Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2012 - Vol.17 - Nº 1

Psicologia Clínica

TERAPIA COGNITIVA FENOMENOLÓGICA DOS TRANSTORNOS DA ANSIEDADE: TRATAMENTO DO TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO

Braz Dario Werneck Filho
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo-Comportamental


Resumo

O objetivo deste trabalho é transmitir o trabalho da Terapia Cognitiva Fenomenológica para o transtorno obsessivo-compulsivo. A partir do relato de dois casos clínicos, procuramos uma reflexão sobre o diagnóstico e o tratamento deste quadro. Desde a definição até a forma como o tratamento é conduzido trazemos aqui a funcionalidade e a proposta eminentemente clínica de uma terapia norteada pela Fenomenologia.

 

Descritores: Terapia Cognitiva Fenomenológica, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Transtornos da Ansiedade.

 

Abstract

The aim of this article is to talk about the Phenomenological Cognitive Therapy for the Obsessive-Compulsive Disorder. Since two clinical cases, we intend to think about the current diagnosis and treatment of this disorder. From the definition until the types of treatment, we propose the effectiveness and the essentially clinical approach of a kind of therapy based on Phenomenology.

 

Keywords: Phenomenological Cognitive Therapy, Obsessive-Compulsive Disorder, Anxiety Disorders.

 

Introdução

Uma das mais contundentes atuações da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é no tratamento dos transtornos da ansiedade, dentre os quais podemos destacar o transtorno obsessivo-compulsivo.

Nos últimos anos, com o progresso dos meus estudos na direção de uma terapia que possa ser orientada pela Fenomenologia, venho obtendo resultados importantes no tratamento de pacientes com o referido quadro.

            Alguns detalhes se mostram extremamente importantes no trato com pessoas que apresentem essas características. Acontece que algumas das considerações aqui feitas fazem parte justamente de uma abordagem terapêutica voltada para os aspectos existenciais do paciente.

            Neste trabalho, apresento a evolução de dois casos para embasar um procedimento terapêutico que, ou pouco atentou para os sinais e sintomas vivenciados e descritos pelo paciente, ou procurou uma forma diferenciada de lidar com tais acontecimentos.

            Ao longo dos casos que se seguem, foi possível observar que a relação estabelecida com os pacientes foi uma importante ferramenta de trabalho clínico. A relação terapêutica foi o elemento que abriu espaço para novas formas de procura de um tratamento para esses indivíduos.

            Além disso, foi necessário considerar os aspectos da personalidade e do entorno familiar de cada um, para que se tornasse possível uma via de acesso aos reais problemas que eles enfrentavam.

            Uma das principais diferenças no tratamento dos casos aqui descritos em relação à Terapia Cognitivo-Comportamental foi a visita ao conceito de Neurose Obsessiva, com o objetivo de elucidar caminhos alternativos para o alívio do sofrimento dos pacientes e para a construção de outras formas de lidar com o mundo.

 

O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e a abordagem fenomenológica

O objetivo principal deste trabalho é aplicabilidade da Terapia Cognitiva Fenomenológica (TCF) no tratamento do TOC e discutir os objetivos do tratamento psicológico para transtornos que envolvam sinais e sintomas obsessivo-compulsivos.

A partir de estudos voltados para a prática clínica, pretendemos continuar trabalhando para a divulgação da TCF como um afluente eficaz da Terapia Cognitiva. A principal ressalva que se faz é sobre a intenção de contribuir para uma ampliação dos limites até hoje alcançados pela TCC, e não de propor uma substituição. Como padrão de definição e descrição, utilizaremos a Terapia Cognitivo-Comportamental, visto que a literatura produzida por essa abordagem é vasta.

            O transtorno obsessivo-compulsivo, conhecido e popularizado pela sigla TOC é um transtorno mental que se situa, segundo a Associação Psiquiátrica Americana, entre os chamados transtornos da ansiedade (Cordioli, 2004). A principal característica é a ocorrência de obsessões e compulsões, o que leva ao surgimento de mudanças severas de comportamento (ibid, 2004).

            Partindo da visão americana, em consonância com a abordagem cognitivo-comportamental, observamos que as obsessões podem ser encaradas, de maneira simplificada, como pensamentos invasivos e involuntários, na maioria das vezes indesejáveis. De qualquer forma, é razoável admitirmos que estejam na esfera das cognições. As compulsões estão no campo do comportamento, englobando rituais que se tornam obrigatórios para o paciente.

            Consideramos desnecessária uma descrição pormenorizada do que se entenda por TOC. Queremos, no entanto, chamar a atenção para a proposta da Terapia Cognitiva Fenomenológica (TCF), de trazer a contribuição de outra forma de pensar sobre o problema que o paciente nos apresenta. Consideramos crucial uma atitude deste tipo para que a clínica não fique subjugada pela determinação do pragmatismo americano, já discutido em outros trabalhos (Werneck Filho, 2009).

            A postura clínica proposta pela TCF é de um tratamento norteado pela atitude fenomenológica, que pode e deve ser vista como uma forma de ver o mundo debruçada sobre a complexidade de cada um dos pacientes, assim como sobre suas diferenças. A clínica deve ser um instrumento de ajuda para o paciente e não, como podemos ver frequentemente, um instrumento para a ratificação de si mesma como postura teórica.

            Ressaltamos que as ideias da TCF estão orientadas pela visão proposta por Bastos (2012) a respeito de uma clínica que não se preste a reproduzir diagnósticos quantitativos, apoiados em relações de causa e efeito generalizantes. Esta visão está completamente apoiada na Fenomenologia. Em termos práticos, isto significa que a TCF procura, sim, um diagnóstico, mas não é o diagnóstico baseado na quantidade  de sinais sintomas demonstrados e relatados pelo paciente, nem o diagnóstico estrutural proposto pela Psicanálise. A Terapia Cognitiva Fenomenológica procura o diagnóstico que se direcione ao problema vivido pelo paciente.

            Esperamos que o relato da evolução dos casos aqui apresentados possa servir como incentivo a outros estudos sobre os quadros que envolvem obsessões e compulsões; quadros que parecem ser mais frequentes do que o que nos mostra a estatística.

 

Casos Clínicos

Os casos aqui apresentados foram atendidos por mim. Os dois tiveram, ao longo da psicoterapia, acompanhamento psiquiátrico.

São casos que mostram as possibilidades e as limitações do trabalho terapêutico. Ainda assim, podem contribuir para que se continue a questionar a ideia de que um transtorno, qualquer que seja, possa ser tratado da mesma forma em pessoas diferentes.

 

Caso clínico 1 – Thiago[1]

 

1. Apresentação e início do tratamento

Paciente com 14 anos, estudante do oitavo ano do ensino fundamental. Morando com os pais e com o irmão mais novo, de 9 anos.

            Encaminhado para psicoterapia pelo médico psiquiatra. Apresentava histórico recente de surgimento de ideias obsessivas, que começavam a restringir sua rotina. Vinha de um tratamento com terapia comportamental cognitiva. Relatava que o tratamento provocara alívio de sintomas por cerca de um ano, mas que, poucos meses antes, os problemas voltavam a incomodar.

            O paciente demonstrava uma grande dificuldade em falar sobre os eventos que envolviam suas ideias invasivas e ameaçadoras. Desde logo, ficou claro que ele estava assustado por não saber o que fazer com alguns pensamentos que, segundo ele, eram como se fossem “ordens que ele tinha que obedecer”. Não houve relato de qualquer dos sintomas primários, apesar de seu pai se declarar “muito preocupado com sua sanidade mental” e dizer que achava que o filho “ouvia vozes”. Nenhum tipo de perda de contato com a realidade foi observado no relato do paciente. Suas conexões pareciam bastante atreladas aos problemas do quotidiano. Além disso, a angústia que demonstrava dava sinais de estar completamente conectado à realidade.

            Com relação à família, apresentava uma relação de forte vínculo com o pai, que tinha histórico de depressão e ansiedade medicadas, e uma boa relação com a mãe e o irmão. O pai parecia ser uma forte referência para o paciente. Este demonstrava dificuldade para falar sobre os problemas que vira o pai enfrentar. A família se mantinha presente e preocupada em colaborar, mediante constantes contatos telefônicos e reuniões conjuntas.

 

2- Evolução

Em nossos primeiros encontros, fui levado por minha curiosidade natural a perguntar sobre a vida do paciente. Ele falava com desenvoltura sobre alguns assuntos, como garotas e esportes, mas se mostrava ansioso ao falar sobre a escola e seus planos. Dizia que todos os amigos já haviam escolhido uma carreira e ele também, mas mudava de assunto repentinamente, dando sinais de que estava levemente incomodado.

            Falar sobre seus sintomas era também muito difícil, mas ele o fazia, ainda que aparentemente contrariado. Ao longo do tratamento, reparei que ele se mostrava mais à vontade para chegar e conversar comigo. Cumpriu rigorosamente o combinado, com a ajuda dos pais, de avisar com antecedência sobre possíveis ausências e nos primeiros dois meses de tratamento, não chegou atrasado uma única vez.

            A atitude do paciente em relação ao tratamento era de cooperação, mas não se mostrava assim quando alguma postura diferente lhe era solicitada. Aos poucos, fui estabelecendo a estratégia de anotar mentalmente as dificuldades dele que apareciam em nossos encontros, sem falar diretamente sobre isso. A cada retorno que lhe dava sobre o que havia percebido ou interpretado sobre fatos de sua vida e possíveis questionamentos ele simplesmente dizia que esperava pela ajuda e que achava que tudo ia acabar passando.

            Apresentava ocasionalmente relatos de ideias invasivas e incontroláveis, compatíveis com o conceito de obsessões, que o levavam a estabelecer rituais, que realmente pareciam compulsões. Certa vez, chegou a me contar, com alguma vergonha, como passara um longo tempo, cerca de seis meses, sem poder estar em qualquer lugar onde pudesse avistar algo com a cor azul. Esta fase foi trabalhada em sua terapia anterior com sucesso. Ele, entretanto, achava que deveria tratar mais coisas, pois dizia que “o motivo pra ficar com raiva do azul ainda estava lá” e ele nunca fizera nada pra mudar isso.

            O rapaz sempre se mostrava animado nas conversas e parecia se soltar um pouco mais a cada encontro. Aos poucos, impregnado pelos meus estudos pessoais sobre a TCC e aprendendo vorazmente em supervisão sobre a atitude fenomenológica, fui delineando a minha estratégia terapêutica para o caso de T. As técnicas específicas da TCC, mais uma vez se mostravam pouco eficazes no tratamento com ele. Eu percebia que muito mais funcionava o atendimento livre, e que também o deixava livre, do que os processos rigidamente conduzidos, como tarefas de casa e registros de pensamentos. Outro ponto que se mostrou muito difícil foi a tentativa de fazer com ele a prevenção de respostas. Ele não se dispôs em nenhum momento a realizar tal atividade. O simples fato de mencionar essa possibilidade o deixava tenso e ele acabava se fechando. Ainda que pudesse ser uma tentativa de manipulação da parte dele, decidi que era uma tentativa justa, já que ele estava, talvez, se vendo obrigado a fazer coisas que não queria.

            Nesse momento comecei a realmente procurar entender o problema de T.. Todas aquelas dificuldades, toda a vontade de cumprir regras e de conseguir coisas sérias para atingir uma vida adulta. Uma exigência de desempenho da parte dos pais, velada, sob a forma de incentivo e apoio. Ele aparecia constantemente falando sobre a sua dificuldade em tomar decisões e o medo de decepcionar a si mesmo e aos outros. Sentia-me constantemente preso nos atendimentos com ele. Preso a um só assunto, preso a um só problema; essencialmente preso.

            Como já dito, os estudos sobre a atitude fenomenológica, muito me ajudaram a compor a minha postura terapêutica e minha estratégia. Aos poucos, pude observar o transtorno obsessivo-compulsivo a partir de outro lugar. Comecei a compreender como o paciente estava lidando com todas as pressões de uma passagem pela adolescência.

            Nesse momento, as regras passaram para um segundo plano. A compreensão que eu tinha sobre a vida do paciente me apontava um trajeto, a literatura cognitivo-comportamental sobre o TOC me apontava outro. Resolvi seguir a minha intuição e o que eu via em minha frente. Comecei a trabalhar para que ele pudesse aceitar com mais flexibilidade alguns dissabores. Em conversas sobre as garotas e os esportes, foi possível debater temas como liberdade e cumprimento de regras; autonomia e responsabilidade; crescimento e amadurecimento. Isso se mostrou surpreendente para o paciente e para mim mesmo. Esta estratégia foi o caminho que encontrei para continuar tratando e não utilizar imposições que se mostraram infrutíferas historicamente para aquele paciente.

            Uma das coisas que posso dizer que aprendi nos encontros com o paciente, foi a postura crítica a um tratamento que carregava toneladas de organização e obediência a regras – pois, para que se consiga controlar as obsessões e compulsões de forma direta, é imprescindível se apegar a outras regras, outros comandos que sejam mais fortes do que as obsessões e compulsões.

 

3 – Fim da terapia

A terapia transcorreu dessa forma por cerca de três anos. Houve duas interrupções por parte do paciente. Com cerca de um ano de terapia, ele começou a dizer que já estava bem e que achava que não precisava mais do tratamento. Apesar de eu manter a indicação para ele junto aos pais e em nossos encontros, ele interrompeu por cerca de seis meses. A segunda interrupção foi devida, segundo ele, às necessidades de horário que se mostraram incontornáveis.

            No entanto, o que me pareceu mais genuíno foi o modo como o paciente encerrou a terapia. Simplesmente, deixou de comparecer. Quando entrei em contato, sua mãe me disse que ele não estava mais querendo fazer terapia porque estava se sentindo bem – “ainda com alguns sintomas, menos intensos”- e não tinha mais nada pra resolver lá. Com a angústia demonstrada pela mãe, fiz questão de me colocar à disposição para um momento futuro, mas também ratifiquei o discurso do paciente. Julguei que fazer um encerramento nos moldes tradicionais não seria necessário para mim e nem para ele. Assim ficamos, até hoje. Com alguma frequência, a mãe de T. entra em contato para dar notícias e dizer que acha que ele deveria continuar a terapia. Respondo que podemos dar cada vez mais crédito a ele, hoje com 19 anos, para tomar as suas próprias decisões e decidir sobre as coisas que quer deixar pra depois, como acontece com cada um de nós.

 

Caso clínico 2 – Roberto

1 – Apresentação e início do tratamento

Paciente de 46 anos, advogado, divorciado, com uma filha de 22 anos.

            Encaminhado para a psicoterapia por médico psiquiatra que havia diagnosticado transtorno obsessivo-compulsivo.

            R. chegou ao consultório declarando que seria muito difícil que alguém conseguisse fazer com que ele se sentisse melhor, pois achava que seu problema não teria solução.

O primeiro trabalho que já fizemos, nos moldes da Terapia Cognitiva, foi o de corrigir algumas das expectativas manifestas do paciente. Primeiramente, a de que alguém iria fazer com que se sentisse melhor, em vez de ele mesmo; em seguida, a ideia de que seu problema não teria solução, o que se tornou um pouco mais difícil, mas abriu as portas para que eu pudesse compreender o caso de R. como um todo.

Quando começamos a falar de sua vida. R. se mostrou incomodado e reticente. Dizia apenas que morava sozinho e que mantinha um relacionamento amoroso com uma mulher que já trabalhara com ele.

Um detalhe interessante é que, assim como muitos dos pacientes que chegam ao consultório, R. queria saber como funcionava a TCC, pois alguém lhe dissera que era como um remédio para as suas queixas.

Meu primeiro desafio foi encontrar um caminho para a vinculação entre mim e ele, que parecia uma pessoa muito pouco expansiva. O primeiro atalho que pude identificar foi pela via do humor. R., vez ou outra, soltava piadas ágeis e inteligentes, o que me fez vislumbrar a possibilidade de sairmos do lugar comum da relação formal. Em cerca de um mês, com um encontro a cada semana, R. começou a dizer que precisava falar mais coisas sobre si mesmo para que eu o ajudasse.

 

2 – Evolução

Uma das primeiras facetas de R. que se revelaram com a sua nova disponibilidade, foi a vergonha de si mesmo. Dizia e demonstrava ter vergonha por várias coisas: achava-se pouco atraente, péssimo em decisões – o que atrapalhava sua profissão - e também um fraco na relação com a ex-mulher e a filha.

            Aos poucos, R. parecia mesmo mais á vontade para dizer algumas coisas. Falar sobre os sintomas do TOC era um desafio que ele não parecia propenso a encarar. No entanto, quando percebeu que as coisas se agravavam, segundo seu relato, passou a adotar outra postura em relação ao tratamento.

            O paciente demonstrava extrema preocupação com a questão da morte e relatava um grande medo de morrer, ou de que alguém próximo a ele morresse. Começou por aí a relatar como ocorriam os pensamentos indesejáveis e os rituais decorrentes. “Parece uma coisa tão pequena no início, como uma semente, mas que vai ficando maior do que a gente pode suportar. Isso acaba me controlando e eu me sinto envergonhado demais pra contar o que faço.”

            Uma das resoluções que construímos juntos foi a de não seguirmos um caminho estreito, que obrigasse o paciente a relatar detalhadamente os sintomas. Lembro-me de que esse foi um dos encontros que mais provocou mudança de humor no paciente. Ele saiu da sala dizendo que se sentia revigorado.

            Durante cerca de seis meses, R. foi galgando novos lugares em termos de enfrentamento dos medos que sentia. Em algum momento, chegou a dizer que “deveria se tratar do medo, mais do que do TOC”.

            R. terminou o relacionamento conturbado que vinha alimentando e lançou-se em outro envolvimento amoroso. Começou a falar sobre o desejo de lidar de maneira diferente com a mãe de sua filha que, segundo ele, comandava o pai que ele deveria ser até aquela data.

            Ao investigarmos a relação que R. mantinha com o próprio medo, chegamos juntos à ideia de que ele deixara de fazer inúmeras coisas de que gostava nos últimos anos. Em algum momento, trabalhamos o estabelecimento de metas que tivessem a ver com a reaquisição do poder sobre sua própria vida. A forma de pensar de R. foi trabalhada e discutida por nos constantemente. Ele se apresentava de maneira racionalista e foi uma boa via de acesso ao que representavam os seus afetos.

            Com um ano de terapia, R. voltou a praticas esportes e a viajar. Conseguiu pleitear um tempo maior para si, na relação com a família e começou a sentir que “os rituais estavam diminuindo.”

            Em dado momento, R. declarou que precisava se livrar de tudo o que trazia de seu passado e da criação que recebera de sua mãe. Em apenas um encontro, que demorou mais de uma hora, R. falou sobre o medo incentivado por sua mãe. “Ela me ensinou a ter medo de tudo. Nada do que eu faço pode dar certo. Sempre vê o defeito antes da qualidade e eu passei a não mais mostrar nada pra ela”. Como a mãe era uma pessoa ainda muito próxima de R., começamos a cogitar a hipótese de que a relação com ela viesse a ser um foco da terapia.

 

3 – Fim da terapia

Quando começou a sentir que os sintomas estavam amenizados e quando a medicação que tomava deu a ele alguma segurança, R. decidiu interromper o tratamento, afirmando que voltaria se precisasse. Mantive a indicação, ressaltando a importância de uma conclusão processual, mas ele se manteve irredutível. No entanto, parece que o tratamento teve um êxito global, posto que o paciente não estivesse mais se sentindo com necessidade de ajuda.

            Aceitou ir ao consultório para uma única sessão de fechamento e não quis reduzir gradativamente, como proposto por mim. Declarou que não esperava que a terapia o ajudasse tanto, principalmente no medo que tinha de tomar uma medicação psiquiátrica. A médica diagnosticou um quadro de distimia, que regrediu com a medicação prescrita. Os sintomas e sinais obsessivos resistiram ainda algum tempo, mas foram também dando lugar a novos projetos e ações. Essa nova motivação parecia estar ligada à saída do quadro distímico, como também a uma postura mais satisfeita diante da vida.

 

Discussão

Para a Terapia Cognitiva Fenomenológica não basta que o TOC seja visto como um transtorno da ansiedade e que as diretrizes para o tratamento deste tipo de desordem mental estejam estipuladas pelas associações médicas que controlam as publicações e a produção de conhecimento no mundo. A clínica deve ser mais do que isto.

O terapeuta cognitivo fenomenológico vai buscar referências sobre a dinâmica pessoal do paciente, que é a principal, mas não a única fonte. Vai buscar em outras referências teóricas do campo da psicopatologia, não apenas a Psicopatologia Fenomenológica, informações sobre um modo de existir tão complicado. Pois é assim que nos parece a pessoa que chega ao consultório com os sintomas descritos aqui, uma pessoa complexa, difícil de acessar.

Se estivermos lidando com um ser humano que equilibra sua existência no auge da complexidade, que sentido haverá em procurarmos uma forma simplista de lidar com os problemas? Bastos (2012) traz à baila esta reflexão, que nos parece fundamental para o bom exercício da clínica. Não se pode esperar que seja simples o tratamento de um problema complexo. Assim lidamos com qualquer caso que se nos apresente na clínica da Terapia Cognitiva Fenomenológica

Alguns aspectos que não fazem parte das considerações da Terapia Cognitiva de forma usual parecem, pois, importantes para estes dois casos, como para a maioria dos casos que envolvem obsessões e compulsões. A questão das decisões apareceu de alguma maneira em ambos os pacientes.

            Podemos comentar a importância da relação do homem com o seu eixo de tempo. Erwin Straus e Von Gebsattel (1958, in Portella Nunes, 1976) falaram sobre a importância do espaço e do tempo em qualquer anormalidade existencial. Tratam o espaço e o tempo como entidades de referência que dão o sinal de alerta psicopatológico quando se desorganizam na estruturação feita pelo paciente.

            Para o caso dos obsessivos, aparece a noção de que o projeto de vida (ou de ser-no-mundo) do obsessivo não é para a realização e o desenvolvimento de si mesmo, mas para a limitação de sua própria vida. A relação com o tempo muda quando vemos que o futuro deixa de “fazer pressão” sobre o presente, donde decorrem algumas dificuldades com tomadas de decisão, ou resolução (Portella Nunes, 1976).

            Podemos corroborar a importância das resoluções e as palavras de Nunes, Straus e Von Gebsattel com uma visita aos estudos psicopatológicos de Janet (in Ey, 1965), no que ele denominava Transtorno Negativo. Este seria uma espécie de estado geral de incapacidade ou debilidade psicológica que impediria o paciente de adaptar-se à realidade e de ser produtivo dentro de seu nicho (Ey, 1965). Assim, o sujeito obsessivo acaba gastando sua energia em pensamentos que mais se assemelham a ruminações estéreis, o que leva ao prejuízo inexorável de toda a sua vida.

            Poderíamos deixar de citar Freud, mas sua contribuição não deve ser ignorada. Em sua proposta de olhar a chamada Neurose Obsessiva como um quadro que apresente tendências à retenção, proibição etc. é possível retornar aos casos aqui expostos e também corroborar a visão freudiana sobre este quadro. Ficou clara nos dois casos a dificuldade em lidar com a flexibilidade, uma rigidez que tornava o paciente escravo de seus próprios sintomas. Este seria um modo de existir ambivalente, que traria sofrimento ao mesmo tempo em que seria o sentido da existência desses pacientes. Assim sendo, podemos entender as formulações de Freud sobre o caráter sádico-anal da personalidade do obsessivo (Ey,1965).

            Uma forma de expressão que se pareça com um sintoma pode não representar o centro do problema a ser tratado. A Terapia Cognitiva Fenomenológica faz coro com a crítica da objetividade com que são tratados os chamados transtornos mentais. Partindo da direção estabelecida pela Associação Psiquiátrica Americana, trataríamos o TOC, em qualquer paciente, partindo das mesmas premissas, relacionadas ao atendimento psiquiátrico, para uma medicação eficiente e a psicoterapia como forma de reestruturar os pensamentos e prevenir os comportamentos obsessivo-compulsivos do paciente.

            Na TCF, não fazemos isso. Uma questão que parece central para tal diferença é o modo como se lida com a subjetividade e a objetividade. Não há como negar que seja necessária uma postura objetiva em determinado momento do tratamento. No entanto, não consideramos os DSM instrumentos diagnósticos. Eles servem para outras coisas. Na entrada da Fenomenologia em seu arcabouço teórico é que a Terapia Cognitiva Fenomenológica se distancia da Terapia Cognitivo-Comportamental. A subjetividade é o caminho para o diagnostico, para a relação terapeuta-paciente e para o tratamento. O que não quer dizer que abandonamos a construção de diagnósticos com rigor científico. Podemos observar este problema nas palavras de Bastos:

 

Assim, vemos que a fenomenologia propõe uma subjetividade ontológica, mas mantém a necessidade de uma rigorosa objetividade epistêmica. Já o subjetivismo exige subjetividade epistêmica, além da ontológica, que acaba conduzindo ao solipsismo ou ao niilismo, negando o objeto. (2012; p. 254).

 

            Dessa forma, podemos chegar à essência da diferença que caracteriza a TCF: ainda concentrada no diagnóstico, ainda voltada para a psicopatologia, mas tendo como pedra fundadora a subjetividade, que corre pelos encontros terapêuticos e provoca novas descobertas sobre quadros clínicos que julgávamos conhecer.

            Para estes dois casos, uma visão ampliada, voltada para a subjetividade na medida certa, pode nos levar a enxergar outros fatores importantes além dos chamados sintomas.

            Revisitando o conceito de Neurose Obsessiva, podemos ter alguma outra luz sobre o tratamento do TOC. Os sintomas, no tratamento cognitivo fenomenológico, são menos importantes do que a construção da personalidade, do que o modo como a pessoa lida com a vida e como estabelece relações. Estes fatores são fundamentais no processo fundamental da Terapia Cognitiva Fenomenológica: o processo de compreensão. Nas palavras de Portella Nunes:

 

As neuroses não têm sintomas centrais ou axiais, tais como os que conhecemos nas psicoses agudas e crônicas, de base somática (...), nem sintomas de “primeira ordem”, tais como aqueles que consideramos decisivos na tipologia diferencial entre as psicoses endógenas: esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. (...) Analogamente à definição de psicopatias de K. Schneider, uma reação vivencial psíquica e um desenvolvimento da personalidade anormal podem ser chamados de neuróticos, separando-se das variantes unicamente anormais, quando o indivíduo sofre ou se perturba extraordinariamente com essa reação vivencial, ou com as seqüelas correspondentes ao desenvolvimento de sua personalidade. (1976; p. 62).

   

            Com base nos casos apresentados e nas considerações feitas neste trabalho, pensamos que a Terapia Cognitiva Fenomenológica possa ser considerada e deva ser mais estudada para que sua eficácia possa ser atestada no tratamento do chamado transtorno obsessivo-compulsivo.

            Vale ressaltar que a proposta do trabalho é apresentar a complexidade que um transtorno como esse traz para o trabalho clínico. Consideramos tal complexidade como possibilidade de enriquecimento teórico e prático. Não abrimos mão, no entanto, de criticar a forma como alguns diagnósticos são feitos e como alguns tratamentos são conduzidos. O om trabalho clínico não pode prescindir de uma avaliação complexa e de um projeto terapêutico voltado para as peculiaridades subjetivas do processo de uma psicoterapia.

 

Referências Bibliográficas

Bastos, C. L. Cientistas e Feiticeiros: uma abordagem crítica da psiquiatria atual. Rio de Janeiro. REVINTER; 2012.

Cordioli, A. V. Vencendo o transtorno obsessivo-compulsivo: manual da terapia cognitivo-comportamental para pacientes e terapeutas. Porto Alegre. ARTMED; 2004.

Ey, H., Bernard, P., Brisset, CH. Tratado de Psiquiatría. Barcelona. Thoray-Masson. 1965.

Nunes, E. P. Obsessão e Delírio: neurose e psicose. Rio de Janeiro. Imago. 1976.

 

 



[1] Os nomes e os dados que possam identificar os pacientes foram alterados para não permitir  a identificação, mas sem alterar o contexto clínico.


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