tempo, a vinculação que tinha com a equipe aumentava e sua confiança
crescia. Aos poucos, fomos observando os efeitos que o médico esperava com a
medicação, e pudemos investir em atividades externas. Em cerca de seis meses de
atendimento, o paciente tinha voltado a comer normalmente – tendo recuperado os
dezoito quilos que perdera - e a sair de casa para o tratamento e coisas do
quotidiano. Ao longo de conversas sobre a
evolução do caso, nós terapeutas e o psiquiatra chegamos à conclusão de que o
modo como o terapeuta atuou no dia em que não deu alternativas a Eduardo foi
determinante para uma mudança de postura do paciente. O médico chegou mesmo a
dizer que, se não fosse a intervenção feita daquela maneira, possivelmente a medicação
não teria surtido o efeito desejado. Discussão A primeira pergunta
que me vem à mente por ocasião da escolha deste caso clínico é: por que eu o
escolhi para este trabalho? Não foi uma atuação terapêutica nos moldes
construcionistas; não houve um espaço de conversação estimulado em primeira
instância; o terapeuta agiu pelo paciente, determinando o que o paciente faria,
sem aceitar outra hipótese. Segundo o que acredito, este caso
contribui para que vejamos a importância da sintonia na comunicação entre
terapeuta e paciente. Não era mais importante o Construcionismo Social, a
abordagem terapêutica de origem do profissional ou o conhecimento teórico sobre
Esquizofrenia. O que estava latejando naquele momento era a dificuldade de
movimento que uma pessoa apresentava e a impossibilidade de sair daquela
condição sem ajuda. Ficava óbvio que aquele era um movimento de autodestruição
e, muito pior, o paciente não queria morrer ou sucumbir – como geralmente
observamos em quadros depressivos graves – ele estava sim, com muito medo. Considero que o viés afetivo para o
tratamento tenha sido o grande achado de nossa equipe. Foi como se tivéssemos
que assumir as coisas por ele, que estava existencialmente tão deteriorado, que
nada mais conseguiria fazer. Se esperássemos que ele dissesse o que poderia ser
melhor pra ele naquele momento, ou que uma conversa acontecesse para que outras
possibilidades fossem criadas, talvez não tivesse havido mudanças. Parece-me que a conversação com
Eduardo, naquele momento, foi uma conversação de outra ordem. Uma conversação
que pode nos parecer bizarra, por ser tão diferente de um diálogo respeitoso,
linear e equilibrado. A observação do resultado, no entanto, nos mostra como
aquele momento foi significativo pra o paciente. Já tentáramos convidar,
argumentar, explicar as necessidades de uma mudança em seus hábitos, mas nada
funcionara. Tínhamos feito tudo o que a orientação pra o tratamento de um
esquizofrênico mandava. Mas precisamos parar de tentar estratégias orientadas
pelos livros e por nossas ideias anteriores, para olhar em direção a Eduardo e,
intuitivamente, assumir o posicionamento de controlar a situação. Eduardo
precisava de uma outra forma de conversar para que seu quadro mudasse. Nas
palavras de Anderson e Goolishian: O
terapeuta aprende, conhece e conversa na linguagem do cliente porque a
linguagem é uma metáfora para as experiências do cliente. As palavras do
cliente, sua linguagem e significado são o que se passa na vida do cliente. Na
conversa terapêutica é essencial que o terapeuta elabore o conhecimento através
das metáforas da experiência do cliente (p. 23). Essas palavras nos fazem pensar em como foi necessária a sintonia entre
terapeuta e paciente. Como estávamos
treinados e orientados por uma linguagem, que nos oferecia algumas formas de
conversar, mas não a forma de conversar com Eduardo. Dentro de nossa comunidade
linguística, podemos lidar, eventualmente, com pessoas que se comuniquem de
outra maneira, que entendam e processem as informações e os afetos de uma
maneira diferente da maioria. Teremos então, caso queiramos entrar no universo
dessas pessoas para ajudá-las, que encontrar a sintonia de um estrangeiro, de
um visitante, pois nós é que somos os estranhos querendo entrar no seu mundo,
não o contrário. Partindo da preocupação de Hofman
(1996) de que para que uma queixa seja bem construída precise de um nome, nos
perguntamos se a nomeação de uma doença mental pode provocar algumas das
consequências desagradáveis pelas quais passa o sujeito diagnosticado. Nessa linha de pensamento, outra pergunta que parece relevante em casos
como este é: como seria se pudéssemos tratar psicologicamente a esquizofrenia
como uma forma de existir que leva o sujeito a se comunicar de uma maneira
diferente, explicando e entendendo tudo o que se passa à sua volta de uma forma
diferente daquela à qual estamos acostumados? Lembramos que uma crítica da
nomeação não é simples, pois a própria Hofman se pergunta o que será da terapia
sem essa prática de nomeação (ibidem). Vale dizer que estas perguntas não excluem necessariamente a medicação,
ou o tratamento psiquiátrico. São questões oriundas do que aconteceu neste caso
e em outros, que não contamos aqui. Conclusão Considerando as
interferências do contexto cultural e do ambiente linguístico onde as pessoas
estejam inseridas, tentamos discutir uma das críticas que podem ser feitas ao
Construcionismo Social. Perguntamos se aqueles que pregam a importância das
ambientações culturais e linguísticas poderão, simplesmente, chegar à formação
de um novo parâmetro. Assim sendo, atuar orientado pelas ideias
construcionistas seria apenas trocar o Cientificismo pelo Construcionismo, que
funcionaria como uma nova lei. Sobre esse ponto, ressaltamos as
ideias aqui apresentadas sobre o caráter autocrítico das concepções
construcionistas. Acreditamos que o Construcionismo não pretenda tomar o lugar
de embasamento da verdade, mas, sim, ressaltar que quaisquer verdades possam
ser construídas com base nos contextos culturais onde o processo aconteça, o
que valeria também para as próprias concepções construcionistas. Esta ideia nos parece poder ser
observada na prática a partir do último caso clínico aqui apresentado, quando a
atuação da equipe terapêutica não seguiu a proposta construcionista como uma
receita de bolo. Em vez disso, foi observado o que estava ao nosso alcance para
ajudar o paciente e o que nós acreditávamos, a cada momento, que fosse um passo
à frente em seu tratamento. Haverá algum sentido em assumirmos
que uma conduta sirva para uma segunda pessoa só porque serviu para a primeira,
numa espécie de padronização da atividade clínica? Por outro lado, será que as
classificações das quais dispomos até hoje, feitas a partir de estudos
empenhados e cientificamente rigorosos, de nada valerão para o trabalho
norteado pelo Construcionismo Social? Uma ideia que surgiu neste trabalho
e que pode se tornar uma proposta de compreensão para esta questão é a da
Ciência crítica, em detrimento da crítica da Ciência. Como já vimos, grande parte
das concepções teóricas construcionistas, nos traz a proposta de olhar a
realidade por lentes diferentes, em vez de negar essa realidade. Acreditamos ser este um argumento consistente para que critiquemos o
hábito de falar em condutas em psicoterapia e terapia familiar. A atitude de
curiosidade que mantemos, nos leva à condição de construtores auxiliares de
novas formas de existir e também - como nos mostra o caso de Eduardo - de
construir. Referências Bibliográficas Andersen, T. Processos Reflexivos. Rio de janeiro:
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análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa
do Psicólogo (2011). ______________ Diagnóstico e Terapia Familiar:
considerações a partir de uma epistemologia pós-moderna in Payá, R. (org.) Intercâmbio
das Psicoterapias: como cada abordagem psicoterapêutica compreende os
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Grupo: um enfoque construcionista social. São Paulo, VETOR. (2006). Jaspers, K. Psicopatologia
Geral. (vols. 1 e 2) São Paulo: Atheneu (1911/2005). [1]
Este artigo é um fragmento do meu trabalho de conclusão do curso de
especialização [2] Quando aqui utilizado, o termo “pós-modernidade” representa uma época norteada por mudanças paradigmáticas ocorridas em todas as áreas de relação humana, como Ciência, Religião, Arte etc. Não nos obrigamos a uma exploração conceitual do termo por entendermos que seria um provável desvio do objetivo deste trabalho. [3] Nome que se dá ao teste para ingressar nos times de futebol.
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