Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8

Pensando a Psiquiatria

UM QUADRO PARANÓIDE DE NATUREZA ORGÂNICA

Dr. Claudio Lyra Bastos


Nosso tema do mês são os quadros psiquiátricos orgânicos, apresentando o caso a seguir, que nos foi enviado pela Dra. Clarisse Rinaldi, psiquiatra do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Por este termo entendemos os quadros sintomatológicos psíquicos ocasionados por distúrbios de origem fundamentalmente orgânica, tais como traumatismos e doenças vasculares, tóxicas, infecciosas, metabólicas, neoplásicas, degenerativas, imunológicas etc. Correspondem às chamadas psicossíndromes cerebrais orgânicas ou reações psicóticas exógenas agudas e crônicas.
Se bem que seja sempre aconselhável uma boa avaliação dos possíveis sinais e sintomas neurológicos, quando existe a possibilidade de se estar diante de um quadro psicoorgânico, não concordo com a prática rotineira de se fazer o diagnóstico psiquiátrico por exclusão do neurológico. Nos casos duvidosos, o exame psíquico bem feito pode ser tão ou mais útil quanto o neurológico.

No que se refere às alterações psicopatológicas, pode-se dizer que em linhas gerais, os quadros psicorgânicos costumam manifestar-se seguindo seu curso em duas formas básicas:
a)Nas síndromes agudas, com alterações gerais do estado de consciência (turvação, delirium).
b)Nas síndromes crônicas, com déficit cognitivo, evoluindo para os estados demenciais.

Podemos abordar nelas os seguintes aspectos:

a) cognitivos: perda ou redução de, eventualmente com discrepâncias entre algumas funções específicas - recomenda-se uma adequada avaliação neuropsicológica;
b) afetivos de natureza orgânica, deficitária: labilidade emocional, intolerância à frustração, irritabilidade, apatia;
c) afetivos de natureza funcional, não-orgânica ou reativa: respostas emocionais à trauma ou ao deficit, alterações de natureza psicodinâmica: depressão, ansiedade, dependência, fragilidade, tendências querelantes, paranóia.

Mecanismos compensatórios se desenvolvem após a perda de funções e muitos sintomas apresentam essa característica; formas primitivas de reação tomam o lugar dos recursos perdidos.
É possível observar também certas alterações de humor em quadros cerebrais de origem endócrina — como por exemplo, a depressão no mixedema, e a ansiedade e a agitação no hipertireoidismo — assim como algumas alterações mais características em certas lesões cerebrais localizadas. Não há, porém, verdadeira especificidade psicopatológica qualitativa para tais quadros sindrômicos, nem muito menos para a sua etiopatogenia. Portanto, os sintomas são praticamente os mesmos para doenças de origens inteiramente diversas. Essa constatação foi feita pelo psiquiatra alemão K. Bonhöffer em 1912 e permanece até hoje basicamente inconteste. Assim, um tumor, um traumatismo craniano, um distúrbio metabólico, uma intoxicação ou uma infecção podem cursar com a mesma sintomatologia psíquica básica.
Podemos, no entanto, observar certas características menos genéricas nas personalidades (ou no que restou delas) dos pacientes atingidos por tais distúrbios:
Os quadros orgânicos crônicos tendem para a demência, cursando com alterações da memória e da inteligência. Esta perda cognitiva pode esfacelar os vínculos afetivos e costuma ocasionar grandes dificuldades no convívio familiar, e não é por outra razão que os asilos geriátricos vivem lotados, mesmo nos casos em que as condições financeiras não constituem nenhum problema.
Certos traços de personalidade do paciente podem se tornar mais evidentes, e a irritabilidade e a intolerância aumentarem. Sintomas depressivos ou persecutórios são muito comuns, podendo cursar com manifestações paranóides intensas. Muitas vezes ocorre perda das noções de adequação do comportamento social e liberação dos impulsos. Devemos frisar que mesmo nos casos em que não existem quaisquer possibilidades de recuperação cognitiva significativa, o psicoterapeuta pode desempenhar um importante papel, especialmente na condução dos problemas familiares, de maneira que estes não venham a desembocar na rejeição e afastamento do paciente.
No que se refere às doenças crônicas, não se pode esquecer que o uso de certas drogas, especialmente os corticóides, pode desencadear quadros psicóticos orgânicos intensos. Como temos aqui alterações de humor e alterações do pensamento na presença de distúrbios da cognição, nunca é demais lembrar que a medicação excessiva deve ser evitada, pelo risco de se criar uma bola de neve de efeitos colaterais cumulativos.
No caso a seguir, os sintomas paranóides se desenvolveram sem alterações da consciência nem perda cognitiva significativa.

O caso, enviado pela Dra. Clarisse Rinaldi:

O idoso NNR, 77 anos, reside com a esposa LF, 74 anos (portadora de Lupus), além dos dois filhos O. (também portadora de Lupus e transplantada renal) e E. Foi esclarecido que E. estava morando com os pais há pouco tempo separação da esposa. No dia desta visita os netos do casal de idosos, filhos de E. (F. e L.), também estavam no apartamento.
O senhor NNR foi submetido a transplante renal no ano de 2008, tendo histórico de 9 anos de doença renal (glomerulonefrite), necessitando de hemodiálise neste período. O idoso faz uso de medicações para profilaxia de rejeição de transplantes (Prograf®, Myfortic® e Prednisona) e mantém acompanhamento em Hospital Geral. Não há relato de outras patologias ou cirurgias. Referiu tabagismo por 10 a 15 anos, já tendo parado “há muito tempo” e uso social de bebidas alcoólicas, das quais atualmente não faz uso.
Não há histórico de tratamento psiquiátrico prévio ou de alterações de comportamento anteriores que chamassem a atenção da família, salvo o fato de que sempre foi mais “caseiro” e um pouco ciumento, mas nada que fizesse pensar em transtorno psiquiátrico, conforme relato da filha. A senhora LF afirmou que há 10 anos o marido já falava “dessas coisas”, tendo inclusive desconfiado da esposa com familiares seus com quem conversava pelo telefone, o que acarretou afastamento da família. A filha O. confirmou esse relato, mas disse que o pai “piorou” no último ano, quando o idoso passou a empreender mudanças no apartamento para evitar que homens ficassem olhando sua esposa (mudou um basculante da cozinha, colocou plantas na frente de uma janela da sala), por vezes não dorme e “tranca” a casa para que ninguém entre. Estas alterações de comportamento acarretam discussões acaloradas entre o casal de idosos. Entretanto, o idoso mantém atividades da vida diária, ajuda na arrumação da casa, sai sozinho, inclusive para as consultas médicas.

Exame Psíquico

Estive na residência do senhor NNR no dia 02/02/2012, no período da tarde. Fui atendida pela senhora LF que me convidou a entrar. Encontrei-o na sala; cumprimentou-me cordialmente, sorrindo e me convidando a sentar. Trajava camisa, bermuda e chinelos, portava óculos, tinha os cabelos e barba aparados, deambulava sem dificuldades, sinais de bom estado de higiene.
O senhor NNR concordou em conversar comigo, após minha apresentação. A senhora LF permaneceu na sala e o casal começou a falar sobre as desavenças conjugais. Ambos mantiveram-se sentados, mas falavam em volume de voz alto. O filho do casal veio até a sala em um momento para dizer que sua irmã já estaria a caminho de casa. Perguntei-lhe se poderia conversar um pouco conosco, mas ele demonstrou não estar à vontade em meio à discussão dos pais. Após algum tempo, quando ficou claro que o senhor NNR repetia as acusações de adultério contra sua esposa, a qual se defendia de forma, demonstrando ambos exaltação emocional com a situação, solicitei que mudássemos o foco da conversa e pedi-lhe que me contasse sobre sua vida. A esposa interferiu em alguns momentos, corrigindo e ou retrucando com o marido, mas não houve mais discussão. Ele se manteve olhando para mim, desviando o olhar quando outra pessoa falava ou entrava na sala, e respondeu a todos os meus questionamentos.
O senhor NNR discorreu sobre sua vida, disse ter nascido em cidade do interior da Bahia, que não estudou quando criança, tendo começado a trabalhar ainda na adolescência, como ajudante geral. Veio para o Rio de Janeiro trabalhar e depois de algum tempo começou a estudar à noite, concluindo o ensino médio já adulto. Aposentou-se como ajudante administrativo. Teve dúvida ao informar algumas datas, mas afirmou que vai ao banco sozinho, faz compras, etc. Solicitado a falar sobre fatos da atualidade, citou “o navio que afundou”, e “os prédios que caíram”, perguntei onde eram os prédios e ele respondeu “aqui no Centro”, informando também o número correto de mortos e desaparecidos (conforme amplamente informado em programas de televisão naquela semana). Falou da época em que sua filha fez o transplante renal, quando ficou residindo com ela em São Paulo (onde ela fez a cirurgia e o acompanhamento pós-cirúrgico). Falou da filha com orgulho, pois ela faz parte do Conselho Nacional de Saúde e de uma associação de transplantados renais.
Soube dizer a data correta, assim como o local onde estava, identificou seus familiares corretamente, inclusive citando idade dos netos. Questionado quem era Presidente do Brasil, respondeu “Dilma Roussef”.
Disse gostar de assistir televisão, filmes, falou do aparelho de televisão moderno e da TV a cabo. Afirmou também gostar de ouvir música, citou cantores como Roberto Carlos e Wando, tendo citado que este último estava doente. Perguntei-lhe se escutava música através de uma vitrola que estava na estante da sala e ele respondeu que apesar de ter muitos discos atualmente não usava a vitrola e sim o aparelho de DVD, pois sua filha tinha gravado as músicas para ele em CDs que rodam no aparelho.
Afirmou ter certeza do adultério da esposa, mas disse que isso não estava mais acontecendo. Não quis falar sobre o relato de que teria trocado o basculante da cozinha para que homens não ficassem vendo sua esposa. Negou ouvir vozes ou sons que outros não ouçam. Negou tristeza, disse estar bem com sua vida.

SÚMULA PSICOPATOLÓGICA:

Aparência: bom estado geral.
Atitude: cooperativo, educado.
Consciência: desperto.
Orientação: desorientado no tempo e espaço.
Atenção: sem alterações dignas de nota.
Memória: sem alterações dignas de nota.
Afeto/Humor: eutímico.
Sensopercepção: sem alterações.
Pensamento: ideação delirante referente à traição da esposa, sem alterações de forma ou curso.
Fala/ Linguagem: discurso claro, compreensível.
Inteligência: compatível com o grau de escolaridade.
Vontade / Pragmatismo: normobúlico, normopragmático.
Psicomotricidade: o idoso apresentou dificuldade para realizar corretamente o desenho do Teste Mini-Mental e do Teste do Relógio, indicando comprometimento da praxia fina, sem alterações de marcha.
Consciência do eu: sem alterações.
Noção de Morbidade: ausente.

IV a) – TESTES DE RASTREIO COGNITIVO

TESTE DE FLUÊNCIA VERBAL – CATEGORIA ANIMAIS

O idoso foi capaz de dizer 10 nomes de animais diferentes em 1 minuto, tendo repetido um nome (“capivara, tatu, paca, cotia, boi, tartaruga, capivara, cobra, lagarto, preguiça, jacaré”).

TESTE DO RELÓGIO

Solicitado a desenhar um relógio de ponteiros marcando o horário de “onze e quinze” o idoso desenhou o relógio com números e hora correta, com desvio para a direita e leve dificuldade para desenhar o ponteiro dos minutos, corrigindo a linha.

Quadro I - RESULTADO DE TESTE MINI-MENTAL•
=====================================================
Data: 02/02/2012
Identificação: MMS
Idade: 77 anos
=====================================================
Orientação no tempo: 5/5
Orientação no espaço: 4/5
Evocação imediata: 3/3
Atenção: 1/5 (dificuldade na realização dos cálculos matemáticos)
Evocação retardada: 2/3
Nomeação: 2/2
Repetição: 1/1
Comando em 3 estágios: 3/3
Leitura-ação: 1/1
Escrita: 1/1
Cópia: 0/1 (o idoso desenhou os pentágonos separados)
=====================================================
Total: 23/30
=====================================================
Observação: segundo Bertolucci e colaboradores, podem ser considerados pontos de corte para a normalidade, na população brasileira: analfabetos = 13; 1 a 8 anos de escolaridade = 18; mais de 8 anos de escolaridade = 26.

V. CONSIDERAÇÕES PSIQUIÁTRICAS E CONCLUSÃO

O idoso NNR apresentava, à data desta avaliação, ideações delirantes relacionadas a ciúmes de sua esposa, tendo certeza de que a mesma já o tinha traído e empreendendo esforços para que isso não voltasse a acontecer (como mudar objetos da casa para “impedir” que homens a olhassem dentro de casa), além de leve prejuízo nas atividades práxicas (planejamento motor intencional) nos exames de rastreio, sem comprometimento das atividades cotidianas. O quadro delirante parece ter relação com traços da personalidade do idoso (que a família relata que ele já era ciumento) e é compatível com a hipótese diagnóstica de síndrome delirante (sem sintomas alucinatórios), sendo necessária avaliação e acompanhamento com psiquiatra e com neurologista para investigação etiológica (clínica, laboratorial e de imagem) e determinação de tratamento. O acompanhamento deve ser conjunto com a equipe médica que já faz o tratamento pós-transplante do idoso, pois os sintomas psicóticos podem ter relação com efeitos colaterais das medicações imunossupressoras e corticosteróide que o idoso está fazendo uso e o prejuízo da praxia pode ser sinal de algum outro comprometimento vascular cerebral, devendo estas possibilidades ser devidamente avaliadas para o melhor tratamento e garantia de qualidade de vida ao idoso.
O idoso é independente, mantém suas tarefas diárias, vai ao banco e faz compras sozinho, estando preservadas as capacidades civis, sendo o quadro delirante restrito ao relacionamento conjugal. Em função dos atritos e do desgaste emocional gerado pelo quadro de idéias delirantes é necessário que os filhos do casal mantenham, dentro de suas possibilidades, o suporte emocional que já oferecem aos pais e deverá ser avaliada pela equipe médica a necessidade de suporte psicológico.


TOP