Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2012 - Vol.17 - Nº 4

Pensando a Psiquiatria

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO: DÉFICIT DE ATENÇÃO EM ADULTOS

Dr. Claudio Lyra Bastos


Este mês utilizamos um caso clínico – que nos foi enviado pelo Dr. Sebastião Félix, psiquiatra do Rio de Janeiro – para discutimos o sentido dos critérios diagnósticos para o TDA em adultos. Como já ressaltamos em outras ocasiões, um diagnóstico psiquiátrico não é uma mera soma de sintomas, mas quadro clínico que tem um sentido, e que se constitui num todo.
Por exemplo, sintomas obsessivos podem ser encontrados em pacientes neuróticos, esquizofrênicos, psicopatas, epilépticos, etc. sem que constituam necessariamente uma questão relevante para o caso em si, ou seja, para os motivos que levaram aquele indivíduo ao tratamento. Por vezes, tais sintomas podem ser exatamente aquilo que preserva o indivíduo do sofrimento, do vazio ou do caos.
Enquadrá-los todos como “TOC” pode se constituir num erro diagnóstico essencial, que leva a um inevitável fracasso terapêutico. Assim, muitas das diferenças na eficácia terapêutica dos medicamentos podem ser ilusórias, e se dever basicamente a questões diagnósticas. Aqui não me refiro a “critérios” baseados em sintomas objetivos, mas à compreensão do caso como um todo: “Qual o problema real deste paciente? O que o traz aqui?”
No próximo mês, teremos um outro caso do Dr. Sebastião, com o seu ponto de vista e as suas considerações sobre este tema. Os colegas que queiram discutir o assunto ou apresentar seus casos clínicos estão convidados a compartilhar este espaço de reflexão.

CASO CLÍNICO (do Dr. Sebastião Félix):

Identificação: C.A.S., feminina, branca, 36 anos, solteira, sem filhos, intermediária numa prole de três irmãos, ensino superior incompleto (Administração e Biblioteconomia), funcionária de uma repartição pública/auxiliar administrativa, sem religião.
Motivo da Consulta: Encaminhada por um Psicoterapeuta (Terapeuta Cognitivo Comportamental) para uma 2ª opinião / avaliação psiquiátrica.
Queixa Principal: “Confusão Mental”
HDA: Referiu que sempre tivera dificuldades para se concentrar e concluir leituras. Afirmou que foram muitos os livros comprados e não lidos. Nos últimos quatro meses, contudo, sobretudo após término de um antigo relacionamento amoroso, havia piorado bastante, tanto em seu rendimento com leituras, como tornado-se inquieta, ansiosa e passando a apresentar insônia inicial. Passou a ter dificuldades em cumprir os prazos para leitura e correção dos textos a ela enviados (trabalha com revisão de textos acadêmicos), estando sempre cansada e indisposta. Havia procurado outro profissional médico, tendo como diagnóstico “Déficit de Atenção”. Algo avessa ao uso de medicamentos (lhe fora prescrito fármaco anfetamínico) e, também, por insistência de seu psicoterapeuta, buscou uma segunda opinião médica. Negou haver relação entre a referida limitação com a leitura e o fato de não ter concluído os dois cursos superiores iniciados, informando que, em verdade, havia se desinteressado pelos estudos por problemas pessoais vividos à época. Informou ter avançado com bom desempenho desde as séries básicas do ensino fundamental e médio, dedicando-se depois ao estudo de línguas estrangeiras. Sempre gostou muito de Língua Portuguesa, Ortografia e Gramática, tem hoje razoáveis conhecimentos em Inglês e Francês e, por isso mesmo, até completa sua renda fazendo revisões em artigos e trabalhos acadêmicos modo geral.Tanto o histórico fisiológico (gestação, parto, marcos do desenvolvimento neuropsicomotor, menarca etc), bem como os anos da adolescência, sexarca e início de idade adulta não trazem ocorrências de mais relevante informação. Negou convulsões, doenças infecciosas, endocrinopatias, cirurgias, queixas, ou doenças e tratamentos clínicos outros. Negou uso de drogas psicoativas ou tratamento psiquiátrico e psicofarmacológico prévios. A procura por um atendimento psicológico teria sido uma sugestão de familiares, desde que passou a ter desentendimentos com o ex-companheiro há alguns meses.
H. Familiar: Nada digno de nota (eu soube, depois, que a mãe seria psicótica)
Revisão de Sistemas e Exame Físico: Sem queixas ou alterações, para além da insônia e “dificuldade de concentração”.
Exame Psiquico: Veio só ao consultório, trajava vestes próprias e adequadas ao clima e ocasião. Desperta e globalmente orientada, discorreu com naturalidade e desenvoltura acerca tanto de suas queixas quanto aos principais marcos de sua biografia. Compreendeu minhas indagações e solicitações, interagindo de modo satisfatório e em nenhum momento demonstrando constrangimento ou negando-se a responder a qualquer das minhas perguntas. Captou abstrações propositadamente lançadas à conversa pelo examinador, alcançou ironias, mesmo as menos óbvias, e foi capaz de modular o afeto e fazer comentários pertinentes acerca de fatos e acontecimentos da atualidade, bem como de sua própria condição de vida nesse momento (estava em vias de terminar antigo relacionamento e voltara a morar com a mãe). Evocou detalhes de ocorrências várias, tanto as antigas como as mais recentes, sem maiores dificuldades, mantendo-se solícita, atenta e na presença do examinador até o final da entrevista.

Impressão Diagnóstica e Conduta Inicial: Síndrome ansiosa, provavelmente reativa e à custa de contra-tempos e conflitos amorosos. Prescrevi o fármaco Sulpan® (associação de sulpirida/25mg e bromazepam/1mg) SOS insônia (orientada a não usar de modo regular e por mais de três semanas). Solicitada a que retornasse para uma revisão dali a duas semanas e que fizesse contato no caso de piora da sintomatologia referida ou mesmo se da emergência de alguma outra alteração psíquica. Não relacionei as tais queixas de ‘dificuldade de concentração’ e ‘desânimo’ na atualidade com o relato de crônica baixa tenacidade e rendimento nas leituras e, tampouco, fiquei convencido tratar-se de um Transtorno de Déficit de Atenção, razão pela qual contra-indiquei o uso da Ritalina® (Metilfenidato) como fora prescrito, ao menos até nova avaliação.
Evolução do caso:

# Tempo 1 – Retornou no intervalo combinado; apresentara melhora da insônia e estaria, segundo suas próprias palavras, ‘mais animada’. Havia repensado seus objetivos de vida, entendido como irreversível mesmo o processo da separação e, agora, pretendia lançar-se em novos arranjos e perspectivas de vida. Somente usara o tal fármaco prescrito umas poucas vezes. Como sempre preferira trabalhar na revisão das teses durante a madrugada e, por estar se sentindo mais ‘confiante’ e ‘tranquília’, voltara a aproveitar o fim da noite e mais altas horas para dedicar-se aos trabalhos de revisão de monografias e teses, dizendo que já não a incomodava a dificuldade de dormir, pois que havia adaptado seus horários de trabalho, conseguindo acordar um pouco mais tarde. Voltaria ainda uma vez mais ao consultório, cerca de um mês depois: assintomática e sem queixas.

# Tempo 2 – Fez contato solicitando uma nova consulta cerca de oito meses depois. Visivelmente mais ansiosa, referiu que voltara a ter dificuldades em “concentrar-se”, que ficavam surgindo “muitas idéias em sua mente” e que” distraía-se com facilidade”. Ainda que estivesse mantendo a psicoterapia regular 1 x por semana, parece que não vinha conseguindo contornar antigas dificuldades no relacionamento com a mãe e com os outros irmãos, com quem passara a morar após a separação. Queixava-se agora de que, além da “inquietude”, sentia um estado de ‘prostração’ e de ‘desânimo’. Não conseguia levar à frente seus projetos, estava descrente de si e de seus planos. Negou sintomatologia compatível com quadro maniforme ou idéias de culpa, ruína ou prejuízo ou ainda que em algum momento tivessem redundado em pensamentos ou planejamento suicida. Mais uma vez disse não ter feito uso de substâncias euforizantes, sedativas, alucinógenas ou similares, medicamentosas ou não. A conduta farmacoterapêutica foi substituir o Sulpan® por Citalopram (Cittá®), inicialmente 10 mg e, depois de uma semana, 20 mg ao dia. Entendera prescindir menos de uma ação propriamente ‘antidepressiva’ e, muito mais, do efeito ansiolítico de um ‘não benzodiazepínico’. Acrescentei especificamente para a insônia o Zolpidem (Stilnox®), um comprimido de 10mg regular à noite nos primeiros cinco dias e, depois, somente SOS (1/2 comprimido) caso persistisse a dificuldade para conciliar o sono. Combinei fizesse contato telefônico para dar notícias dali a uma semana, bem como de modo a agendar mais breve retorno. Ligou para o celular do médico por duas vezes nas semanas subsequentes, informando melhora da sintomatologia ansiosa, dizendo que estava mais ‘tranquíla’. Ainda a vi um e três meses depois: a melhora fora apenas parcial, ou seja, mais consistente quanto ao tal ‘desânimo’, porém o sono não mais fora reparador e contínuo, se não usasse quase todas as noites o indutor do sono – Zolpidem®.

# Tempo 3 – Ficou afastada do consultório por cerca de mais seis meses. Sem receita para adquirir o antidepresssivo, interrompera o uso, assim como do indutor do sono. Retornava agora com queixas um tanto diferenciadas. Embora persistisse o que denominava “confusão da hora do sono”, uma vez que vinha já há algum tempo “trocando o dia pela noite”, não mais fez referência aos tais ‘desânimos’ ou sintomas depressivos e afins. Relatou que, a partir de envolvimentos amorosos e de contatos com pessoas que lhe enviavam trabalhos acadêmicos para a revisão, passou a ter a certeza de que a estariam vigiando os passos, de que era assediada via internet (através de e-mails e MSM). Apesar do discurso quase monotemático, despejando exuberantes relatos de como se daria o tal assedio, predominava uma certa passividade, um quase alheamento diante dos (graves) relatos que fazia. Não se apresentou tensa, prolixa ou incontornavelmente inadequada (maniforme). Descrevia calma e pausadamente suas desconfianças várias, não sabendo, no entanto, justificar o porquê dessa ‘perseguição’. Sua demanda nesse momento era tão somente por um “comprimidinho” para que relaxasse um pouco mais e não ficasse tão envolvida com tais preocupações. Continuava o seu trabalho, freqüentava uma academia próximo de sua casa, mantinha sua rotina de vida e autonomia financeira. Não trouxe novas informações acerca da relação familiar conflituosa, até porque já havia retornado ao seu antigo apartamento. Chamou-me a atenção já aquela altura a insistência quanto à certeza de ter sido o seu computador invadido por hackers e de como esse tema praticamente dominou a consulta. Cheguei a considerá-la um tanto distanciada ídeo-afetivamente, tamanho tempo dispendido com os relatos quanto à suposta invasão de sua privacidade. Mais uma vez, de modo a evitar uso regular/prolongado de benzodiazepínico, optei por prescrever Fumarato de Quetiapina (Seroquel®), um comprimido de 25 mg à noite e mais um comprimido SOS em caso de insônia intermediária, suspendendo o indutor do sono Zolpidem, por achar que ela demandava uma droga de mais amplo efeito sedativo, assim como suspendi o Citalopran. Fiz contato com seu psicólogo, de quem continuava freqüentando o consultório regularmente, a fim de colher maiores informações acerca de alguma mudança brusca no comportamento da nossa paciente. Também ele vinha percebendo mais crescentes as reclamações quanto ao referido assédio cibernético e, por isso, vinha observando-a com maior cuidado desde então. Declarou compartilhar de meu estranhamento por considerar, aparentemente, pouco verossímeis os relatos feitos por C.A.S.

# Tempo 5 – Retornaria cerca de cinco semanas depois. Gentil, solícita, educada, bem vestida, organizada psiquicamente. Porém, era agora ainda maior o volume dos estranhos relatos e de suas reações e medidas tomadas. Trocara de máquina (comprou outro PC), contratara uma pessoa especializada em detectar esse tipo de invasão em computadores via internet. E, a despeito de todas essas providências, eis que havia muitos ‘sinais’ de que estava sendo vigiada, que ‘perfis falsos’ com seu nome estavam sendo criados na internet, que ‘sentia que seus passos eram vigiados’. Agora já tinha a quase certeza do autor dessas ações: um antigo supervisor com que tivera um breve enlace amoroso a estaria agora (embora não soubesse dos motivos) acompanhando sua rotina de vida, enviando pessoas a sua casa para instalar programas ocultos em seu novo PC ou mesmo na rede telefônica de sua casa. Baseava-se em fatos aparentemente corriqueiros, mas para os quais emprestava grande importância. Eram, por exemplo, registros em seu aparelho celular de chamadas perdidas e cujos números não identificava, a inesperada visita de um funcionário de tv à cabo, que aparentemente por engano/troca de endereço, inadvertidamente batera à sua porta, ou mesmo o reencontro fortuito na portaria de seu edifício com um antigo amigo, a quem não via já há algum tempo. Entendia que poderia o antigo supervisor estar enviando essas pessoas com a finalidade de observá-la ou algo assim: “Tem alguma coisa estranha e eu não sei o que é... (sic). Como parecia nutrir sincera confiança no seu médico, fui gradualmente aumentando a dosagem do neuroléptico, o qual já chegara a 100 mg/dia (ela havia lido a bula e ficara intrigada com as indicações do medicamento: Esquizofrenia?? Mas aceitou continuar o uso mesmo assim). Como voltou a relatar que vinha apresentando ‘problemas’ no relacionamento familiar (brigas e desentendimentos, chegando a dizer que uma irmã que trabalhava num hospital a ameaçou com uma ‘internação psiquiátrica’, decidi convocar um desses familiares para que viesse à consulta seguinte. A paciente não se opôs, desde que viesse o pai.

# Tempo 6 – Semanas depois, retornou com o familiar. Para minha surpresa, o pai, que se disse Contador, mostrou-se bastante apoucado e pouco preciso, diria até, algo confuso ao comentar tanto sobre o histórico biográfico da filha, quanto a respeito do quadro psíquico atual. Exceção à revelação de que a mãe da paciente parece tinha um diagnóstico de ‘Esquizofrenia’, nenhuma adicional ou mais relevante informação trouxe à cena diagnóstica. Não demonstrou estranhamento algum para com os relatos de C.S.A. Chegou mesmo a declarar que a havia ajudado a comprar outro computador, pois que essas coisas de ‘invasão pela internet’ ocorrem com muita freqüência, verdadeiramente pouco me ajudando a obter maiores detalhes, não confirmando ou desmentindo nenhum dos fatos trazidos pela paciente quanto à perseguição’ por ela sofrida. Disse, por fim, que não poderia me dar mais detalhes a respeito da doença da ex-mulher, posto que já estavam há muitos anos separados. Orientei a que C.A.S. retornasse em duas semanas e, já dessa vez, não tive sucesso em convencê-la a aumentar a posologia do neuroléptico (referiu piora da sonolência diurna).

# Tempo 7 – A paciente retornaria ainda três vezes ao consultório. Passou a fazer uso irregular da medicação a ela prescrita, solicitava marcação de consultas, mas não formulava uma nova demanda, mais específica ou que justificasse minha intervenção, até porque reduziu suas queixas quanto ao tal ex-supervisor. Nem mesmo comentava mais sobre o tal assédio da internet. Até que, numa dessas últimas consultas, declarou para meu espanto ‘do quanto estava envolvida por mim’, que vinha nutrindo já há algum tempo sentimentos amorosos e de como isso era ‘uma coisa muito boa em sua vida’ etc etc. No mesmo momento, retruquei que, ainda que lisonjeado com sua revelação, não havia reciprocidade alguma de minha parte e que, portanto, eu só poderia continuar atuando como seu médico caso isso ficasse bem claro dali em diante. Ela não demonstrou movimento algum de contrariedade, ouviu-me e disse “tudo bem”, continuaríamos então como ‘médico e paciente’ somente. Concordou em retomar o uso da medicação, já que persistia “ansiosa”, pegou a receita do Seroquel® e deixou a consulta agendada para o mês seguinte. Porém, na mesma noite, encaminhou-me torpedos/MSM falando que há tempos vinha observando meu jeito de falar com ela e que tinha sim a certeza do meu interesse amoroso por ela, fosse pela maneira como eu sorria, o modo como eu a cumprimentava, evocando até mesmo uma consulta (na verdade, uma revisão) não cobrada, uma vez que fora apenas para pegar uma receita comigo. Fiz contato telefônico, pedindo para que comparecesse ao consultório no dia seguinte. Nesse meio tempo, fiz contato com seu Psicólogo e informei as razões pelas quais não mais poderia continuar como assistente da paciente, o que repeti para C.A.S. quando veio à derradeira consulta. Calada, mas dessa vez visivelmente contrariada, deixou o consultório e não demandou o nome de outro profissional para continuar sua assistência psiquiátrica, como eu assim sugerira. Logo em seguida, passou a bombardear a caixa postal de meu celular com seguidos torpedos, nos quais queixava-se da minha insensibilidade, de que eu “não precisava tê-la humilhado daquele jeito”, que tudo poderia ter sido conduzido de uma forma mais respeitosa para com ela etc etc. Por algumas semanas ainda voltaria a emitir as frases acusatórias via torpedos sms, até que por fim escassearam e não mais tive notícias dela, a não ser que também deixara de ter contato com o seu psicoterapeuta logo em seguida.


Discussão: Em tempos de diagnósticos cada dia mais freqüentes de T.D.A. em adultos, será que a tal ‘falta de concentração’, por mim tomada inicialmente como reativa a contrariedades e percalços da vida (término de um relacionamento), e até medicalizada como uma síndrome depressivo-ansiosa, já não seriam os primeiros momentos de um quadro psicótico/delirante em evolução? Faria sentido entender como possível que as idéias prevalentes de auto-referência dirigidas a outrem tenham sido convertidas em manifestação erotomaníaca para com o examinador? Haveria sustentação clínica/psicopatológica para crer que os passos sintomáticos relatados fizeram parte de um continuum, desaguando num quadro francamente delirante? Ou será que, de fato, a queixa crônica de ‘falta de concentração’ pode decorrer de algum déficit de atenção só concomitante, mas nada tendo a ver com a futura abertura de uma manifestação psicótica?


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