Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8 Artigo do mês
ANTIDEPRESSIVOS E DISFUNÇÕES SEXUAIS – Parte 1
Carlos Alberto Crespo de Souza Introdução
O sexo começou há mais de 2.000.000.000 de anos. Tem
sobrevivido como a mais espetacular bem-sucedida adaptação na evolução da vida.
Mudanças profundas tomaram lugar desde a primeira fusão primordial de matéria
entre as bactérias ou algas verdes-azuladas ou o que quer que seja. As centenas
de milhões de anos entre aquela época e agora viram o desenvolvimento de uma
incrível diversidade. 1 Entre os seres humanos essa diversidade mostra-se não
apenas no comportamento, mas também em ideais: sociedades que insistem numa
variação muito limitada de atos eróticos versus aquelas ricas nestes atos;
culturas dominadas por vestais versus aquelas governadas por lascivos; e todos
os tipos de gradações. Ibidem
Ao contrário das outras espécies, os humanos, desde seu
aparecimento, têm mostrado características diferenciais no tocante à expressão
de sua sexualidade. Enquanto nas outras espécies o acasalamento ocorre por
ocasião dos períodos férteis das fêmeas – com finalidade reprodutiva – a
espécie humana possui a capacidade de praticar o sexo não reprodutivo, de
maneira prazerosa num contexto afetivo ou não. A capacidade reprodutiva, única finalidade do coito entre
o homem e a mulher, segundo descrito no livro I da Bíblia, Gênesis (o início), teria
sido desviada de seus designíos divinos.
Por isto, o onanismo, a homossexualidade e a mulher montada no homem por
ocasião de seus relacionamentos sexuais foram entendidos como proibitivas ou
pecaminosas. 2 Desde muito cedo, portanto, as atividades sexuais dos
seres humanos sofreram influências normativas, ora por supostas inspirações
divinas, ora por organizações sociais em determinadas culturas, como ainda infelizmente
ocorre até os dias atuais em algumas sociedades (como exemplo, a infibulação – a
qual retira a capacidade de a mulher sentir prazer). Ao mesmo tempo, como a prática prazerosa abriu
possibilidades de expressão livre, surgiu a necessidade de que as sociedades se
organizassem de maneira que “se traçassem normas sobre quando e com quem essa
sexualidade poderia ser exercida”. 3 Em razão desse entendimento, ao
final do século XVII, a religião, o estado e a medicina, entrelaçando as mãos,
se encarregaram, no mundo ocidental, de realizar essa normatização. Aí nasceu o
casamento por amor, sacramentado pela Igreja e pelo Estado. 4 Porém, essa normatização não reflete a natureza do ser
humano e de suas necessidades. A sexualidade manifesta-se em todas as fases da
vida do ser humano e, ao contrário da conceituação vulgar, possui na
genitalidade apenas um de seus aspectos, possivelmente nem o mais importante. Entre os seres humanos, em nenhum lugar o sexo permaneceu
meramente como um ato físico para aliviar certas tensões corpóreas. Ele
transformou-se dentro de todas as sociedades humanas, para tornar-se uma área
básica para a moralidade e a organização. Numa distância ainda maior da
biologia, ele gerou temas que passam através da religião e da arte, assim como
participa de sistemas simbólicos excessivamente complexos. 1 Duas mudanças significativas na sociedade ocidental
promoveram a ruptura do casamento: uso difundido da contracepção e a quebra da
tradicional divisão de trabalho, através da quais homens e mulheres realizavam
tarefas diferentes, mas complementares. Em consequência, o sexo tornou-se a
frágil base do casamento, ou de se viver algum relacionamento menos
ritualístico. Como resultado do confronto entre o natural e a norma
social imposta de fora, grande parte das pessoas existentes no mundo possui ainda
problemas relacionados com sua sexualidade. Leis, imposições sociais e culturais
certamente concorrem para a existência desses problemas. Até há pouco, como
exemplo, a homossexualidade era considerada como um crime nos Estados Unidos.
Por pressão social passou a ser entendida como doença e, por fim, em Michel
Foucault (1926-1984), um dos principais filósofos do século XX e que abordou
temas relacionados entre o poder e o conhecimento, o discurso e instituições
sociais como a psiquiatria, a medicina, as prisões e a sexualidade, num olhar
sobre o estudo da evolução sexual no ocidente foi categórico ao afirmar que a
modernidade foi responsável pela mudança da arte
erótica em uma ciência sexual.
Com isso, foi estabelecido um regime de verdade sobre o sexo, punindo os
desviantes e normatizando o casal heterossexual. 7 Para Sérgio Telles, “as minorias sexuais durante muitos
anos foram proscritas, vítimas de preconceitos e sujeitas a penalidades legais.
Com a mudança da moral sexual ocorrida no século XX, passaram a ter uma
visibilidade maior e se organizaram politicamente, exigindo que seus direitos
fossem reconhecidos e questionando o rótulo de doente que lhes era pespegado”. 6
Ao lado de tudo isso, a progressiva consciência do “eu”
em seus direitos - impulsionada pela ampliação das comunicações internacionais
-, passou a entender e considerar o prazer sexual como parte de sua saúde e
bem-estar. Com isso, o entendido como normal,
estabelecido por critérios extemporâneos, foi se perdendo em seus limites. Mesmo assim, a infelicidade ainda permeia grande parte da
vida das pessoas na expressão de sua sexualidade. Estudos mostram que a
disfunção sexual feminina continua altamente prevalente, incidindo entre Além dos fatores intrínsecos às normatizações, tais como
sentimentos de culpa pela infringência das normas, inúmeros outros fatores são
responsáveis pelas disfunções sexuais. Muitas doenças físicas ou condições
médicas são capazes de causar problemas na função sexual. A depressão ocupa um
espaço proeminente nessa área e inúmeras são as constatações clínicas
registradas pela literatura científica internacional do quanto os sintomas
depressivos estão implicados em efeitos negativos sobre a sexualidade. Como o tratamento dessas ocorrências inclui o uso de fármacos
chamados até agora de antidepressivos, e como também eles são capazes de
promover paraefeitos indesejáveis, notadamente sobre a área da sexualidade -
fato a complicar os objetivos terapêuticos – merecem uma atenção especial. O presente trabalho ocupa-se deste tema, discute suas
várias nuances e privilegia o estudo desses compostos medicamentosos. Portanto,
este estudo tem a finalidade de fazer uma revisão sobre o efeito dos
antidepressivos na sexualidade humana, tendo em vista o crescente aumento da
indicação destas drogas em diversas patologias mentais e outras intercorrências
clínicas, principalmente nos quadros depressivos, ansiosos e com repercussões
na esfera somática. De maneira que se tenha uma visão mais ampla sobre o tema
são revisados alguns aspectos relacionados, como o histórico do estudo da
sexualidade, a evolução da sexualidade humana, o ciclo sexual humano e sua
fisiologia, a definição do que seja a disfunção sexual, seus vários determinantes
e as medidas terapêuticas disponíveis na atualidade. 1.
Breve histórico sobre o estudo
da sexualidade. O sexo é certamente um dos aspectos importantes da vida
humana, porém nos quatro milhões ou mais de séculos em que existem seres
humanos (ou semelhantes), apenas nas poucas últimas centenas de anos começaram os
estudos mais objetivos. Durante os séculos, mitos, superstições e crendices foram
capazes de criar na mente das pessoas as coisas mais horríveis sobre
circunstâncias anatômicas e fisiológicas do aparelho genital e sobre a
sexualidade. A menstruação esteve associada com enorme número de superstições,
p.ex., se um cão vier lamber o sangue menstrual tornar-se-á louco e sua mordida
incuravelmente venenosa e as relações deveriam ser suspensas no período; a
masturbação levava a queda da inteligência, alucinações noturnas, propensões
suicidas ou homicidas; quanto maior o pênis de um homem, mais efetivamente ele
irá satisfazer uma mulher; mulheres com seios pequenos são “ruins de cama”;
atividade sexual excessiva causa vários distúrbios, incluindo elefantíase,
cegueira, inchaço das gengivas, mau hálito, pernas fracas, embranquecimento dos
cabelos e calvície; todas as posições para o ato sexual, exceto a missionária
(a mulher deitada e o homem por cima), eram consideradas perigosas (o coito
realizado em pé levaria às convulsões e impediria a fecundação, sentados, ao
delírio, no chão, a filhos fracos, outras posições inaceitáveis, à diarreia). 1 Outras correlações anatômicas estiveram ou ainda estão
presentes no ideário das populações. Por exemplo, a correlação entre o tamanho
do pênis de um homem e o de seu nariz, pés ou mãos. No lado oposto, uma mulher
cuja boca é grande possuiria vagina grande. Ibidem Cabe lembrar que grande parte desses mitos e superstições
esteve presente até há pouco tempo, não somente no meio leigo. Entre as décadas
de quarenta e cinquenta, número expressivo de teses médicas, em praticamente todas
as faculdades de medicina do mundo ocidental, demonstrou os malefícios da
masturbação. O pioneiro no estudo da sexualidade foi Aristóteles (384- Para Gregersen, a história do estudo do sexo no ocidente,
ironicamente, teria começado na era vitoriana (século XIX, entre 1837-1901),
quando a mera menção de sexo era um tabu estrito. Possivelmente, a discrepância
entre o ideal e o real tenha sido muito grande para passar despercebido, o que
propiciou a iniciativa de promover pensamentos sérios sobre o assunto. 1
Nessa era, na Inglaterra, depois que a rainha Vitória ficou viúva, em Alguns estudos
apontam que na metade do século XIX o amor ainda não fazia parte totalmente do
casamento. O dever conjugal deveria ser cumprido, principalmente na cama e com
finalidade reprodutiva. Caso um dos cônjuges recusasse o ato sexual recorria-se
ao confessor, que censurava e podia negar a absolvição e a comunhão. 15
Em 1855, o Dr. Roubaud, expressando-se como um sexologista, foi um digno
representante dessa postura ao descrever sobre o orgasmo em seu livro “Tratado
sobre a impotência e a esterilidade no homem e na mulher”: “No orgasmo a
circulação se acelera (...). Os olhos, violentamente injetados, se tornam
esgazeados (...). A respiração, ofegante e entrecortada em alguns, se suspende
em outros (...). Os centros nervosos congestionados transmitem apenas sensações
e volições confusas (...). Os membros, tomados por convulsões e às vezes por
câimbras, agitam-se em todos os sentidos ou se estendem e se enrijecem como
barras de ferro; os maxilares cerrados fazem ranger os dentes, e algumas
pessoas levam tão longe o delírio erótico que, esquecendo o companheiro de sua
volúpia, mordem até sangrar um ombro que ali ficou incautamente abandonado.
Esse estado frenético, essa epilepsia e esse delírio geralmente duram pouco. No
entanto, bastam para esgotar as forças do organismo”. Ibidem Embora a descrição possa conter atitudes e manifestações
resultantes da fisiologia humana, há nela um forte conteúdo negativo, como algo
brutal e ao ponto do descontrole por parte dos participantes no momento do
orgasmo. Tal descrição, certamente, possuía o intensão de desmotivar os casais
em obter o prazer em suas relações sexuais. Caso chegassem próximo a esse
desiderato, sentimentos de culpa restariam implícitos. Ao lado disso, surgiu a ciência empírica, o
desenvolvimento da medicina e psicologia, o enfraquecimento da crença nas
religiões e nos códigos morais em geral. 1 Descobertas
significativas aconteceram graças à invenção do microscópio no século XVII.
Através dele, Leeuwenhoek, pela primeira vez, encontrou espermatozoides no
sêmen de insetos, de cães e do homem em 1677. O óvulo humano foi descoberto em
1827 por Karl Ernst von Bauer, Hertwig foi o primeiro
cientista a observar o momento exato da fertilização em ouriços-do mar e, em
1860, Abbé Mendel abriu as portas da genética com suas leis. Os sexologistas deste período foram perseguidos de várias
maneiras, tanto pessoal como profissionalmente. Livros e artigos, mesmo de
respeitabilidade científica, foram proibidos de serem publicados e a própria
publicação era um sério problema. Dois nomes foram salientes no período: Richard
von Krafft-Ebing (1840-1902) e Havelock
Ellis (1859-1939). Os livros de Ellis foram proibidos na Inglaterra e somente
foram publicados na Alemanha. Por sua vez, Krafft-Ebing
foi mais aceito por ter caracterizado o sexo “como uma doença repugnante” e por
ter escrito as partes mais picantes de seus livros em latim. 1 Cabe registrar que Krafft-Ebing,
psiquiatra alemão, introduziu pela primeira vez os conceitos de sadismo,
masoquismo e fetichismo que se tornou referência para todos os estudos
posteriores nesse campo das chamadas “perversões”, inclusive a obra freudiana. 16
O trabalho de Havelock Ellis é
considerado como o mais importante em estudos transculturais. Ele próprio
admitiu que a partir dos seus 16 anos teria entendido que a principal tarefa de
sua vida seria poupar a juventude das futuras gerações do problema e
perplexidade que a ignorância sobre os verdadeiros fatos do sexo lhe causou. O
tema central de seus estudos é que as pessoas diferem sexualmente e que
culturas diversas, em várias épocas, tiraram proveito destas diferenças. O sexo
é claramente um imperativo fisiológico, mas a sociedade pode dominar essa
expressão de maneiras incrivelmente poderosas. 1 Por sua
vez, Freud não foi um pesquisador da sexualidade em termos práticos, ao
contrário, construiu um arcabouço teórico sobre o desenvolvimento da
sexualidade em fases da libido. Ele também, um fruto da era vitoriana, tentou
estabelecer um modelo universal dos passos da maturação sexual humana. Ele
acreditava que a cultura poderia apenas ter um efeito superficial sobre o que
era, basicamente, uma matéria concernente à biologia. Ibidem A teoria
freudiana apontava que nos primeiros anos de vida as principais características
da sexualidade estavam intrinsicamente relacionadas às funções somáticas, à sua
expressão autoerótica e à sua subordinação a determinadas zonas erógenas. Tais
características ou etapas do desenvolvimento psicoemocional, que toda criança
passaria, teriam fases distintas: oral, anal e fálica. Segundo
Volpi e Leszczynski, “Com isso, há que se reconhecer
o caráter sexual da amamentação, do
controle dos esfíncteres e da descoberta dos órgãos genitais, que se manifesta,
respectivamente, nos atos de mamar e/ou chuchar, de reter e/ou expulsar as
fezes e a urina e de reconhecer a diferença anatômica e o prazer obtido na masturbação.
Relacionam-se ainda a essas funções e ações a primazia de regiões específicas
do corpo que, estimuladas, provocam sensações prazerosas, migrando segundo a
ordem: boca, esfíncteres anal e vesical, órgãos genitais”. 17 Ao
elaborar essa teoria sobre o comportamento humano em relação à evolução da
sexualidade desde as etapas infantis, Freud igualmente sofreu acirradas contestações
e críticas negativas. Segundo
Laplanche e Pontalis (Apud Gregersen), o termo
sexualidade não designa apenas atividades e o prazer que dependem do
funcionamento genital, mas toda uma série de excitações e atividades presentes
desde a infância, cujo prazer é irredutível à satisfação de uma necessidade
fisiológica básica. 1 Para eles
“A questão da sexualidade começa na infância. Ao alimentar o bebê, a mãe (ou a
substituta) não está apenas saciando a fome, mas há, aí, uma experiência de
prazer: prazer da mãe que o alimenta, o contato corporal, a mãe que conversa e
acaricia seu bebê, criando, assim, um gozo na fusão e completude entre mãe e
filho. Nesta fase da vida é impossível para o bebê distinguir a satisfação do
saciamento da fome da satisfação sexual, elas coexistem. Podemos pensar a
sexualidade como instâncias de satisfações físicas somadas às experiências
psíquicas”. Ibidem Uma
observação deve ser feita à guisa de conhecimento e reforço. O que se fala aqui
diz respeito ao entendimento dos comportamentos sexuais na sociedade ocidental.
Em outras sociedades os costumes promoviam o treinamento sexual, como na
polinésia, onde os garotos adolescentes eram tradicionalmente designados a
mulheres casadas, mais velhas, que se encarregavam de seu aprendizado. Na
Índia, desenvolveu-se uma tradição sofisticada e informativa que culminou com a
edição do Kaama suutra (Os
preceitos do prazer) de Vaatsyaayana, datado de cerca
de 200-400 AD, o qual provavelmente representa uma continuação de tradições
muito anteriores. Nesta obra, 25 posições sexuais foram descritas para o ato
sexual. Vários outros manuais similares foram derivados ou
inspirados nesse manual e deram continuidade à sua forma. Estes incluem o Koka shastra, de Koka Pandita (século XII), e o Ananggarangga (Teatro do deus do amor) de Kalyaanamalla (século XV). Todos esses livros ou manuais
eram respeitados na sociedade indiana e o Kaama suutra, em particular, era considerado uma revelação dos
deuses. 1 Portanto, os atos sexuais foram classificados por várias
sociedades antes do crescimento da sexologia moderna, notadamente a partir da
edição desse livro e sem nenhuma conotação de censura, pecado ou consequente culpa. Retornando ao estudo sobre o comportamento sexual na
sociedade ocidental, Hirschfeld (um judeu oriundo da cidade prussiana de
Kolberg, atualmente chamada de Kolobrzeg e situada na
Polônia), em 1897, na Alemanha (Berlim), fundou um centro científico para o
estudo do sexo cujo objetivo era defender os direitos dos homossexuais e
revogar o parágrafo 175 da lei alemã, que penalizava as relações homossexuais. Nesse
centro havia a oferta de aconselhamento para todos os tipos de problemas
sexuais. 18 Hirschfeld desenvolveu a teoria do terceiro sexo, segundo a qual os homossexuais estariam numa posição
intermediária entre o homem e a mulher heterossexuais. Ele acreditava que os
seres humanos possuem elementos masculinos e femininos em proporções variáveis.
Em 1908 conheceu Freud em Viena e se tornou, logo depois, um dos membros
fundadores da secção da Sociedade Psicanalítica em Berlim. Com a tomada do poder pelos nazistas, seu instituto foi
destruído e sua biblioteca, composta por mais de 10.000 volumes, incendiada. Em
1934 foi privado de sua nacionalidade e, no ano seguinte, assassinado por um
agente da Gestapo na cidade francesa de Nice. Ibidem Enquanto isto, nos Estados Unidos, alguns movimentos
tentavam criar um instituto semelhante para o estudo da sexualidade, sofrendo
sérias resistências. Grande parte das iniciativas era barrada pela falta de
financiamento. Entretanto, Alfred Kinsey, um entomologista e zoólogo
norte-americano, em 1947, na Universidade de Indiana, fundou o Instituto de
Pesquisa sobre Sexo, hoje chamado de Instituto Kinsey para Pesquisa sobre Sexo,
Gênero e Reprodução. 19 Suas pesquisas sobre sexualidade humana influenciaram
profundamente os valores sociais e culturais dos Estados Unidos, de modo
especial na década de sessenta, início da revolução
sexual. Grandes resistências questionaram seu trabalho e conclusões, pois
atingiam o âmago de supostas verdades sobre o comportamento sexual das pessoas.
No início de seus estudos, como entomologista, percebeu
que nenhuma vespa era igual à outra, e que as práticas de acasalamento delas
eram extremamente variadas. A partir daí, intuiu que essa diversidade sexual
seria também comum entre os animais e os humanos. Dando-se conta de que existia
falta de estudos sobre a sexualidade humana, conseguiu recursos da Fundação
Rockfeller e, em 1935, juntamente com pessoas previamente habilitadas, iniciou
as pesquisas com milhares de pessoas nos Estados Unidos entre diversas classes
sociais e idades. A publicação do primeiro volume do relatório sobre a
sexualidade humana (Sexual Behavior in the Human Male), em 1948, originou
enorme polêmica. O mesmo ocorreu com seu segundo relatório (1953), agora sobre
as mulheres (Sexual Behavior in the Human Female), com efeito semelhante ao
primeiro. A sociedade americana de então, chocada, tomou conhecimento de que
92% dos homens e 62% das mulheres se masturbavam, que 37% dos homens e 13% das
mulheres já tinham tido uma relação homossexual que lhes tinha proporcionado um
orgasmo. 1 De acordo com Kinsey, os seres humanos não se classificam
quanto à sexualidade em apenas duas categorias (exclusivamente heterossexual e
exclusivamente homossexual), mas apresentam diferentes graus de uma ou outra
característica extrema. Resumidamente, seriam divididos nas seguintes subcategorias: ·
heterossexual
exclusivo; ·
heterossexual
ocasionalmente homossexual; ·
heterossexual
mais do que ocasionalmente homossexual; ·
igualmente
heterossexual e homossexual, também chamado de bissexual; ·
homossexual
mais do que ocasionalmente heterossexual; ·
homossexual
ocasionalmente heterossexual; ·
homossexual
exclusivo, e ·
indiferente
sexualmente. Além dessas categorias, Kinsey acreditava que a
diversidade sexual não poderia excluir determinadas parafilias, como a
pedofilia. Com este entendimento, também baseado em suas pesquisas, foi
considerado como condescendente com essa preferência e duramente criticado por
conservadores e religiosos. Embora até hoje os seus estudos e conclusões continuem a serem
contestados por inúmeros fatores científicos, morais e religiosos, eles são
considerados como responsáveis por um dos maiores estudos mundiais do
comportamento sexual humano. Cabe mencionar que suas pesquisas e relatórios
serviram de base, ao lado de outros aspectos, para que a Associação
Psiquiátrica Americana, em 1973, removesse a homossexualidade da lista de
transtornos mentais, o mesmo ocorrendo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)
a partir de 1986. Os achados de Kinsey mostraram que o comportamento
sexual dos indivíduos varia enormemente dentro de uma sociedade. Anos mais
tarde, como veremos a seguir, Masters e Johnson publicaram um livro resultante
de seu estudo sobre a sexualidade humana em observações realizadas em
laboratório. Por sua
vez, os antropologistas também registraram suas pesquisas. Heródoto, no século
V, seria o autor da primeira teoria antropológica relativa à sexualidade, livre
da explicação mitológica. Para ele, as pessoas que viviam em climas quentes
eram mais ativas e menos reprimidas do que as que habitavam em áreas frias.
Segundo Mott, foram necessários mais de 1.500 anos para que finalmente, em
1980, George Murdock testasse essa hipótese: “de fato,
com uma amostra de 126 sociedades, comprovou ser acertado o insight do mestre
grego, observando-se correlação significativa entre sociedades sexualmente
dionisíacas e climas mais quentes, predominando, em oposição, tendências
sexuais apolíneas em nichos ecológicos mais frios”. 20 Antropólogos como Malinowski (1884-1942) e Margaret
Mead (1901-1978) contribuíram, com seus achados, à
compreensão de determinados papeis sexuais existentes em algumas sociedades
mais primitivas. De maneira a se entender e absorver a extensão das ideias de
Malinowski, eis uma conclusão de seus estudos (Apud Mott): “Se se quer
compreender, mesmo de modo aproximado, a moralidade sexual de uma civilização
completamente diferente da nossa, é necessário não perder de vista o fato de
que o impulso sexual nunca é inteiramente livre e, de outro lado, jamais pode
ser inteiramente subjugado pelos imperativos sociais. Os limites da liberdade
podem variar, mas sempre existe uma esfera na qual esta liberdade está
determinada por fatores biológicos e psicológicos, do mesmo modo que existe
outra na qual o papel dominante está dado pelo costume e pela convenção”. Ibidem
A chamada
“revolução sexual” no ocidente iniciou com os estudos de Kinsey e avançou até
nossos dias. Contribuíram sobremaneira à revolução a introdução da pílula
anticoncepcional e a progressiva eliminação dos distintos papeis sociais entre
os homens e as mulheres. A entrada das mulheres no mercado de trabalho
modificou profundamente as relações entre os funcionários de empresas,
aconteceram movimentos contra o uso de sutiã, as mulheres ganharam mais
liberdade. Homens, por outro lado, também tiveram mais liberdade para conviver
com outros homens em locais determinados para encontros, a homossexualidade
ganhou espaço libertário. A educação sexual chegou a Internet, com sítios
esclarecedores sobre práticas sexuais explícitas, favorecendo e incentivando
sua expressão sem limites, restrições ou culpas. Entretanto,
segundo Mott, com o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA)
no início da década de 80, “a mais global e destrutiva doença sexualmente
transmissível conhecida em toda a história, a pesquisa sobre a sexualidade
humana adquiriu o mesmo status e grau de urgência dos estudos que a UNESCO
patrocinou sobre raça e racismo logo após o holocausto nazista” 20. A SIDA
abalou profundamente a liberalização da sexualidade, inicialmente entre os
homossexuais e, mais tarde, entre os heterossexuais. O abalo promoveu mudanças
nos cuidados e colocou um freio nas atitudes concernentes à sexualidade. Porém,
ao lado das consequências dessa virose assustadora e letal, as transformações
das mentalidades e hábitos provocados por essa revolução sexual determinaram o
surgimento de outros problemas sociais significativos e promotores de
inquietações: a gravidez infanto-juvenil, o aborto, a fecundação in vitro e a
união homossexual juridicamente consentida, incluindo a possibilidade de que
casais homossexuais possam adotar filhos. Novas
frentes se abrem no estudo sobre a sexualidade. Ao que parece, assim sempre
acontece em relação ao ser humano em sociedade: superadas algumas arestas
outras se tornam desafiadoras à nossa inteligência e perspicácia, como, por
exemplo, de que maneira realizar a educação sexual/sentimental frente a esses
desafios no presente e em futuro próximo. Como a sociedade se modifica lentamente,
não existem parâmetros, bulas ou receitas prontas a serem seguidos, tudo se
transforma e novos contornos aparecem. O estudo
sobre a sexualidade humana, mesmo depois de séculos de avanços e retrocessos,
permanece um campo merecedor de atenção pela complexidade de situações
derivadas do comportamento do ser humano enquanto composto por aspectos
biológicos, psicológicos e sociais. Referências 1.
Gregersen
E. Práticas Sexuais – A História da Sexualidade Humana. São Paulo: Livraria
Roca, 1983. 323 p. 2.
Bíblia
Sagrada. Gênesis. Rio de Janeiro: Vozes, 1982. 3.
Vitiello N. Um breve histórico do estudo da
sexualidade humana. Revista Brasileira de Medicina. 1998 Nov;
98(55). Disponível em http://www.drcarlos.med.br/sex_historia.html Acessado em 16/04/2011. 4.
Macfarlane
A. História do casamento e do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,
p.p.391. 5.
Classificação
de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e
Diretrizes Diagnósticas – Coord. Organiz. Mund. da
Saúde; trad. Dorgival Caetano. – Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993. 6.
Telles
S. Uma lição de transcidadania – transexualismo não é mais considerado uma
doença mental na França. Psychiatry on line Brasil. 2010 Mar; 15 (3). 7.
Foucault
M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 5ª ed. 1985. 8. Hartmann U. Depression and sexual dysfunction: aspects of a
multi-faceted relationship. Psychiatr Prax. 2007 Sep; 34 Suppl 3:S314-7. 9.
Laumann EO, Paik A. Sexual dysfunction in the United States. JAMA. 1999 Feb; 281(6): 537-544. 10. Sexual dysfunction. Wikipedia, the free encyclopedia. Available at http://en.wikipedia.org/wiki/Sexual_dysfunction Acessado em 16/04/2011. 11. Prado DS, Mota VPLP,
Lima TA. Prevalência de disfunção sexual em dois grupos de mulheres de
diferentes níveis socioeconômicos. Rev.Bras.Ginecol.Obstet. 2010 Mar; 32(3):139-143. 12.
MESQUITA
EM, RÊGO MAS, SCANAVINO MT, ABDO CHN. Frequência e evolução das disfunções
sexuais masculinas no Projeto de Estudos em Sexualidade (ProSex)
do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Disponível em http://www.usp.br/siicusp/Resumos/17Siicusp/resuos/3580.pdf. 13.
MALE
SEXUAL DYSFUNCTION. Disponível em http://www.merckmanuals.com/professional/sec17/ch227/ch227c.html. Acessado em
16/04/2011. 14.
Século
XIX: A Era Vitoriana. O orgasmo. Disponível em http://camanarede.terra.com.br/orgasmo/prazer_04.htm Acessado em 21/05/2011.
15.
Século
XIX: O sexo e as classes sociais. O orgasmo. Disponível em http://camanarede.terra.com.br/orgasmo/prazer_05.htm Acessado em 21/05/2011. 16.
Pereira
MEC. Krafft-Ebing, a Psychopathia
Sexualis e a criação da noção médica de sadismo. Rev.latinoam.psicopatol.fundam. 2009 Jun; 12(2):379-86. 17.
Volpi
SM, Leszczynski SAC. A evolução da sexualidade e as
causas e consequências de sua repressão ao longo do desenvolvimento físico,
energético e emocional: perspectiva psico-corporal.
In: Encontro Paranaense, Congresso Brasileiro, Convenção Brasil/Latino-América,
XIII, VIII, II, 2008. Anais Curitiba: Centro Reichiano,
2008. Disponível em www.centroreichiano.com.br. Acessado em
10/05/2011. 18.
Magnus
Hirschfeld. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Magnus_Hirschfeld Acessado em 30/04/2011.
19.
Alfred
Kinsey. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey. Acessado em
30/04/2011.
20.
Mott
L. Teoria Antropológica e Sexualidade Humana. Disponível em http://www.antropologia.ufba.br/artigos/teoria.pdf. Acessado em
05/05/2011. *Parte
1 e extrato de estudo sobre “Antidepressivos e disfunções sexuais”. O texto em
sua íntegra poderá ser encontrado no livro “O uso de antidepressivos na clínica médica”. Porto Alegre: Sulina, 406 p., coordenado por Crespo de
Souza.
|