Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2

Artigo do mês

EXPLOSÃO POR BOMBAS E O “PROBLEMA MENTE-CORPO”: TRAUMAS CEREBRAIS ORGÂNICOS X PSÍQUICOS

Carlos Alberto Crespo de Souza

1.      Introdução.

      Há muito as questões sobre o que é orgânico e o que é psíquico, mente e corpo, razão e alma ou sentimento, têm motivado a atenção de pensadores, filósofos e psiquiatras. Supostamente, desde interpretações duvidosas, alguns textos de Descartes (1596-1650) transformaram-se num paradigma adotado pela intelectualidade ocidental e trouxeram ao entendimento comum de que o corpo e a mente eram partes separadas. A divisão cartesiana foi simplesmente reproduzida aos milhares, evidenciando o quanto essa interpretação tomou conta da cultura científica e leiga. Poucos estudiosos colocaram-na em cheque ou duvidaram de que ele realmente tivesse pensado (e escrito) tal divisão, exatamente aqueles que se aprofundaram em suas publicações. Registre-se de que o mais fácil é repetir o que está dito ao invés de investigar, estudar e ir além do supostamente estabelecido. 1

      Sturm e Wunderlich, considerando as visões de Kant sobre o problema mente-corpo (1724-1804), evidenciaram que ele nunca admitiu a redubilidade nas propriedades mentais, porém de substâncias, e suas concepções sobre a possibilidade de uma psicologia como uma ciência não utiliza ou requer uma explicação mecanicista, porém uma quantificação do fenômeno. 2  

      De acordo com Romand, durante o século 19, a questão sobre a relação entre a alma e o corpo foi profundamente renovada pelos estudos psicológicos germânicos. As novas concepções elaboradas sobre a relação entre o psíquico e o físico coincidem com o aparecimento de um paradigma cognitivista, no qual os fenômenos mentais são considerados como entidades que podem ser individualizadas, isoladas e, então, correlacionadas com atividades dos substratos neurais específicos. Segundo esse autor, os psicologistas germânicos foram confrontados com o problema da correlação entre a vida psíquica e o sistema nervoso (localização dos fenômenos mentais e a natureza de suas correlações), e propuseram uma extensa análise das condições neuronais e da emergência dos processos psíquicos. 3  

      Para Kendler, dentre todas as profissões humanas, a psiquiatria é a mais centralmente preocupada com a relação entre a mente e o corpo. Na maior parte das interações clínicas os psiquiatras necessitam considerar tanto as experiências mentais subjetivas e os aspectos objetivos da função cerebral. 4 Os estudos da neurociência, segundo Paris, têm contribuído mais ao entendimento do cérebro do que na determinação das causas dos transtornos mentais. Seu modelo é mais apropriado aos transtornos mentais graves do que aos mais comuns. Os transtornos mentais para esse psiquiatra canadense não podem ser reduzidos a anormalidades nas atividades neuronais; os sintomas psiquiátricos necessitam ser compreendidos em múltiplos níveis. 5 

      Segundo Van Oudenhove e Cuypers, paralelamente a psiquiatria, a “filosofia da mente” investiga a relação entre a mente (domínio mental) e o corpo/cérebro (domínio físico). Eles comentam que a estrutura conceitual do “problema mente-corpo”, como formulada na filosofia analítica contemporânea, contém implicações muito amplas que alcançam a psiquiatria como uma disciplina clínica-científica, especialmente para sua autonomia e seu relacionamento com a neurologia/neurociência. 6  De acordo com Tress, o debate sobre a questão em torno se os eventos mentais são ontologicamente independentes da fisiologia cerebral ou se eles são, de fato, inteiramente determinados por ele, está em discussão há mais de cem anos. Após descrever alguns aspectos do chamado “problema mente-corpo”, ele manifesta a importância de considerar duas perspectivas na psiquiatria: a da visão (nossa) da pessoa em avaliação (perspectiva da terceira pessoa) assim como a de utilizar nossa sensibilidade empática de maneira a explorar a experiência fenomenológica da primeira pessoa (visão da própria pessoa sobre sua condição ou seu problema). Com isso, ele evidencia que o psiquiatra deve atuar na clínica tendo uma concepção holística do somático e do psíquico. 7  

      Segundo Vertztman, “a perspectiva da primeira pessoa coloca no centro de suas preocupações a experiência da subjetividade, ou melhor, a subjetividade como experiência humana irredutível a qualquer tentativa de objetivação por métodos de quantificação característicos da perspectiva da terceira pessoa”. 8          

      A divisão cartesiana também foi incorporada à medicina e ali se encontra incrustada e fortemente instalada. Freud, ao admitir transformar seu “Ich” em “Ego” e seu “Es” em “Id”, assim como “psique” (alma, algo inefável, borboleta) em “mente” – trocou instâncias ou construtos humanísticos, inteligíveis e facilmente perceptíveis literalmente como “eu” e “isso” – em palavras neutras que nada têm a ver com o ser humano. Rendeu-se, pois, à necessidade de ser aceito pela medicina, a qual não admite a psique ou o psíquico, com o significado de alma, até os dias de hoje. Quem atende pacientes em psicoterapia ou em ambulatórios de saúde mental é capaz de reconhecer, facilmente, quando uma determinada pessoa menciona que ele está sendo dominado pelo “isso”, a linguagem do inconsciente. Jamais ouvirá que está sendo dominado pelo “id”. Frases como “Doutor, isso está me constrangendo”, ou “Isso está me impedindo de fazer o que é preciso”, ou ainda “O diabo (isso) me domina, não sei como parar” são exemplares de uma linguagem comum, perfeitamente compreensível e muito significativa da incapacidade humana em decidir sobre sua vida e subservientes a algo que ignoram (inconsciente).

      Com o desaparecimento do “eu” freudiano e da alma, Kohut veio em auxílio da psicanálise utilizando o construto “self”, tentando substituir, com essa denominação, o significado do eu perdido e suas prerrogativas, fundamental ao entendimento das ações humanas. Sobre essas traduções, Damásio expressou: “a tradução de termos científicos da língua inglesa para as línguas latinas é um reconhecido problema. A correspondência da palavra “self” não existe nessas línguas” e, por isso, em seu novo livro, em edição portuguesa, aceitou que seu editor empregasse a palavra “eu” quando ele havia escrito “self” nos seus manuscritos em inglês. Anteriormente, em outras publicações, ele referiu-se ao self como “si” ou “si mesmo” e agora, optou pelo “eu”, por entender ser essa palavra mais adequada para expressar seus pensamentos e significados sobre o cérebro consciente. 9 

      Santoro e cols., num excelente artigo, realizaram um estudo histórico abrangente sobre a localização anatômica da alma desde o coração, através do cérebro e no corpo inteiro segundo representações filosóficas, teológicas e científicas desde os egípcios até o período contemporâneo. Na história, segundo eles, existiram dois conceitos predominantes e incompatíveis sobre a alma: num, em que o entendimento sobre a alma era espiritual e imortal e, no outro, entendendo a alma como sendo material e mortal.  Concluíram que seus estudos foram enriquecedores e que os capacitaram a avaliar o significativo papel que o conceito de alma desempenhou no desenvolvimento da vida científica, médica e espiritual ocidental. Mostraram, também, que embora as ideias ou concepções sobre a alma tenham se alterado bastante através da história, a ideia de uma alma como sendo algo real e essencial para que uma personalidade possua uma existência ou identidade permanece infiltrada através de cada período histórico ocidental. 10                                   

      Quando António Damásio publicou seu livro “O erro de Descartes”, em 1994,  descrevendo um caso de traumatismo craniencefálico grave com repercussões psicológicas e comportamentais posteriores, a partir daí houve uma abertura de olhos a esse tipo de fenômeno, tanto é que seu livro foi editado em 38 países.11 Sua repercussão foi muito grande tanto no meio acadêmico médico quanto na literatura leiga, como se tais casos nunca tivessem sido percebidos pela medicina anteriormente (demonstrando o quanto os efeitos psicológicos e comportamentais derivados de traumas cerebrais não fossem detectados por negação ou absoluta ignorância).

      Mesmo com o impacto dessa publicação de Damásio, as estruturas médicas – embora abaladas - não se alteraram. Tal constatação permitiu questionar por quais razões a medicina levou tanto tempo em descrever tal fenômeno clínico quando o cérebro sofre algum tipo de trauma cerebral. Por qual motivo ignorar o déficit de percepção emotiva – descrito pelo neurocientista português? Ele mostrou que a razão, quando isolada das emoções, torna-se estéril, sem graça e inconsequente. Ninguém percebeu isso antes, com inúmeros acidentados por traumas cerebrais durante anos a fio em numerosos países? E o que dizer das concussões e do silêncio sobre elas e o fato de que apenas em 2010 nasceu o conceito do que seja um traumatismo craniencefálico? 1,12 Que resistências são essas que têm impedido a compreensão dos traumas craniencefálicos em suas consequências, mormente as psíquicas ou comportamentais? Será que a resposta está centrada na impossibilidade de aceitação pura e simples de que não possuímos sentimentos e que esses não têm lugar em nosso cérebro?

2.      Breve histórico sobre a evolução da íntima relação entre os traumas cerebrais orgânicos e psíquicos.

            Até 1993, de acordo com Bryant e Harvey, apud Crespo de Souza, os poucos estudos que relacionaram os traumatismos craniencefálicos aos do estresse pós-traumático não evidenciaram qualquer associação entre ambos. 13 De um lado estavam os traumatismos craniencefálicos de qualquer grau e, de outro lado, as alterações decorrentes do estresse pós-traumático. Naturalmente, os pontos de vista antagônicos expressavam uma dicotomia muito clara, bastante favorecida pelo fato de que a neurologia e a psiquiatria atuavam em campos distintos, pouco se comunicando entre si, o que, infelizmente, ainda ocorre em nossos dias no mundo ocidental.

      De maneira especial as questões intrigantes mais chamativas diziam respeito aos traumas cerebrais leves ou por concussão e os quadros agudos ou mais duradouros do estresse pós-traumático. A sintomatologia em ambas as situações é muito semelhante e, às vezes, de difícil diferenciação, pois grande parte de seus sintomas são superponíveis 14.  

      Com a progressão do conhecimento, muitas das questões foram esclarecidas. A   síndrome pós-concussional decorrente dos traumas leves ou por concussão - com seus sintomas físicos, sensoperceptivos, cognitivos e emocionais ou psíquicos que podem perdurar por dias, semanas, meses ou pelo resto da vida - foi reconhecida. Por sua vez, houve a identificação de que traumas psíquicos de menor expressão também são capazes de provocar reações estressantes, diferentemente do que se pensava antes, de que somente as grandes catástrofes seriam capazes de promovê-las. Outro ponto a merecer correções no entendimento foi o da concomitância desses diagnósticos. Pensava-se que a amnésia pós-traumática determinada por traumas encefálicos moderados e graves “protegeriam” as pessoas atingidas contra as ansiedades específicas relacionadas com o estresse pós-traumático, fato contestado por estudos posteriores que identificaram essas reações estressantes mesmo na vigência de perda de consciência, denominando-as de “resposta estressante atípica”, como se a pessoa, ao apresentar respostas estressantes, estaria tendo manifestações não compreensíveis ao entendimento clínico e, por isso, denominadas de “atípicas”. 15    

      Num caso clínico estudado por Crespo de Souza e mencionado por ele em Avanços em Clínica Neuropsiquiátrica, 2005, foi descrito que um menino de cinco anos e sua mãe, ao saírem de um supermercado numa cidade brasileira, foram assaltados. Três homens armados pegaram o carro, colocaram-na na frente, ao lado do motorista, enquanto Mateus (nome fictício) ficou com os outros, sentado no banco traseiro entre os dois e sem cinto de segurança. Saíram do supermercado em corrida desabalada e, poucas quadras adiante, bateram num poste. Com o choque, Mateus foi projetado do banco onde estava e lançado através do vidro dianteiro, caindo a uns três metros do veículo e batendo a cabeça no cordão da calçada. Em consequência, sofreu um traumatismo craniencefálico grave, com 45 dias em coma. 13  

      Sua recuperação foi lenta, de anos. Bem melhor de um modo geral, num determinado momento o pai revelou uma situação que passou a acontecer com ele: “Uma coisa notável, do ponto de vista psíquico, é um medo que o leva a travar os músculos do corpo inteiro, ficar pálido e com suores frios quando em lugares com janelas de vidro, que reconhece perfeitamente como sendo um medo de cair, embora tenha capacidade de subir em aviões ou nesses brinquedos de carrossel, com aviões que sobem e descem, sem problema algum...”.   

      Na interpretação desse caso clínico ficou evidenciado que, antes da perda da consciência, houve tempo suficiente, muito rápido, para que o cérebro percebesse as ameaças à integridade pessoal de Mateus. A representação dessas imagens ameaçadoras (vidros), gravadas em segundos ou em milésimos de segundo, foi suficiente para promover as manifestações posteriores de ansiedade autonômicas no seu reencontro com vidros, caracterizando um transtorno de estresse pós-traumático mesmo que, logo depois, tenha sofrido um traumatismo craniencefálico grave. Em seus estudos sobre esses traumas compartilhados, que não foram poucos, Crespo mencionou que nunca foi constatado tal registro ou observação, fato inquietador sobremaneira. O caso relatado teria sido único no universo científico médico? Ou existem outros tantos não mencionados?  Se existirem outros, por quais razões não foram publicados e inseridos nos sistemas de busca? 

Bryant, em recente artigo e já incorporando os últimos conhecimentos, observa que  os transtornos do estresse pós-traumático  (TEPT) e os traumatismos craniencefálicos (TCE) muitas vezes coexistem em virtude de que em grande parte das vezes ocorrem em experiências traumáticas. Além do mais, ele registra evidências a sugerir que os TCE leves podem aumentar o risco para o surgimento dos TEPT, e que os prejuízos secundários aos TCE leves são amplamente atribuídos às reações estressantes depois do trauma. Outra importante ilação mostrada por ele é o desafio representado pela possibilidade de que os sintomas pós-concussivos não ocorram em função dos insultos neurológicos. Desta forma, as evidências estariam a indicar novas direções no tratamento dos sintomas pós-concussivos, privilegiando o tratamento dos fatores estressantes, os quais podem otimizar os efeitos negativos dos TCE leves. 16   

Outros autores, em artigos também recentes, descrevem e reforçam o entendimento já existente de que os traumatismos craniencefálicos leves e sua síndrome pós-concussional consequente, as quais, de maneira típica, se resolvem entre dias ou semanas, podem prolongar-se por semanas, meses ou anos depois da lesão encefálica. Seus sintomas, além de resultarem das alterações neurológicas, estão associados com fatores psicológicos. Chegam a questionar se esses traumatismos craniencefálicos leves são realmente leves como nós pensamos, e se inclinam em admitir as dificuldades diagnósticas e de tratamento dessas situações. 17,18,19   

3.      Lesões cerebrais primárias por explosões.

            Lesões derivadas de combates e explosões estão aumentando ao redor do mundo. Como tal, os médicos podem esperar em tratar cada vez mais pacientes com padrões complexos e únicos de lesões produzidas não apenas por fragmentos e traumas abruptos, mas, também, pela alta pressão de expansão do ar derivada do centro detonador de uma bomba. 20  De maneira a entender os efeitos das explosões indutoras de lesões traumáticas cerebrais, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos realizou um encontro do qual participaram neurocientistas, engenheiros e clínicos em abril de 2008. 21    

            As lesões tissulares provocadas pela onda explosiva ou lesões primárias por explosões podem ser uma importante causa de trauma oculto ocular, auricular, pulmonar, cardiovascular, musculoesquelético e do sistema neurológico 20,22. Quanto aos traumas do sistema neurológico, vários autores apontam que os traumatismos craniencefálicos (TCE) consequentes de explosões ocorrem através de múltiplos mecanismos. Eles têm sido a maior causa de mortalidade e morbidade nas invasões do Iraque e Afeganistão, chegando ao ponto de que sejam reconhecidos como a maior implicação médica. Porém, o que não está claro é se as lesões primárias pela onda explosiva causam alterações cerebrais através de mecanismos distintos daqueles que usualmente acometem civis com TCE e se múltiplas exposições de baixo nível explosivo possam conduzir a sequelas de tempo mais prolongado. Ao lado dessas constatações, os autores referem que um dos complicadores nos soldados que sofreram TCE é o fato de que há elevada prevalência do TEPT. Referem, ainda, que até o presente essa relação não está esclarecida, o que afeta as estratégias de tratamento e de prevenção. 23,24,25

            Otis e cols., ao analisarem as consequências das alterações encontradas em soldados oriundos do Iraque e do Afeganistão, mostram que, ao lado dos TCE e do TEPT, eles apresentam ainda outro importante sintoma complicador: a dor crônica. Os traumatismos craniencefálicos leves ou por concussão são os mais prevalentes e têm comorbidade com os transtornos do estresse pós-traumático e da dor crônica. 26 Rosenfeld e Ford acrescentam ainda que outro sintoma comum é a depressão que acompanha esses quadros determinados pelas explosões, o que se traduz por uma significativa sobreposição para o diagnóstico ou o entendimento do que está promovendo tal sintomatologia. 27 McAllister e Stein mostram que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos promoveu um programa agressivo de investigação para identificar essas questões, com ênfase na necessidade de distinguir os efeitos dos traumas biomecânicos dos psicológicos. 28  

            Rona e cols., verificando a existência de discrepâncias entre os registros de traumatismos craniencefálicos leves entre as forças militares dos Estados Unidos e do Reino Unidos - expostos aos mesmos riscos e considerados segundo o mesmo método – com número bem superior de soldados americanos atingidos, questionaram essas discrepâncias. No artigo, publicado em 2012, inferiram que, possivelmente, os números de comprometidos a maior dos soldados americanos foi decorrente de diferentes métodos na consideração dos desdobramentos dos casos, com avaliações de mensuração entre incidência ou prevalência. Mesmo assim, deixaram claro que essa ilação não elimina as diferenças encontradas entre os soldados americanos e ingleses com o diagnóstico de TCE leves no Iraque e Afeganistão. 29     

4.      Comentários.                               

       Os traumatismos craniencefálicos são considerados hoje como a principal causa de morbidade e mortalidade tanto em países industrializados como em desenvolvimento. As causas mais frequentes de traumas encefálicos entre civis que habitam as cidades são os acidentes com veículos automotores, as agressões físicas de qualquer natureza (assaltos, tiros, pancadas), atividades esportivas e acidentes domésticos, entre outros. A cada ano, nas estradas, principalmente por ocasião de comemorações de datas festivas, milhares, pelo mundo afora, encontram a morte ou são gravemente incapacitados por lesões cerebrais. O custo social e econômico disso é enorme, além da infelicidade de tantos familiares que ficam privados de seu principal mantenedor ou pela perda ou incapacitação de um de seus membros. Para Park e cols., infelizmente, até hoje, não existem tratamentos que efetivamente limitem a progressão das lesões secundárias desses traumas. 30 

      Embora essa constatação – reconhecida e mais do que documentada pelos registros médicos, policiais e da mídia – pouca atenção tem sido dada aos prejuízos consequentes, de forma especial aos que atingem ou comprometem o psiquismo ou o comportamento das vítimas. Ou seja, aqueles relacionados às deficiências inerentes da existência da alma, agora retratada como mente. 

      A vida, com suas turbulências usuais e o reconhecimento de circunstâncias nunca antes devidamente avaliadas ou investigadas, está a trazer novas fontes (explosões de bombas) capazes de confrontar mais precisamente o que seja um trauma neurológico e o que seja um trauma psíquico, possivelmente abrindo portas mais claras ao entendimento desses processos aparentemente distintos. Novamente, os conflitos armados ao redor do mundo, infelizmente, talvez possam identificar - como já ocorreu em guerras anteriores - a causalidade de algumas perturbações mentais, notadamente a difícil diferenciação entre os traumas considerados como biomecânicos dos psicológicos. Merece registro que essa diferenciação é um desafio permanente na história da humanidade desde antes de Descartes, e mencionar que esse desafio está a representar um enfrentamento às resistências da medicina enquanto se afirma como ciência concebendo o ser humano sem uma alma e, no contraponto, o reconhecimento da existência da psiquiatria também como ciência.   

      Dentro do contexto, vale a pena sumarizar o que pensa Damásio sobre a hipótese da equivalência mente-cérebro. Segundo esse neurocientista, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes não é universalmente aceita. De acordo seu pensamento, os motivos para a relutância em apoiar tal hipótese merecem análise. Diz ele: “No mundo físico, do qual o cérebro faz parte inequivocamente, a equivalência e a identidade são definidas por atributos físicos como massa, dimensões, movimento, carga, etc. Aqueles que rejeitam a identidade entre os estados físicos e mentais sugerem que enquanto um mapa cerebral que corresponda a um objeto físico específico pode ser discutido em termos físicos, seria absurdo discutir o respectivo padrão mental em termos físicos”. Segue dizendo: “A razão apontada é que até a presente data, a ciência não foi capaz de determinar os atributos físicos dos padrões mentais, e se a ciência é incapaz de fazê-lo, então o mental não pode ser identificado como físico”. Contrapondo-se a esse ideário, eis que diz Damásio em seu novo livro: “Receio que esse raciocínio não seja acertado (...). Com efeito, os estados mentais apenas podem ser apreendidos através do mesmo processo que os engloba – ou seja, a mente. É uma situação infeliz, mas não revela nada quanto à condição física da mente, ou à falta dela. Todavia, a situação impõe grandes qualificações às intuições que podem surgir dela, sendo assim prudente duvidar da visão tradicional que assume que os estados mentais não podem ser equivalentes aos estados físicos”. 9

5.      Conclusão.    

      Kendler e Campbell propõem um modelo intervencionista (MI) de maneira a evitar a diversidade de métodos de pesquisa aplicados aos transtornos mentais que resultam numa confusa pletora de reivindicações de causalidades. Esse método teria vantagens ao definir o que aconteceria sobre uma intervenção na prática psiquiátrica, considerando tanto a prevenção e o tratamento das doenças. Nele, além de outras vantagens apregoadas pelos autores, isso libertaria a psiquiatria de amarras teóricas  evitando os argumentos metafísicos estéreis sobre a mente e cérebro que têm preocupado o campo de atuação dos psiquiatras sem nenhum benefício prático.31

      Os argumentos desses estudiosos mostram e procuram qualificar uma visão empírica da psiquiatria, evitando teorizações. Porém, fica muito difícil escapar do problema mente-corpo tal qual ele se apresenta nos dias atuais, com novos desafios agora representados pelas explosões, capazes de afetar tanto a mente quanto o cérebro.

      Recorrendo a Damásio sobre essa questão ainda em aberto, ficam consignadas suas palavras: “Por enquanto, a equivalência estado mental/estado cerebral deve ser encarada como uma hipótese útil e não como uma certeza. Será necessário continuar a reunir dados que a apoiem e para isso precisamos de uma perspectiva adicional, que se baseie em indícios da neurobiologia evolutiva secundados por vários dados da neurociência (a quarta perspectiva). 9    

            

   6. Referências.

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3. Romand D. [“The mind-body problem”. The relation of psychical to physical in 19th century German psychology]. Rev Synth. 2010; 131(1): 35-51.

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6. Van Oudenhove L, Cuypers SE. The philosophical “mind-body problema” and its relevance for the relationship between Psychiatry and the neurosciences. Perspect Biol Med. 2010 Autumn; 53(4): 545-57.

7. Tress W. [The so-called body-mind problem]. Z Psychosom Med Psychother. 2011; 57(3): 261-74.

8. Verztman J. Psicopatologia hoje. In: Silva Filho JF. (org.) Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007; 192 p.

9. Damásio A. O Livro da Consciência: a construção do cérebro consciente. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. 2010; 437 p.

10. Santoro G, Wood MD, Merlo L, Anastasi GP, Tomaello F, Germano A. The anatomic location of the soul from the heart, through the brain, to the whole body, and beyond: a journey through Western history, science, and philosophy. Neurosurgery. 2009 Oct; 65(4): 633-43. 

11.Damásio A. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras. 1996; 330 p.

12.Crespo de Souza CA. Concussões no país do futebol e o silêncio sobre elas. Psychiatry on line Brasil; Novembro 2011, vol. 11 nº 11.

13.Crespo de Souza CA. Trauma psíquico e trauma neurológico. In: Crespo de Souza CA. Avanços em Clínica Neuropsiquiátrica. Porto Alegre: AGE, 2005; p. 31-36.

14. Crespo de Souza CA, Mattos P. Síndrome pós-concussional, reação aguda ao estresse e transtorno de estresse pós-traumático: diferenciação diagnóstica após acidentes com veículos automotores. Rev. Neurociências. 2000; 8(1): 19-25.

15. Crespo de Souza CA. Consequências da evolução no conhecimento da síndrome pós-concussional e da síndrome do estresse pós-traumático. In: Crespo de Souza CA. Avanços em Clínica Neuropsiquiátrica. Porto Alegre: AGE, 2005; p. 37-49.    

16. Bryant R. Post-traumatic stress disorder vs traumatic brain injury. Dialogues Clin Neurosci. 2011; 13(3): 251-62.

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