Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2011 - Vol.16 - Nº 8

Psiquiatria Forense

DOSSIÊ DE UM CASO

Sandra Corsaro Candido da Silva
Hilda Clotilde Penteado Morana


O ambulatório de Transtornos da Personalidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP foi fundado pela segunda autora. 

Iniciou as suas atividades na data de 11 de Agosto de 1999 e findou em 23 de Novembro de 2005.

Foi extremamente gratificante aprender com os pacientes que para lá se dirigiram, junto de seus familiares, em busca de alívio para o sofrimento de serem portadores de condição tão perturbadora – transtorno da personalidade -.

Após seis anos do encerramento deste projeto pioneiro, uma mãe, cujo filho suicidou-se, nos encontra e nos presenteia com um dossiê sobre a vida dele.

R. não comparecia às consultas no ambulatório, apenas a sua mãe e eventualmente o seu pai.

Apesar de não ter sido possível fazer com que R tivesse o seu comportamento controlado, a família diz ter se sentido extremamente  agradecida pelo apoio que a nossa equipe lhe ofereceu na ocasião.

Para fazer jus ao seu presente publicamos aqui o caso deste rapaz, que embora não fosse portador de um autêntico transtorno da personalidade agia com se assim fosse, causando o enorme sofrimento para si e para os que com ele conviveram.

A psicóloga Sandra que por mais de um ano foi assistente do ambulatório de transtornos da personalidade reuniu as informações aqui apresentadas.

 

R.

Quando R. nasceu sua mãe tinha 28 anos e seu pai 38, nasceu de cesárea, sua gestação decorreu normalmente não apresentando problemas.

Foi um bebê planejado e muito querido, seus pais tinham o hábito de ir ao quarto que seria ocupado por R. e ficavam imaginando como seria aquela criança tão desejada por eles, mas a única coisa que realmente importava era que viesse com muita saúde.

R. foi amamentado na maternidade, mas ao chegar em casa algo muito estranho aconteceu: após mamar R. regurgitou sangue. Sua mãe, muito assustada, ligou para o pediatra que a recomendou que parasse de amamentá-lo e substituísse por leite em pó.

Quando a licença maternidade acabou a mãe de R. voltou ao trabalho tendo, então, que deixar seu filho numa creche, pouco tempo depois ele perdeu muito peso e adoeceu.

Devido a esse fato ficou internado num hospital por sete dias, apresentou diarréia, vômito e muito catarro, tomou soro e, segundo seu pediatra, R. teve um vírus intersticial respiratório.

Voltou para casa e após dois dias algo pior aconteceu: R. ficou em coma por quatro dias permanecendo um total de sete dias no hospital. Nessa ocasião estava com 4 meses de idade. 

Tal processo infeccioso pode ter causado um processo encefalítico, levando  R. a uma pseudopsicopatia.

Já recuperado e em casa, sua mãe tentou voltar ao trabalho, mas sua demissão já estava assinada. Decidiu então ficar em casa e dedicar-se a seu filho, casa e marido.

Após esses dois episódios, R. teve um desenvolvimento normal.

Não fez o uso de chupeta, tinha o sono tranqüilo, mas dormia com os olhos semi-abertos.

Gostava de brincar sozinho com seus brinquedos e apresentava certa preferência pelos “carrinhos”. Quando brincava com outras crianças demonstrava certo egoísmo em não querer dividir seus brinquedos. Tinha um primo que era três anos mais velho com quem também brincava, mas quando algo que ele não gostava acontecia, eles brigavam e R. tinha o costume de mordê-lo.

Começou a freqüentar a escolinha aos dois anos de idade e não demonstrou problemas de adaptação. Gostava de brincar com seus amiguinhos.

Seu pai sempre foi bastante presente, brincavam juntos, jogavam e na fase de sua adolescência costumava levá-lo e buscá-lo em festinhas e reuniões, bem como em atividades extracurriculares.

Em sua infância teve dois animais de estimação: uma gatinha que ele encontrou na rua e trouxe para casa e depois ganhou uma cachorrinha. Cuidava e demonstrava certo carinho por esses animais. Um vizinho disse a seus pais que R. havia tentado atirar em seu gato com uma arma de chumbo mas não consegui acertá-lo.

Quando completou seis anos de idade sua mãe voltou a trabalhar.

R. começou a freqüentar o primário, mas desde cedo apresentava resistência em fazer a lição de casa necessitando a permanência e ajuda dos pais diariamente. Desentendia-se e implicava bastante com a moça da perua escolar.

Aos doze anos de idade teve uma dor de cabeça muito forte que o fazia gritar de dor, foi diagnosticado com rinite, fez tratamento com o uso de remédios e vacina apresentando uma melhora significativa.

Anos depois em seu “primeiro dia de aula” já no ginásio e em outro colégio, R. brigou e voltou com o uniforme todo rasgado.

Era querido pelos amigos e também pelos professores, que gostavam dele embora dissessem que ele produzia o mínimo necessário.

Sempre foi líder e certa vez, juntamente com um amigo, derrubou a porta da sala de aula. Recebeu varias advertências, cabulava aula, repetiu o ano, era bagunceiro e encrenqueiro.

Certa vez num almoço com sua mãe, revelou que usava maconha.

Após esse fato ambos começaram a fazer terapia e segundo sua mãe R. criou laços de amizade com a terapeuta.

Aos finais de semana R. gostava de sair com os amigos, queria que seus pais lhe dessem dinheiro e emprestassem o carro o que era muitas vezes causa de discórdia e briga entre eles. Mesmo sem a autorização dos pais R. por duas vezes pegou o carro escondido. Tinha o costume de ir a festas, beber, fumar, às vezes brigava e chegou ate ser levado ao hospital embriagado, quase em coma alcoólico.

Foi apaixonado e manteve um relacionamento de oito meses com a irmã de seu melhor amigo, mas devido a seu comportamento explosivo e briguento o relacionamento acabou após um incidente onde R. apanhou muito dos seguranças de uma festa, tendo que ser levado ao Hospital dos Defeitos da Face. Em decorrência do fim do namoro R. “sofreu e chorou muito como nunca havia acontecido antes” relata sua mãe. Teve outros três relacionamentos, mas todos duraram menos de 1 ano.

Aos dezoito anos ganhou seu carro e parte de sua liberdade, saia sem dizer aonde ia e a que horas iria voltar, chegou a passar alguns dias fora de casa para desespero dos pais. Tinha o péssimo hábito de não atender o celular e quando era questionado dava respostas esquivas e costumava mentir também.

Fez natação, curso de informática, basquete, mas todos seus projetos não iam muito longe, pois logo se desinteressava não dando continuidade a eles. O único curso que realmente o interessou foi o de inglês por onde permaneceu por nove anos. Tinha como ídolo Ayrton Senna. Chegou a chorar com sua morte. Gostava de Jazz, Titãs, Djavan. Também fazia trabalhos manuais em madeira e pintava quadros. Dizia querer ser jornalista, mas cursou Administração de Empresas por seis meses, mudou para o curso de Rádio e TV e não concluiu nenhum deles.

Às vezes ajudava nos trabalhos domésticos, lavava a louça, arrumava sua cama, limpava o jardim, e até ajudou a pintar a casa. Quando os negócios do pai não iam muito bem ia a Igreja de São Judas rezar e pedir para que os negócios melhorassem.

Só teve dois empregos. No primeiro, permaneceu por seis meses e pediu para sair porque precisava de três semanas para reorganizar seus pensamentos, mas nunca mais retornou. O segundo emprego não durou nem um mês, pois não havia interesse por parte dele. Seu humor piorou muito depois que começou a trabalhar, não gostava de acordar cedo, ter que obedecer e cumprir com as regras e limites impostos a ele.

Os pais perceberam que havia algo de errado com o filho após a separação, seu comportamento agressivo e violento aumentou bastante. Segundo sua mãe a convivência com o filho era assustadora, já que ela tinha que dormir com a porta do quarto trancada, pois tinha muito medo do que pudesse acontecer. Não se conformava com a agressividade e indiferença que o filho demonstrava em relação a ela.

Após um episodio de fúria onde R. quebrou muitos objetos e móveis em casa sua mãe decidiu ir dormir na casa da avó de R., mas seu filho foi atrás dela e também decidiu dormir por lá. Enquanto rezavam em voz alta R. teve outro ataque de fúria quebrando novamente muitos objetos e tudo que via pela frente, chegando quase a agredir fisicamente sua avó tendo sido impedido pelo tio. Ameaçou e forçou sua mãe a voltar para casa com ele e disse: “Você vai voltar para casa comigo, seu lugar é lá e vai ter que ser do meu jeito!”.

R. nunca se conformou com a separação dos pais e uma vez disse: “Meu pai me abandonou”. Nesta época seus amigos se distanciaram e R. começou a andar em más companhias. Não queria ouvir seus pais, achava que ele sempre estava certo, era “intolerante” e “invocado”, relata sua mãe.

A pior fase começou em 2003 quando R. foi morar na casa de seus pais sozinho. Nessa fase, R. isolou-se do mundo, já não saia mais, vestia sempre a mesma roupa, quase não tomava banho, não fazia a barba, não cortava as unhas, não limpava a casa, só comia o que os pais lhe traziam, passava os dias a assistir TV.

Nos Natais iam sempre passar com o filho, mas ele não queria sua companhia. Chegou a dizer-lhes: “Só quero que venham a cada quinze dias”. Já apresentava uma aparência ruim, debilitado, muito pálido, magro e sem vida. Seus pais costumavam levar comida e roupas limpas e quando tinham oportunidade limpavam a casa também.

Certa vez chegou a desligar a geladeira levando-a ate o meio da cozinha tentando nos  mostrar que já não queria mais que levássemos comida.

O último dia que os pais o viram era uma quinta feira. R. estava com uma aparência boa, havia tomado banho, mas manteve a barba, levou os pais ate o portão dando-lhes um beijo e se despedindo. No dia seguinte saiu de casa, foi até o mecânico que conhecia e pediu vinte reais emprestados, comprou uma passagem para o Guarujá e foi até o condomínio no qual sua tia havia tido um apartamento no passado, e lá tirou sua própria vida atirando-se nas pedras.

Ficou sem identificação por quatro dias para desespero de seus pais, até que receberam um telefonema pedindo que alguém fosse reconhecer o corpo. Seu pai foi até o Guarujá reconhecendo então o corpo de seu filho.

 

Durante toda sua vida houve vários episódios onde R. demonstrou seu comportamento explosivo e agressivo,

-Fraturou o pé após dar um chute na parede;

-Fraturou a mão após dar um soco na TV;

-Quebrou o nariz do pai após tê-lo visto sentado à mesa no lugar que o pertencia;

-Brigou muitas vezes e em lugares muito diferentes como no metrô, na escola, em festas, na rua, no clube.

-Quebrou inúmeros objetos e móveis dentro de casa;

-Bateu várias vezes com seu carro no portão da garagem após um ataque de fúria ao ver seu pai em casa.

 

Houve também várias tentativas de suicídio:

1)     Tentou enforcar-se com uma corda em casa, não obtendo sucesso ligou para a polícia com a intenção de reagir assim que chegassem esperava ser alvejado e morto, mas seu pai chegou antes e o impediu de levar seu plano adiante;

2)     Ingeriu setenta aspirinas e foi parar no hospital;

3)     Jogou-se no dia do seu aniversário de um barranco de trinta metros de altura fraturou a bacia, perfurou o pulmão, fraturou a coluna lombar e teve que ficar por dois meses de cama sem poder se mexer;

4)     Colocou cerol em uma linha e amarrou em dois postes passando de moto e cortando sua garganta de ponta a ponta, foi parar no hospital tendo que tomar muitos pontos e deixando-lhe uma enorme cicatriz;

5)     Novamente tomou varias aspirinas;

6)     Ingeriu vários remédios psiquiátricos;

7)     Jogou-se nas pedras tirando sua própria vida.

 

Houve também varias passagens por Clinicas Psiquiátricas:

1)     Clinica Esquadrão Vida, permaneceu internado por dois meses, isso apos ter sido pego roubando um carro e ter ficado preso em uma delegacia por quatro dias;

2)     Hospital Vera Cruz

3)     Santa Casa permaneceu duas semanas, apos ter agredido o pai fisicamente quebrando-lhe o nariz;

4)     Clinica no interior, Casa de Evangélicos, permaneceu por dez dias;

5)     API permaneceu um pouco mais de um mês.

Apos as internações R. ameaçou os pais de morte se tentassem interná-lo mais uma vez.

 

 

DISCUSSÃO

Casos com o de R.  que apresentava transtornos graves do comportamento pode ser conseqüente a processo encefalítico, ocasionado por processo viral, aos seus 4 meses de idade, quando inclusive ficou em coma por quatro dias. O comportamento mais exuberante de descontrole impulsivo e elevada irritabilidade são mais característicos de processo orgânico do que propriamente de transtorno da personalidade constitucional.

São bem conhecidos os casos de  encefalite epidêmica ou letárgica ( Von Economo), e que representam seqüela ou alteração  da personalidade.


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