Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Julho de 2011 - Vol.16 - Nº 7

Psicanálise em debate

HEMINGWAY E ALLEN EM PARIS

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

No próximo dia 2 de julho meio século terá transcorrido desde o suicídio de Hemingway. 

O psiquiatra Christopher D. Martin, que estudou a fundo as quase duas dezenas de biografias publicadas sobre o escritor, diz que, em retrospectiva, tem-se a impressão de que Hemingway passou metade de sua vida tentando matar-se. Não é possível entender de outra forma a sucessão de acontecimentos nos quais colocou sua vida em risco, a seqüência de auto-agressões, a quantidade de graves e bizarros acidentes sofridos por ele, nos quais a cabeça era a parte do corpo mais atingida. Para Martin, Hemingway sofria de grave desordem bipolar, possivelmente era uma personalidade borderline com traços narcísicos, ao que se somava a dependência de bebidas alcoólicas e as seqüelas dos diversos traumatismos cranianos. Teria vivido uma “auto-dramatização psicótica”, como se personificasse uma imagem fictícia de si mesmo, muito distante de suas reais características.

Aparentemente Hemingway se desorganiza aos 28 anos, quando recebe a notícia do suicídio do pai, que se matou com um tiro na cabeça, como ele próprio faria anos depois. Além do pai e dele mesmo, havia outros casos de psicose maníaco-depressiva (transtorno bipolar) na família, como sua mãe, seus irmãos, seu filho e sua bisneta, a atriz de Hollywood  Margaux (esta foi o sexto suicida em quatro gerações).

A obsessão de Hemingway em se apresentar como um super-homem, um modelo de perfeita masculinidade teria raízes em antigos traumas infantis, quando sua mãe o vestia de menina e o chamava de Dutch dolly (bonequinha holandesa), contra que o menino se rebelava. Apesar de ser este um costume relativamente comum naquela ocasião, parece que em seu caso houve excessos. Hemingway dizia odiar a mãe e ser por ela odiado, e só se referia a ela com o pejorativo bitch (cadela). Também com o pai seu relacionamento era difícil. Este era um homem violento que costumava surrar o filho com o couro de amolar navalha. Quando adolescente, Hemingway tinha o desejo consciente de matá-lo com um tiro na cabeça. 

Curiosamente, o filho de Hemingway, Gregory, apesar de ter tido quatro mulheres e oito filhos, era um cross dresser que terminou por fazer a operação de mudança de sexo. Como transexual passou a ser chamada de Gloria e morreu na penúria, depois de ter sido humilhado e rejeitado pelo pai. Não terá sido fácil para Hemingway lidar com esta situação, que evidenciava a insuficiência de sua imagem de homem perfeito enquanto modelo identificatório para o filho, além de possivelmente evocar-lhe as lembranças da Dutch dolly de sua mãe.

Hemingway recebeu o Prêmio Nobel em 1954. Em 1960, afundou numa crise depressiva mais profunda, acompanhada de delírios persecutórios (achava que o FBI o perseguia, amigos queriam matá-lo, etc), o que justificou o acréscimo de eletrochoques às medicações que já tomava. Tais cuidados não tiveram o efeito esperado, pois se seguiram três tentativas de suicídio, sendo a última bem sucedida.  

Mas porque lembrar fatos tão desagradáveis da vida de Hemingway? Porque não se dar por satisfeito com a imagem que ele procurou deixar de si mesmo - o aventureiro amante das armas e das touradas, a participação nas duas grandes guerras e na guerra civil espanhola, as caçadas na África e as pescarias em alto mar, o pugilismo e as grandes bebedeiras, as conquistas amorosas (teve quatro casamentos), a genialidade literária agraciada com um prêmio Nobel?  Para que quebrar o encantamento e insistir em mostrar a realidade, ainda mais agora que o estava vendo “Meia noite em Paris”, o filme Woody Allen que evocava tanto seu delicioso livro póstumo, o “Paris é uma festa”? 

Sim, pois todas estas idéias me ocorriam enquanto via o filme, acompanhando as aventuras de Gil, o norte-americano que pretende ser escritor. Estava ele em viagem por Paris, na companhia dos futuros sogros e noiva, que não compartilham de sua fascinação pela cidade e desconheciam seus heróis. Ignoravam Hemingway, Fitzgerald, Zelda, Cole Porter e Gertrude Stein, compatriotas que residiram na Cidade Luz nos anos 20 e que se aproximaram de Picasso, Dali e dos demais gênios que por ali circulavam. Num passe de mágica, Gil encontra a turma toda. E lá estava Hemingway, deliberadamente ou não  mostrado de forma caricata, dizendo duvidosas frases de efeito e sendo o machão à beira do ridículo, o que reforçava minhas idéias anteriores.

À medida que o filme progredia, percebi que minhas ruminações sobre a necessidade de encarar a realidade, por menos atraente que ela possa parecer frente ao desejado e imaginado, estavam em consonância com a história de Allen. Gil, que idealiza os anos 20, fica perplexo ao constatar que a amante de Picasso não se interessa por seus contemporâneos, pois admira com exclusividade a Belle Époque.  Tal discordância faz Gil abrir os olhos e ver que só tem o tempo presente e é nele que deve procurar viver da melhor forma possível. Para tanto, é imprescindível deixar de lado a idealização de pessoas, lugares ou épocas e fazer render o que a realidade lhe oferece.

Reconfortado, conclui minhas elucubrações sobre Hemingway. Compreendi que olhar o que existe atrás da brilhante fachada pública que ele forjou de si mesmo não era um ataque invejoso contra sua glória, sua imortalidade. Era um necessário movimento que permitia reconhecer sua verdadeira grandeza. Afinal, sua grande conquista não foram as bravatas machistas das quais se jactava e sim a capacidade de vencer suas dificuldades internas e transformá-las em literatura, feito pelo qual lhe somos para sempre gratos. 

 

Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 25/06/2011

 


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