Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2012 - Vol.17 - Nº 1

Pensando a Psiquiatria

PROBLEMAS NA PSIQUIATRIA DO IDOSO: DIFICULDADES NO DIAGNÓSTICO

Dr. Claudio Lyra Bastos


Ainda que não existam muitos dados precisos indicando a freqüência com que ocorrem problemas iatrogênicos na psiquiatria geriátrica, a prática clínica diária nos mostra que é inaceitavelmente alta. Se pensarmos em todas as vezes em que nos pedem ajuda em algum caso complicado, constatamos que quase sempre se trata de um idoso. E, invariavelmente, a questão a ser resolvida tem um importante componente iatrogênico.

A literatura confirma essa impressão. Um estudo de revisão de 30.000 prontuários em 51 hospitais de Nova York revelou que a incidência de iatropatogenia em pacientes com mais de 65 anos de idade fora duas vezes maior do que em relação aos pacientes entre 16 a 44 anos (Leape et al, 1991). Em São Paulo, Carvalho-Filho et al. (1998) encontraram uma ou mais complicações iatrogênicas em 43,7% dos pacientes internados. 

De uma forma prática, os problemas podem ser esquematizados em dois grupos básicos:

 

a) Problemas primariamente vinculados ao diagnóstico;

b) Problemas primariamente vinculados ao tratamento.

 

Neste artigo procuraremos enfocar preferencialmente alguns aspectos importantes do primeiro item.

 

Problemas Diagnósticos em Geral

 

Quando falamos em problemas iatrogênicos, genericamente, tendemos a pensar inicialmente em erros terapêuticos. As fontes das próprias estatísticas citadas mostram que os procedimentos terapêuticos tendem a ser mais iatrogênicos que os diagnósticos. No entanto, vemos que no idoso a multiplicidade de quadros patológicos é a regra, e os erros tendem a ocorrer mais nos pacientes com quadros múltiplos e complexos. Nestas situações fazer o diagnóstico não é apenas enumerar as doenças encontradas, mas hierarquizá-las para organizar uma estratégia terapêutica eficaz e segura.

Uma série de diagnósticos setoriais não forma um diagnóstico global nem permite um planejamento adequado do tratamento, assim como uma série de sintomas não forma um diagnóstico. Como disse o grande pioneiro da neurologia inglesa do século XIX, John Hughings Jackson, a clínica exige mais do que seguir protocolos ou computar listas de sintomas; exige que o médico pense por si mesmo.

Podemos distinguir, grosso modo, dois tipos básicos de erro diagnóstico: um primário, em que a doença básicaoriginal, essencial ou mais importantenão é percebida ou se confunde com outra. O outro chamarmos de erro diagnóstico secundário, em que um outro quadro clínicodecorrente do quadro primário ou a ele superpostonão se faz notar. Esta hierarquia não implica necessariamente a maior ou menor gravidade do quadro, que, por exemplo, uma infecção secundária pode levar à morte, sem que a doença principal per se ameace a vida.

A falta de uma avaliação global (integralizada) e a fragmentação dos exames complementares e dos tratamentos por especialistas freqüentemente deixa o paciente sem ninguém que conjugue as informações soltas num todo coerente e feche uma hipótese diagnóstica estruturada.

Por exemplo, ao avaliar episódios de agitação psicomotora em idosos, já encontrei casos de demência por deficiência de B12, que evoluíram indetectados por meses ou anos. O espantoso é que as pacientes já haviam sido vistas por diversos médicos e feito inúmeros exames. Quando não há quem dirija ou centralize a investigação clínica, um hemograma evidenciando macrocitose ou uma gastrite atrófica na endoscopia podem jazer guardados numa gaveta indefinidamente, antes que alguém eventualmente se lembre de dosar a cianocobalamina.

 

Problemas Diagnósticos em Psicogeriatria

 

Em nossa área, a experiência demonstra que a maioria dos erros é de origem diagnóstica, até porque o processo diagnóstico, em essência, tende a ser bem mais complexo que o terapêutico. Aqui o diagnóstico feito por exclusão e a falha no exame psíquico são os principais responsáveis por tratamentos confusos e ineficazes. Um trabalho americano (Reeves, 2000) revelou que, de 64 casos de emergências clínicas erroneamente internadas em unidades psiquiátricas, em todos (100%) houve falha no exame psíquico. O exame físico falho foi a segunda causa de erro, com 43,8%.

No idoso vemos que as falhas no avaliação psicopatológica se multiplicam, seja porque os quadros clínicos são mais interligados e menos distintos, seja porque o médico tende com maior freqüência a:

 

a)    infantilizar o paciente, desconsiderar  a sua personalidade, minimizar o seu desconforto e desvalorizar as suas queixas;

 

b)    atender prefencialmente à demanda da família, do staff ou da instituição, sem levar em conta o ponto de vista do paciente;

 

c)     atribuir todos os sintomas a um problema único, seja depressão, demência, etc., sem avaliar retrospectivamente as circunstâncias em que surgiu;

 

d)    inversamente, atribuir a cada sintoma isolado um transtorno específico, sem formar um quadro coerente;

 

e)    valorizar exageradamente os elementos aparentes imediatos do quadro atual sem ter conhecido o paciente anteriormente;

 

f)       prender-se a protocolos rígidos, obedecer a critérios artificiais e aplicar cegamente tabelas padronizadas;

 

g)    confundir elementos psicopatológicos essenciais, como por exemplo: labilidade emocional com inibição ou exaltação afetiva; afasia perceptiva com desagregação do pensamento; delirium com psicose, etc.

 

Quando chamados para avaliar pessoas idosas “deprimidas”, inúmeras vezes nos vemos frente a quadros de natureza obviamente orgânica (anemia megaloblástica, Mal de Parkinson, Alzheimer, câncer, hiponatremia, reações medicamentosas, etc.), simplesmente porque os colegas que viram o caso anteriormente não conseguiam diferenciar alterações do humor, da cognição ou do estado de consciência.

Isso nos leva a refletir: de que adianta aplicar protocolos ou escalas sem uma adequada conceituação daquilo que está sendo avaliado? Não é uma simples questão de treinamento ou de atualização, mas de conhecimento. Evidentemente, não se pode medir coisa alguma se não se conhece o próprio objeto da medida.

Certa vez atendemos a uma senhora de seus oitenta e poucos anos, encaminhada por um clínico, supostamente para tratar de depressão e ansiedade. Estava em uso de um antidepressivo inibidor de recaptação de serotonina e de um tranquilizante benzodiazepínico, aparentemente sem boa resposta. Não dormia em razão da inquietude e estava criando problemas para toda a família. Retiramos o antidepressivo e ela logo melhorou. Em menos de uma semana estava bem. O problema dela na verdade se tratava simplesmente de acatisia, transtorno do movimento, causado pelo próprio medicamento. Assim, não era a ansiedade que estava causando a inquietude, mas a inquietude que estava causando a ansiedade. O quadro inicial era apenas reativo, causado pelo isolamento e pela falta de atividades e objetivos.

O erro essencial não era o terapêutico - apesar do clínico haver ignorado o fato de que tais drogas causam acatisia - mas sim de avaliação diagnóstica. Ao contrário do que se pensa, ansiedade e depressão não são de diagnóstico simples, e costumam estar presentes em estados deficitários, quadros orgânicos, psicóticos, etc.

Um psiquiatra bem preparado deve saber diferenciar, por exemplo, um quadro de mal de parkinson com depressão de um quadro demencial com parkinsonismo secundário. Deve distinguir uma perda atencional secundária a alteração de consciência - como por exemplo uma hiponatremia - de uma atitude abúlica depressiva, ou de uma apatia demencial. E o mais importante: essa distinção deve ser feita essencialmente pelo exame psíquico, e não por exclusão, por dados laboratoriais ou por imagens.

Concluímos frisando que na nossa prática, muito do que se fala sobre a polifarmácia e sobre o "excesso" de medicação psicotrópica nos idosos pode se dever, em última análise, a dificuldades diagnósticas, na maioria das vezes vinculadas a uma avaliação precária em termos de exame psíquico e de história clínica.

Em outros artigos, tencionamos voltar ao tema, com outros casos clínicos, discutindo os problemas específicos da abordagem terapêutica em si, enfocando questões psicofarmacológicas e psicoterápicas.

 

 

Referências:

 

BASTOS, CL Manual do Exame Psíquico, 3a edição. Rio, Revinter, 2011.

BASTOS, CL Cientistas e Feiticeiros. Rio, Revinter, 2012.

CARVALHO-FILHO, E.T. et al. Iatrogeny in hospitalized elderly patients. Rev. Saúde Pública, Feb. 1998, vol.32, no.1, p.36-42.

JACKSON, J.H. Selected Writings, vol. II. New York, Basic Books, 1958, p. 334.

LEAPE, L.L. et al. The nature of adverse events in hospitalized patients: results of the Harvard Medical Practice Study II. N. Engl. J. Med., 324:377-84, 1991

REEVES et al. Am. J. Emergency Medicine, vol.18; 4: 390-393, 2000.


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