Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2

Psiquiatria Forense

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NOS CAPS E A PORTARIA Nº 130/2012 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia
de São Paulo; Doutora em Psiquiatria Forense pela USP.


Em resposta ao Processo-consulta CFM nº 8.589/10, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, no dia 12 de janeiro de 2011, o Parecer CFM nº 1/11, versando sobre o sistema de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as políticas na área de saúde mental, que teve como relator o conselheiro Dr. Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti. Na elaboração do referido Parecer do CFM, a Câmara Técnica de Psiquiatria manifestou-se por intermédio do Dr. José Geraldo Vernet Taborda.

Em sua manifestação, a Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM afirma existir significativo conflito entre a chamada “legislação maior” (Constituição Federal, constituições estaduais e leis federais e estaduais) e a “legislação menor” (decretos, portarias, regulamentos e quaisquer atos emanados da vontade exclusiva de autoridades administrativas). Nesse contexto, segundo a Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM, os textos concernentes à “legislação maior” deixam claro o que segue: “a) a atenção à saúde no Brasil deve ser objeto de políticas públicas próprias, inspiradas nos princípios que determinaram a criação do Sistema Único de Saúde; b) as instituições hospitalares ou de assistência médica devem funcionar sob a responsabilidade e direção técnica de médico legalmente habilitado, inclusive os estabelecimentos destinados a abrigar “alienados” e “toxicômanos”; c) o exercício legal da medicina está condicionado à prévia inscrição do médico no Conselho Regional de Medicina onde exerce sua atividade; d) o médico não pode assumir a responsabilidade por ato médico que não praticou ou por atividade terapêutica realizada por quem não for legalmente habilitado para a medicina; e) a internação psiquiátrica, voluntária ou involuntária, é ato que somente pode ser praticado por médico, assim como a respectiva alta hospitalar; f) a internação psiquiátrica involuntária deve ser comunicada ao Ministério Público em até setenta e duas horas”. Ademais, saindo da área da “legislação maior”, normatizando o sobreaviso medico, o CFM, por meio da Resolução no. 1.834/08, em seu art. 1o determina “a obrigatoriedade da presença de medico no local na vinte e quarto horas, com o objetivo de atendimento continuado dos pacientes, independe da disponibilidade médica em sobreaviso nas instituições de saúde que funcionam em sistema de internação ou observação”. A manifestação da Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM sustenta ainda que “os pacientes em regime de internação ou observação devem contar com assistência médica presencial ininterrupta. O Ministério da Saúde, entretanto, valendo-se principalmente de portarias, tem se divorciado das normas legais retroapontadas no que se refere à atenção aos doentes mentais. O marco inicial da anômala situação existente no Brasil é a Portaria SAS/MS nº 224/92, que estabeleceu as diretrizes e normas para o atendimento ambulatorial/hospitalar em saúde mental”. De acordo com as regras ora estabelecidas, os CAPS passaram a exercer função de hospital, aceitando e, muitas vezes, estimulando a internação de pacientes em suas dependências.

O CAPS como local para internação psiquiátrica estabeleceu-se de modo ainda mais evidente com a Portaria MS/GM nº 336/02, que em seu art. 1º estabelece que os CAPS poderiam se constituir nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de complexidade e abrangência populacional. No que tange aos CAPS III, destinados a municípios com mais de 200.000 habitantes, previa-se que os mesmos deveriam ter as seguintes características: constituir-se em serviço ambulatorial de atenção contínua, durante 24 horas diariamente, incluindo feriados e finais de semana (art. 4º, item 4.3.a); estar referenciado a um serviço de atendimento de urgência/ emergência (...) que faria o suporte de atenção (art. 4º, item 4.3.g); acolhimento noturno, nos feriados e finais de semana, com no máximo 5 (cinco) leitos, para eventual repouso e/ou observação”, limitando-se a permanência dos pacientes “a 7 (sete) dias corridos ou 10 (dez) dias intercalados em um período de 30 (trinta) dias” (art. 4º, itens 4.3.1.g e 4.3.1.i); para o período de acolhimento noturno, em plantões corridos de 12 horas, a equipe deveria ser composta por três técnicos/auxiliares de enfermagem, sob supervisão do enfermeiro do serviço, e de um profissional de nível médio da área de apoio (art. 4º, item 4.3.2.1)”. “Em relação ao CAPS Álcool e Drogas II, destinado ao atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, estabelecia-se que a assistência a pacientes dependentes químicos incluiria “atendimento de desintoxicação” (art. 4º, item 4.5.1.h), disponibilidade de “2 (dois) a 4 (quarto) leitos para desintoxicação e repouso” (art. 4º, item 4.5.h); teria previsão de funcionamento “de 8:00 às 18:00 horas, em 2 (dois) turnos, durante os cinco dias úteis da semana, podendo comportar um terceiro turno funcionando até às 21:00 horas” (art. 4º, item 4.5.g)”.

Diante do exposto acima, a manifestação da Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM afirma que “as normas da Portaria MS/GM nº 336/02 devem ser objeto de crítica, posto que eivadas de ilegalidades e absurdos técnicos, os quais, às vezes, adquirem a forma de verdadeiras perversidades com os doentes mentais”. A manifestação em questão elenca alguns pontos especiais que merecem críticas, dentre eles: a atribuição a não médicos da função de supervisão e de regulação da rede de serviços de saúde mental; a destinação dos CAPS, dentre outras atividades, ao tratamento intensivo de doentes mentais graves (curiosamente denominados “severos” pela portaria”), com atendimento diário, 24 horas ininterruptas, incluindo finais de semana e feriados, com leitos para repouso, observação ou desintoxicação, sem presença médica permanente; o “acolhimento noturno” e nos finais de semana com os pacientes deixados aos cuidados apenas de três técnicos ou auxiliares de enfermagem e de um profissional de nível médio (CAPS III), bem como o “atendimento de desintoxicação” em dias de semanas até às 21h nos CAPS em que houver terceiro turno de “acolhimento” (CAPS ad II)”.

No que tange à situação específica dos CAPS Álcool e Drogas, as críticas da Câmara Técnica foram além, quando o seguinte exemplo de desassistência foi dado: “imagine-se a hipótese de paciente alcoolista ou dependente de qualquer outra droga, em abstinência, ser liberado às 21h de uma sexta-feira com a recomendação de retornar às 8h da segunda-feira seguinte para continuar o atendimento de desintoxicação”.

A manifestação da Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM finaliza afirmando que tanto a Constituição Federal, quanto a Lei nº 10.216/01, bem como as normas que regulamentam o exercício da Medicina não são observadas, por conta do que segue: “a) os doentes mentais estão sendo discriminados ao não serem alvo de políticas que atendam de forma efetiva suas necessidades, principalmente pela não observância ao princípio dos cuidados integrais; b) há constante usurpação da prática de atos médicos por profissionais de outra área, o que configura exercício ilegal da medicina e sonegação, aos doentes mentais, do direito ao “melhor tratamento”; c) embora legal, a opção pelo atendimento de pacientes com transtornos mentais por médicos não psiquiatras denota, mais uma vez, a falta de compromisso em respeitar o direito desses pacientes “ao melhor tratamento”; d) o recurso ao “acolhimento” de pacientes configura duplo abuso: um no plano de seu direito à liberdade, uma vez que essas internações psiquiátricas disfarçadas não são comunicadas ao Ministério Público; outro, no que tange aos cuidados de saúde em si, precários, incompletos e, muitas vezes, ministrados por profissionais não habilitados; e) os CAPS de qualquer nível, se houver a opção governamental de que sejam locais de tratamento a doentes mentais, devem forçosamente ostentar em sua direção técnica médico legalmente habilitado, nos termos dos artigos 28 e 29 do Decreto nº 20.931/32”. O relator da Câmara Técnica de Psiquiatria, Dr. José Geraldo Vernet Taborda, deu linhas finais ao seu documento dizendo que “a prática médica em ambientes tão precários e abusivos configura cumplicidade com a situação descrita, configurando condição antiética para a segurança do trabalho dos medicos”.

Então, após a manifestação da Câmara Técnica do CFM, a matéria foi apreciada pelo conselheiro do CFM Dr. Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, que acabou por elaborar o Parecer final CFM nº 1/11 sobre o sistema de CAPS e as políticas na área de saúde mental. O relator do Parecer CFM nº 1/11 fez várias considerações acerca do Parecer elaborado pela Câmara Técnica de Psiquiatria. “Os problemas de maior monta são concernentes aos CAPS III, ad II e III, que na realidade são pseudo-hospitais onde se realiza a internação, aplica-se medicamentos e observa-se a evolução em caráter prognóstico, mas nos quais o papel do médico é subtraído e diluído com o de outros membros da equipe, como se todos pudessem fazer tudo. Assim, o psicólogo, o assistente social ou enfermeiro estão habilitados, nessas instituições, a fazer o juízo clínico evolutivo e a determinar as providências médicas sobre o doente internado. Descumpre-se também o formalismo legal ao se permitir que o paciente seja inserido sem uma avaliação médica e possa sair à hora em que queira. Não há autoridade médica regulando, avaliando e dizendo se é caso de internar ou não, se o paciente pode sair quando desejar ou se, em risco, conforme preceitua a Lei nº 10.216/01, será involuntariamente hospitalizado e este ato comunicado ao Ministério Público. Esta lacuna no entendimento e a mudança da nomenclatura legal de “internação” para “acolhimento” faz antever que, além do descumprimento da lei, os ideólogos do sistema criaram um ambiente sem ordem ou hierarquia, extremamente nocivo aos pacientes, gerando insegurança quanto ao que se exige para um funcionamento seguro dentro de critérios médicos”. “É mais que evidente que a estrutura assistencial prevista na portaria não tem condições de cuidar dos pacientes, não dá segurança aos médicos, nem faz com que a sociedade tenha a garantia de que o melhor da assistência está sendo colocado à disposição dos doentes mentais e de seus familiares”.

O Parecer alerta, então, a classe médica sobre sua responsabilidade ao trabalhar em condições inapropriadas para o seu desemepenho profissional: “O CFM tem a ética obrigação de alertar os médicos a não aceitarem passivamente essa imposição do Ministério da Saúde, pois a responsabilidade maior pelo que vier a acontecer com seus pacientes é deles, independentemente das circunstâncias. O seu ato e sua pessoa estão vulneráveis e necessitam de urgente proteção. A lei veda a internação psiquiátrica em ambientes com as características atualmente apresentadas pelos CAPS tipo III e tipos Álcool e Drogas II e III, exatamente porque não há em suas estruturas a presença médica ininterrupta e o suporte técnico indispensável para intervenções prontas e agudas, estas sim com características manicomiais”.

O relator do referido Parecer CFM no 1/11 conclui, assim, que, “ante tal detalhada exposição, considero parte das Portarias SAS nos 224/92 e 336/02, principalmente no que tange aos CAPS III, AD II e III, antiéticas às condições de segurança necessárias para a assistência médica aos pacientes e ao próprio ato médico, devendo tal conclusão ser enviada ao Ministério da Saúde para as devidas correções. O CFM, por sua vez, deve adotar as providências judiciais necessárias e instar aos Conselhos Regionais de Medicina a observância ao contido neste parecer, para as providências cabíveis”.

No final de 2011, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em nota oficial sobre o Programa de enfrentamento ao crack anunciado pelo Governo Federal, manifestou-se sobre o tema, como segue: “a ampliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 24 horas é bem-vinda, mas implica na necessidade de organização de equipes capazes de dar conta de intercorrências clínicas mais significativas entre usuários de crack. Ou seja, para que a medida não seja inócua, será preciso ter equipes médicas também 24 horas nos CAPs AD”.

No contexto exposto acima, no dia 26 de janeiro de 2012, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº130, redefinindo o CAPS Álcool e Drogas III, que funciona no periodo de 24 horas, revogadando a Portaria nº 2.841/GM/MS, de 20 de setembro de 2010. O CAPS Álcool e Drogas III passa a se constituir “em serviço aberto, de base comunitária que funcione segundo a lógica do território e que forneça atenção contínua a pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool, crack e outras drogas, durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia e em todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados”. O CAPS Álcool e Drogas III funcionará com equipe mínima para atendimento de cada 40 pacientes por turno, na seguinte configuração: 1 médico clínico; 1 médico psiquiatra; 1 enfermeiro com experiência e/ou formação na área de saúde mental; 5 profissionais de nível universitário pertencentes às seguintes categorias profissionais: a) psicólogo; b) assistente social; c) enfermeiro; d) terapeuta ocupacional; e) pedagogo; e f) educador físico. Além disso, a equipe minima deverá contar também com 4 técnicos de enfermagem, 4 profissionais de nível médio, e 1 profissional de nível médio para a realização de atividades de natureza administrativa. Durante os períodos de acolhimento noturno, a equipe mínima ficará acrescida dos seguintes profissionais, em regime de plantão corrido de 12 horas: 1 profissional de saúde de nível universitário, preferencialmente enfermeiro; 2 técnicos de enfermagem, sob supervisão do enfermeiro do serviço; e 1 profissional de nível fundamental ou médio para a realização de atividades de natureza administrativa. Já nos períodos diurnos aos sábados, domingos e feriados, a equipe mínima será composta da seguinte forma, em plantões de 12 horas: 1 enfermeiro, 3 técnicos de enfermagem, sob supervisão do enfermeiro do serviço; 1 profissional de nível fundamental ou médio para a realização de atividades de natureza administrativa. Mesmo diante de todas as dificuldades, ficamos sempre na expectativa de melhores desfechos para que os pacientes que apresentam transtornos mentais possam “ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades”, conforme determina a tão propalada Lei 10.216.


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