Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Abril de 2010 - Vol.15 - Nº 4

Psicanálise em debate

FREUD COMO NO ORIGINAL (*)

Sérgio Telles *
psicanalista e escritor

Recentemente colocadas sob domínio público, a obra de Freud já começa a chegar às livrarias em suas novas roupagens, como esta providenciada pela Companhia das Letras. A editora planeja o lançamento da obra completa traduzida diretamente do alemão pelo germanista Paulo Cesar de Sousa. O projeto editorial, organizado em 20 volumes, respeita a seqüência cronológica dos textos, mas lança inicialmente as obras publicadas por volta de 1915, ou seja, de um período no qual o pensamento freudiano estava consolidado e em franca expansão teórica. 

Assim aparecem agora os volumes 10 (“Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia (O caso Schreber)”, Artigos sobre Técnica e outros textos – 1911-1913); 12 (“Introdução ao Narcisismo”, Ensaios de Metapsicologia e outros textos – 1914-16); e 14 (“História de uma neurose infantil [O homem dos lobos]”, “Além do principio do prazer” e outros textos - 1917-20).

Temos ai trabalhos teóricos e técnicos da maior importância e dois dos famosos casos clínicos de Freud, o “caso Schreber” e o “Homem dos Lobos”, que certamente encantarão o leitor curioso. Schreber foi um importante magistrado alemão que escreveu um registro biográfico no qual expõe com riqueza de detalhes (embora a família tenha censurado grande parte do texto) a transformação de seu corpo para ser a mulher de Deus e com ele engendrar uma nova raça de homens. A partir deste livro, Freud retraça as origens e os significados do delírio, mostrando como mesmo as idéias mais loucas e descabidas podem ser compreendidas, desde que remetidas à lógica própria do inconsciente. O mesmo pode ser dito sobre o Homem dos Lobos, jovem russo e rico que perambulava pela Europa atrás de quem o curasse de suas angústias e que, aos 4 anos, tivera um sonho no qual via uma árvore em cujos galhos estavam sentados alguns lobos (razão do apelido com o qual ficou conhecido), o que permitiu a Freud realizar uma controvertida construção .

Concomitantemente às obras de Freud, a editora relança a tese de doutorado do tradutor, “As palavras de Freud, - o vocabulário freudiano e suas versões”, centrada no exame das dificuldades apresentadas na tradução de determinados termos “técnicos" fundamentais dentro na teoria freudiana. São eles Ich (ego), Es (id),  Besetzung (catexia), Verdrängung  (repressão), Vorstellung (representação), Angst (angústia), Nachtraglichkeit (posterioridade), Verneinung (negação), Verwerfung (forclusão), Zwang (obsessão),  Trieb (pulsão ou instinto) e Versagung  (frustração).

Este foco poderia ter resultado em um texto árido, o que não ocorre, pois, para desenvolver a discussão filológica destes termos, Sousa parte das duas grandes traduções paradigmáticas da obra freudiana que o antecederam – a inglesa Standard Edition, de James Strachey e a Oeuvres Complètes, o projeto francês ainda em curso dirigido por Jean Laplanche – oferecendo um rico panorama de seus contextos históricos e institucionais. Seguimos com interesse o percurso da Standard Edition, durante décadas considerada o padrão-ouro das traduções dos textos freudianos. Seu prestígio diminuiu com o aparecimento das críticas de Bruno Bettelheim, publicadas - certamente não por coincidência - logo após a morte de Anna Freud, defensora de Strachey,  fato que mostra a influência dos fatores políticos no trato da obra freudiana. Da mesma forma, tomamos conhecimento das grandes polêmicas que cercam ainda hoje a tradução francesa, vazada, na opinião de alguns, num bizarro “laplanchês”. No capítulo sobre estilo e terminologia de Freud, Souza resume as análises estilísticas de Walter Muschg, Walter Schönau, François Roustang, Robert Holt, Patrick Mahony eUwe Pörksen, dissecando os aspectos formais do texto freudiano , que oscila entre a prosa artística e a prosa cientifica, usando com desenvoltura tropos e figuras de retórica. 

Ao se estender sobre a conhecida discussão em torno das palavras “instinkt” (instinto) e “trieb” (pulsão), que estamos habituados a discriminar com tanto cuidado, Sousa faz a surpreendente afirmação de que, neste particular, somos mais realistas do que o rei, pois o próprio Freud não estabelecia uma distinção tão rígida entre elas. Se “instinkt” efetivamente evoca padrões próprias do mundo animal, isso não era um problema para Freud, que, como Nietzsche , não negava a dimensão animalesca do homem. 

Sousa faz uma observação com a qual qualquer leitor de textos psicanalíticos imediatamente concorda: “Quem observa, ainda que panoramicamente, a produção e o modo de atuar dos meio psicanalíticos estrangeiros, constata um divórcio entre a prosa direta, sem adornos e apegada à referência clinica, própria da psicanálise nos países de expressão inglesa, e a prosa mais refinada e um tanto vaga, cônscia de si mesma e auto-refervente, peculiar a boa parte do movimento psicanalítico francês”.

Neste aspecto, os autores de língua inglesa, mesmo sem o talento literário de Freud, estão mais próximos de sua didática clareza, que procurou sempre se afastar das esfumaçadas formulações onde tão facilmente se abriga a falsa profundidade.  

 

Sérgio Telles é psicanalista e escritor, autor de “Visita às casas de Freud e outras viagens” (Casa do Psicólogo), entre outros.

(*) Artigo publicado no caderno “Sabático” do jornal “O Estado de São Paulo”, em 26/03/10


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