Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8

Artigo do mês

ANTIDEPRESSIVOS E DISFUNÇÕES SEXUAIS – Parte 1

Carlos Alberto Crespo de Souza

       Introdução

            O sexo começou há mais de 2.000.000.000 de anos. Tem sobrevivido como a mais espetacular bem-sucedida adaptação na evolução da vida. Mudanças profundas tomaram lugar desde a primeira fusão primordial de matéria entre as bactérias ou algas verdes-azuladas ou o que quer que seja. As centenas de milhões de anos entre aquela época e agora viram o desenvolvimento de uma incrível diversidade. 1 

            Entre os seres humanos essa diversidade mostra-se não apenas no comportamento, mas também em ideais: sociedades que insistem numa variação muito limitada de atos eróticos versus aquelas ricas nestes atos; culturas dominadas por vestais versus aquelas governadas por lascivos; e todos os tipos de gradações. Ibidem            

            Ao contrário das outras espécies, os humanos, desde seu aparecimento, têm mostrado características diferenciais no tocante à expressão de sua sexualidade. Enquanto nas outras espécies o acasalamento ocorre por ocasião dos períodos férteis das fêmeas – com finalidade reprodutiva – a espécie humana possui a capacidade de praticar o sexo não reprodutivo, de maneira prazerosa num contexto afetivo ou não.

            A capacidade reprodutiva, única finalidade do coito entre o homem e a mulher, segundo descrito no livro I da Bíblia, Gênesis (o início), teria sido  desviada de seus designíos divinos. Por isto, o onanismo, a homossexualidade e a mulher montada no homem por ocasião de seus relacionamentos sexuais foram entendidos como proibitivas ou pecaminosas. 2  

            Desde muito cedo, portanto, as atividades sexuais dos seres humanos sofreram influências normativas, ora por supostas inspirações divinas, ora por organizações sociais em determinadas culturas, como ainda infelizmente ocorre até os dias atuais em algumas sociedades (como exemplo, a infibulação – a qual retira a capacidade de a mulher sentir prazer).  

            Ao mesmo tempo, como a prática prazerosa abriu possibilidades de expressão livre, surgiu a necessidade de que as sociedades se organizassem de maneira que “se traçassem normas sobre quando e com quem essa sexualidade poderia ser exercida”. 3 Em razão desse entendimento, ao final do século XVII, a religião, o estado e a medicina, entrelaçando as mãos, se encarregaram, no mundo ocidental, de realizar essa normatização. Aí nasceu o casamento por amor, sacramentado pela Igreja e pelo Estado. 4

            Porém, essa normatização não reflete a natureza do ser humano e de suas necessidades. A sexualidade manifesta-se em todas as fases da vida do ser humano e, ao contrário da conceituação vulgar, possui na genitalidade apenas um de seus aspectos, possivelmente nem o mais importante. 3 A relação interpessoal, o contato com o outro, a proximidade e a troca afetiva certamente são valores proeminentes.

            Entre os seres humanos, em nenhum lugar o sexo permaneceu meramente como um ato físico para aliviar certas tensões corpóreas. Ele transformou-se dentro de todas as sociedades humanas, para tornar-se uma área básica para a moralidade e a organização. Numa distância ainda maior da biologia, ele gerou temas que passam através da religião e da arte, assim como participa de sistemas simbólicos excessivamente complexos. 1  

            Duas mudanças significativas na sociedade ocidental promoveram a ruptura do casamento: uso difundido da contracepção e a quebra da tradicional divisão de trabalho, através da quais homens e mulheres realizavam tarefas diferentes, mas complementares. Em consequência, o sexo tornou-se a frágil base do casamento, ou de se viver algum relacionamento menos ritualístico.   

            Como resultado do confronto entre o natural e a norma social imposta de fora, grande parte das pessoas existentes no mundo possui ainda problemas relacionados com sua sexualidade. Leis, imposições sociais e culturais certamente concorrem para a existência desses problemas. Até há pouco, como exemplo, a homossexualidade era considerada como um crime nos Estados Unidos. Por pressão social passou a ser entendida como doença e, por fim, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria deixou de classificá-la como doença e a retirou do Código Internacional de Doenças. Esse entendimento influenciou a própria Assembleia-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual referendou essa compreensão em 1990. 5 Outro exemplo de como as transformações socioculturais e até políticas modificam o entendimento sobre certas condições sexuais minoritárias, recentemente, em fevereiro de 2010, na França, o transexualismo perdeu sua conotação de doença segundo decreto do Ministério da Saúde desse país. 6

Michel Foucault (1926-1984), um dos principais filósofos do século XX e que abordou temas relacionados entre o poder e o conhecimento, o discurso e instituições sociais como a psiquiatria, a medicina, as prisões e a sexualidade, num olhar sobre o estudo da evolução sexual no ocidente foi categórico ao afirmar que a modernidade foi responsável pela mudança da arte erótica em uma ciência sexual. Com isso, foi estabelecido um regime de verdade sobre o sexo, punindo os desviantes e normatizando o casal heterossexual. 7           

            Para Sérgio Telles, “as minorias sexuais durante muitos anos foram proscritas, vítimas de preconceitos e sujeitas a penalidades legais. Com a mudança da moral sexual ocorrida no século XX, passaram a ter uma visibilidade maior e se organizaram politicamente, exigindo que seus direitos fossem reconhecidos e questionando o rótulo de doente que lhes era pespegado”. 6                  

            Ao lado de tudo isso, a progressiva consciência do “eu” em seus direitos - impulsionada pela ampliação das comunicações internacionais -, passou a entender e considerar o prazer sexual como parte de sua saúde e bem-estar.   Com isso, o entendido como normal, estabelecido por critérios extemporâneos, foi se perdendo em seus limites.     

            Mesmo assim, a infelicidade ainda permeia grande parte da vida das pessoas na expressão de sua sexualidade. Estudos mostram que a disfunção sexual feminina continua altamente prevalente, incidindo entre 20 a 50% da população feminina (43% nos Estados Unidos, 72,3% na Índia e 30% no Brasil). Entre os homens, as cifras são menores, situando-se em torno de 31% nos Estados Unidos, sempre levando em conta que muitos que participaram dessas pesquisas não verbalizaram suas dificuldades, fato que pode alterar para mais os índices verificados. 8,9,10,11,12

            Além dos fatores intrínsecos às normatizações, tais como sentimentos de culpa pela infringência das normas, inúmeros outros fatores são responsáveis pelas disfunções sexuais. Muitas doenças físicas ou condições médicas são capazes de causar problemas na função sexual. A depressão ocupa um espaço proeminente nessa área e inúmeras são as constatações clínicas registradas pela literatura científica internacional do quanto os sintomas depressivos estão implicados em efeitos negativos sobre a sexualidade.  

            Como o tratamento dessas ocorrências inclui o uso de fármacos chamados até agora de antidepressivos, e como também eles são capazes de promover paraefeitos indesejáveis, notadamente sobre a área da sexualidade - fato a complicar os objetivos terapêuticos – merecem uma atenção especial.     

            O presente trabalho ocupa-se deste tema, discute suas várias nuances e privilegia o estudo desses compostos medicamentosos. Portanto, este estudo tem a finalidade de fazer uma revisão sobre o efeito dos antidepressivos na sexualidade humana, tendo em vista o crescente aumento da indicação destas drogas em diversas patologias mentais e outras intercorrências clínicas, principalmente nos quadros depressivos, ansiosos e com repercussões na esfera somática.

            De maneira que se tenha uma visão mais ampla sobre o tema são revisados alguns aspectos relacionados, como o histórico do estudo da sexualidade, a evolução da sexualidade humana, o ciclo sexual humano e sua fisiologia, a definição do que seja a disfunção sexual, seus vários determinantes e as medidas terapêuticas disponíveis na atualidade.   

1.      Breve histórico sobre o estudo da sexualidade.     

            O sexo é certamente um dos aspectos importantes da vida humana, porém nos quatro milhões ou mais de séculos em que existem seres humanos (ou semelhantes), apenas nas poucas últimas centenas de anos começaram os estudos mais objetivos.

            Durante os séculos, mitos, superstições e crendices foram capazes de criar na mente das pessoas as coisas mais horríveis sobre circunstâncias anatômicas e fisiológicas do aparelho genital e sobre a sexualidade. A menstruação esteve associada com enorme número de superstições, p.ex., se um cão vier lamber o sangue menstrual tornar-se-á louco e sua mordida incuravelmente venenosa e as relações deveriam ser suspensas no período; a masturbação levava a queda da inteligência, alucinações noturnas, propensões suicidas ou homicidas; quanto maior o pênis de um homem, mais efetivamente ele irá satisfazer uma mulher; mulheres com seios pequenos são “ruins de cama”; atividade sexual excessiva causa vários distúrbios, incluindo elefantíase, cegueira, inchaço das gengivas, mau hálito, pernas fracas, embranquecimento dos cabelos e calvície; todas as posições para o ato sexual, exceto a missionária (a mulher deitada e o homem por cima), eram consideradas perigosas (o coito realizado em pé levaria às convulsões e impediria a fecundação, sentados, ao delírio, no chão, a filhos fracos, outras posições inaceitáveis, à diarreia). 1

            Outras correlações anatômicas estiveram ou ainda estão presentes no ideário das populações. Por exemplo, a correlação entre o tamanho do pênis de um homem e o de seu nariz, pés ou mãos. No lado oposto, uma mulher cuja boca é grande possuiria vagina grande. Ibidem       

            Cabe lembrar que grande parte desses mitos e superstições esteve presente até há pouco tempo, não somente no meio leigo. Entre as décadas de quarenta e cinquenta, número expressivo de teses médicas, em praticamente todas as faculdades de medicina do mundo ocidental, demonstrou os malefícios da masturbação.     

            O pioneiro no estudo da sexualidade foi Aristóteles (384-322 A.C.). Em razão da ausência de conhecimento na época em que se pronunciou a respeito (perfeitamente justificável), cometeu muitas impropriedades. Como exemplo, em sua Geração dos animais, propôs que a contribuição da mulher no desenvolvimento do embrião é meramente a substância necessária para seu crescimento, que identificou como o sangue menstrual. Mesmo assim, teve o mérito de estudar e de escrever sobre suas observações e especulações. Os séculos que se seguiram a obra desse grego privilegiado foi considerada por Paul Gebhard (apud Gregersen) como um período de “irrecuperável ignorância e silêncio”. 1 

            Para Gregersen, a história do estudo do sexo no ocidente, ironicamente, teria começado na era vitoriana (século XIX, entre 1837-1901), quando a mera menção de sexo era um tabu estrito. Possivelmente, a discrepância entre o ideal e o real tenha sido muito grande para passar despercebido, o que propiciou a iniciativa de promover pensamentos sérios sobre o assunto. 1 Nessa era, na Inglaterra, depois que a rainha Vitória ficou viúva, em 1861, a repressão sexual se intensificou. O prazer sexual das mulheres era inaceitável e a ausência de desejo sexual era um aspecto importante da feminilidade. Nesse período, a classe média identificou-se com a rainha em seu celibato até o final de seu reinado, sentindo-se culpada ao comparar seu comportamento sexual com a soberana. Esta culpa levou à hipocrisia, fazendo com que passassem a negar o prazer sexual ao supor que assim agradariam não apenas a rainha, mas também a Igreja. 14   

             Alguns estudos apontam que na metade do século XIX o amor ainda não fazia parte totalmente do casamento. O dever conjugal deveria ser cumprido, principalmente na cama e com finalidade reprodutiva. Caso um dos cônjuges recusasse o ato sexual recorria-se ao confessor, que censurava e podia negar a absolvição e a comunhão. 15

             Em 1855, o Dr. Roubaud, expressando-se como um sexologista, foi um digno representante dessa postura ao descrever sobre o orgasmo em seu livro “Tratado sobre a impotência e a esterilidade no homem e na mulher”: “No orgasmo a circulação se acelera (...). Os olhos, violentamente injetados, se tornam esgazeados (...). A respiração, ofegante e entrecortada em alguns, se suspende em outros (...). Os centros nervosos congestionados transmitem apenas sensações e volições confusas (...). Os membros, tomados por convulsões e às vezes por câimbras, agitam-se em todos os sentidos ou se estendem e se enrijecem como barras de ferro; os maxilares cerrados fazem ranger os dentes, e algumas pessoas levam tão longe o delírio erótico que, esquecendo o companheiro de sua volúpia, mordem até sangrar um ombro que ali ficou incautamente abandonado. Esse estado frenético, essa epilepsia e esse delírio geralmente duram pouco. No entanto, bastam para esgotar as forças do organismo”. Ibidem  

            Embora a descrição possa conter atitudes e manifestações resultantes da fisiologia humana, há nela um forte conteúdo negativo, como algo brutal e ao ponto do descontrole por parte dos participantes no momento do orgasmo. Tal descrição, certamente, possuía o intensão de desmotivar os casais em obter o prazer em suas relações sexuais. Caso chegassem próximo a esse desiderato, sentimentos de culpa restariam implícitos.                

            Ao lado disso, surgiu a ciência empírica, o desenvolvimento da medicina e psicologia, o enfraquecimento da crença nas religiões e nos códigos morais em geral. 1 Descobertas significativas aconteceram graças à invenção do microscópio no século XVII. Através dele, Leeuwenhoek, pela primeira vez, encontrou espermatozoides no sêmen de insetos, de cães e do homem em 1677. O óvulo humano foi descoberto em 1827 por Karl Ernst von Bauer, Hertwig foi o primeiro cientista a observar o momento exato da fertilização em ouriços-do mar e, em 1860, Abbé Mendel abriu as portas da genética com suas leis.       

            Os sexologistas deste período foram perseguidos de várias maneiras, tanto pessoal como profissionalmente. Livros e artigos, mesmo de respeitabilidade científica, foram proibidos de serem publicados e a própria publicação era um sério problema. Dois nomes foram salientes no período: Richard von Krafft-Ebing (1840-1902) e Havelock Ellis (1859-1939). Os livros de Ellis foram proibidos na Inglaterra e somente foram publicados na Alemanha. Por sua vez, Krafft-Ebing foi mais aceito por ter caracterizado o sexo “como uma doença repugnante” e por ter escrito as partes mais picantes de seus livros em latim. 1

            Cabe registrar que Krafft-Ebing, psiquiatra alemão, introduziu pela primeira vez os conceitos de sadismo, masoquismo e fetichismo que se tornou referência para todos os estudos posteriores nesse campo das chamadas “perversões”, inclusive a obra freudiana. 16

            O trabalho de Havelock Ellis é considerado como o mais importante em estudos transculturais. Ele próprio admitiu que a partir dos seus 16 anos teria entendido que a principal tarefa de sua vida seria poupar a juventude das futuras gerações do problema e perplexidade que a ignorância sobre os verdadeiros fatos do sexo lhe causou. O tema central de seus estudos é que as pessoas diferem sexualmente e que culturas diversas, em várias épocas, tiraram proveito destas diferenças. O sexo é claramente um imperativo fisiológico, mas a sociedade pode dominar essa expressão de maneiras incrivelmente poderosas. 1 

Por sua vez, Freud não foi um pesquisador da sexualidade em termos práticos, ao contrário, construiu um arcabouço teórico sobre o desenvolvimento da sexualidade em fases da libido. Ele também, um fruto da era vitoriana, tentou estabelecer um modelo universal dos passos da maturação sexual humana. Ele acreditava que a cultura poderia apenas ter um efeito superficial sobre o que era, basicamente, uma matéria concernente à biologia. Ibidem   

A teoria freudiana apontava que nos primeiros anos de vida as principais características da sexualidade estavam intrinsicamente relacionadas às funções somáticas, à sua expressão autoerótica e à sua subordinação a determinadas zonas erógenas. Tais características ou etapas do desenvolvimento psicoemocional, que toda criança passaria, teriam fases distintas: oral, anal e fálica.

Segundo Volpi e Leszczynski, “Com isso, há que se reconhecer o caráter sexual da amamentação, do controle dos esfíncteres e da descoberta dos órgãos genitais, que se manifesta, respectivamente, nos atos de mamar e/ou chuchar, de reter e/ou expulsar as fezes e a urina e de reconhecer a diferença anatômica e o prazer obtido na masturbação. Relacionam-se ainda a essas funções e ações a primazia de regiões específicas do corpo que, estimuladas, provocam sensações prazerosas, migrando segundo a ordem: boca, esfíncteres anal e vesical, órgãos genitais”. 17

Ao elaborar essa teoria sobre o comportamento humano em relação à evolução da sexualidade desde as etapas infantis, Freud igualmente sofreu acirradas contestações e críticas negativas.

Segundo Laplanche e Pontalis (Apud Gregersen), o termo sexualidade não designa apenas atividades e o prazer que dependem do funcionamento genital, mas toda uma série de excitações e atividades presentes desde a infância, cujo prazer é irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica básica. 1   

Para eles “A questão da sexualidade começa na infância. Ao alimentar o bebê, a mãe (ou a substituta) não está apenas saciando a fome, mas há, aí, uma experiência de prazer: prazer da mãe que o alimenta, o contato corporal, a mãe que conversa e acaricia seu bebê, criando, assim, um gozo na fusão e completude entre mãe e filho. Nesta fase da vida é impossível para o bebê distinguir a satisfação do saciamento da fome da satisfação sexual, elas coexistem. Podemos pensar a sexualidade como instâncias de satisfações físicas somadas às experiências psíquicas”. Ibidem              

            Uma observação deve ser feita à guisa de conhecimento e reforço. O que se fala aqui diz respeito ao entendimento dos comportamentos sexuais na sociedade ocidental. Em outras sociedades os costumes promoviam o treinamento sexual, como na polinésia, onde os garotos adolescentes eram tradicionalmente designados a mulheres casadas, mais velhas, que se encarregavam de seu aprendizado. Na Índia, desenvolveu-se uma tradição sofisticada e informativa que culminou com a edição do Kaama suutra (Os preceitos do prazer) de Vaatsyaayana, datado de cerca de 200-400 AD, o qual provavelmente representa uma continuação de tradições muito anteriores. Nesta obra, 25 posições sexuais foram descritas para o ato sexual.

            Vários outros manuais similares foram derivados ou inspirados nesse manual e deram continuidade à sua forma. Estes incluem o Koka shastra, de Koka Pandita (século XII), e o Ananggarangga (Teatro do deus do amor) de Kalyaanamalla (século XV). Todos esses livros ou manuais eram respeitados na sociedade indiana e o Kaama suutra, em particular, era considerado uma revelação dos deuses. 1 Portanto, os atos sexuais foram classificados por várias sociedades antes do crescimento da sexologia moderna, notadamente a partir da edição desse livro e sem nenhuma conotação de censura, pecado ou consequente culpa.        

            Retornando ao estudo sobre o comportamento sexual na sociedade ocidental, Hirschfeld (um judeu oriundo da cidade prussiana de Kolberg, atualmente chamada de Kolobrzeg e situada na Polônia), em 1897, na Alemanha (Berlim), fundou um centro científico para o estudo do sexo cujo objetivo era defender os direitos dos homossexuais e revogar o parágrafo 175 da lei alemã, que penalizava as relações homossexuais. Nesse centro havia a oferta de aconselhamento para todos os tipos de problemas sexuais. 18  

            Hirschfeld desenvolveu a teoria do terceiro sexo, segundo a qual os homossexuais estariam numa posição intermediária entre o homem e a mulher heterossexuais. Ele acreditava que os seres humanos possuem elementos masculinos e femininos em proporções variáveis. Em 1908 conheceu Freud em Viena e se tornou, logo depois, um dos membros fundadores da secção da Sociedade Psicanalítica em Berlim.

            Com a tomada do poder pelos nazistas, seu instituto foi destruído e sua biblioteca, composta por mais de 10.000 volumes, incendiada. Em 1934 foi privado de sua nacionalidade e, no ano seguinte, assassinado por um agente da Gestapo na cidade francesa de Nice. Ibidem  

            Enquanto isto, nos Estados Unidos, alguns movimentos tentavam criar um instituto semelhante para o estudo da sexualidade, sofrendo sérias resistências. Grande parte das iniciativas era barrada pela falta de financiamento. Entretanto, Alfred Kinsey, um entomologista e zoólogo norte-americano, em 1947, na Universidade de Indiana, fundou o Instituto de Pesquisa sobre Sexo, hoje chamado de Instituto Kinsey para Pesquisa sobre Sexo, Gênero e Reprodução. 19  

            Suas pesquisas sobre sexualidade humana influenciaram profundamente os valores sociais e culturais dos Estados Unidos, de modo especial na década de sessenta, início da revolução sexual. Grandes resistências questionaram seu trabalho e conclusões, pois atingiam o âmago de supostas verdades sobre o comportamento sexual das pessoas.

            No início de seus estudos, como entomologista, percebeu que nenhuma vespa era igual à outra, e que as práticas de acasalamento delas eram extremamente variadas. A partir daí, intuiu que essa diversidade sexual seria também comum entre os animais e os humanos. Dando-se conta de que existia falta de estudos sobre a sexualidade humana, conseguiu recursos da Fundação Rockfeller e, em 1935, juntamente com pessoas previamente habilitadas, iniciou as pesquisas com milhares de pessoas nos Estados Unidos entre diversas classes sociais e idades.

            A publicação do primeiro volume do relatório sobre a sexualidade humana (Sexual Behavior in the Human Male), em 1948, originou enorme polêmica. O mesmo ocorreu com seu segundo relatório (1953), agora sobre as mulheres (Sexual Behavior in the Human Female), com efeito semelhante ao primeiro. A sociedade americana de então, chocada, tomou conhecimento de que 92% dos homens e 62% das mulheres se masturbavam, que 37% dos homens e 13% das mulheres já tinham tido uma relação homossexual que lhes tinha proporcionado um orgasmo. 1

            De acordo com Kinsey, os seres humanos não se classificam quanto à sexualidade em apenas duas categorias (exclusivamente heterossexual e exclusivamente homossexual), mas apresentam diferentes graus de uma ou outra característica extrema. Resumidamente, seriam divididos nas seguintes subcategorias:

·        heterossexual exclusivo;

·        heterossexual ocasionalmente homossexual;

·        heterossexual mais do que ocasionalmente homossexual;

·        igualmente heterossexual e homossexual, também chamado de bissexual;

·        homossexual mais do que ocasionalmente heterossexual;

·        homossexual ocasionalmente heterossexual;

·        homossexual exclusivo, e

·        indiferente sexualmente.  

            Além dessas categorias, Kinsey acreditava que a diversidade sexual não poderia excluir determinadas parafilias, como a pedofilia. Com este entendimento, também baseado em suas pesquisas, foi considerado como condescendente com essa preferência e duramente criticado por conservadores e religiosos.  

            Embora até hoje os seus estudos e conclusões continuem a serem contestados por inúmeros fatores científicos, morais e religiosos, eles são considerados como responsáveis por um dos maiores estudos mundiais do comportamento sexual humano. Cabe mencionar que suas pesquisas e relatórios serviram de base, ao lado de outros aspectos, para que a Associação Psiquiátrica Americana, em 1973, removesse a homossexualidade da lista de transtornos mentais, o mesmo ocorrendo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) a partir de 1986.

 Os achados de Kinsey mostraram que o comportamento sexual dos indivíduos varia enormemente dentro de uma sociedade. Anos mais tarde, como veremos a seguir, Masters e Johnson publicaram um livro resultante de seu estudo sobre a sexualidade humana em observações realizadas em laboratório.

Por sua vez, os antropologistas também registraram suas pesquisas. Heródoto, no século V, seria o autor da primeira teoria antropológica relativa à sexualidade, livre da explicação mitológica. Para ele, as pessoas que viviam em climas quentes eram mais ativas e menos reprimidas do que as que habitavam em áreas frias. Segundo Mott, foram necessários mais de 1.500 anos para que finalmente, em 1980, George Murdock testasse essa hipótese: “de fato, com uma amostra de 126 sociedades, comprovou ser acertado o insight do mestre grego, observando-se correlação significativa entre sociedades sexualmente dionisíacas e climas mais quentes, predominando, em oposição, tendências sexuais apolíneas em nichos ecológicos mais frios”. 20

 Antropólogos como Malinowski (1884-1942) e Margaret Mead (1901-1978) contribuíram, com seus achados, à compreensão de determinados papeis sexuais existentes em algumas sociedades mais primitivas. De maneira a se entender e absorver a extensão das ideias de Malinowski, eis uma conclusão de seus estudos (Apud Mott): “Se se quer compreender, mesmo de modo aproximado, a moralidade sexual de uma civilização completamente diferente da nossa, é necessário não perder de vista o fato de que o impulso sexual nunca é inteiramente livre e, de outro lado, jamais pode ser inteiramente subjugado pelos imperativos sociais. Os limites da liberdade podem variar, mas sempre existe uma esfera na qual esta liberdade está determinada por fatores biológicos e psicológicos, do mesmo modo que existe outra na qual o papel dominante está dado pelo costume e pela convenção”. Ibidem  

A chamada “revolução sexual” no ocidente iniciou com os estudos de Kinsey e avançou até nossos dias. Contribuíram sobremaneira à revolução a introdução da pílula anticoncepcional e a progressiva eliminação dos distintos papeis sociais entre os homens e as mulheres. A entrada das mulheres no mercado de trabalho modificou profundamente as relações entre os funcionários de empresas, aconteceram movimentos contra o uso de sutiã, as mulheres ganharam mais liberdade. Homens, por outro lado, também tiveram mais liberdade para conviver com outros homens em locais determinados para encontros, a homossexualidade ganhou espaço libertário. A educação sexual chegou a Internet, com sítios esclarecedores sobre práticas sexuais explícitas, favorecendo e incentivando sua expressão sem limites, restrições ou culpas.

Entretanto, segundo Mott, com o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) no início da década de 80, “a mais global e destrutiva doença sexualmente transmissível conhecida em toda a história, a pesquisa sobre a sexualidade humana adquiriu o mesmo status e grau de urgência dos estudos que a UNESCO patrocinou sobre raça e racismo logo após o holocausto nazista” 20.  

A SIDA abalou profundamente a liberalização da sexualidade, inicialmente entre os homossexuais e, mais tarde, entre os heterossexuais. O abalo promoveu mudanças nos cuidados e colocou um freio nas atitudes concernentes à sexualidade. Porém, ao lado das consequências dessa virose assustadora e letal, as transformações das mentalidades e hábitos provocados por essa revolução sexual determinaram o surgimento de outros problemas sociais significativos e promotores de inquietações: a gravidez infanto-juvenil, o aborto, a fecundação in vitro e a união homossexual juridicamente consentida, incluindo a possibilidade de que casais homossexuais possam adotar filhos.

Novas frentes se abrem no estudo sobre a sexualidade. Ao que parece, assim sempre acontece em relação ao ser humano em sociedade: superadas algumas arestas outras se tornam desafiadoras à nossa inteligência e perspicácia, como, por exemplo, de que maneira realizar a educação sexual/sentimental frente a esses desafios no presente e em futuro próximo. Como a sociedade se modifica lentamente, não existem parâmetros, bulas ou receitas prontas a serem seguidos, tudo se transforma e novos contornos aparecem.  

O estudo sobre a sexualidade humana, mesmo depois de séculos de avanços e retrocessos, permanece um campo merecedor de atenção pela complexidade de situações derivadas do comportamento do ser humano enquanto composto por aspectos biológicos, psicológicos e sociais.  

 Referências

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3.      Vitiello N. Um breve histórico do estudo da sexualidade humana. Revista Brasileira de Medicina. 1998 Nov; 98(55). Disponível em http://www.drcarlos.med.br/sex_historia.html Acessado em 16/04/2011.

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19.  Alfred Kinsey. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey. Acessado em 30/04/2011.

20.  Mott L. Teoria Antropológica e Sexualidade Humana. Disponível em http://www.antropologia.ufba.br/artigos/teoria.pdf. Acessado em 05/05/2011. 

*Parte 1 e extrato de estudo sobre “Antidepressivos e disfunções sexuais”. O texto em sua íntegra poderá ser encontrado no livro “O uso de antidepressivos na clínica médica”. Porto Alegre: Sulina, 406 p., coordenado por Crespo de Souza.  

  


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