Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2010 - Vol.15 - Nº 9

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

TEORIA DOS JOGOS E POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL

Fernando Portela Câmara
Guilherme C. Portela Camara

Summary: The authors present a brief analysis of the conflict which currently revolves around the deployment of a mental health policy in the country. This policy minimizes the current medical model of care. The possible outcomes are analyzed from the perspective of game theory.

Key-words: mental health police, theory of games,

O Brasil, a exemplo de alguns países do mundo, adota hoje a política de desospitalização e despsiquiatrização do doente mental, considerando-o não mais como doente, mas como vitima ideológica da sociedade e da medicina. Nega-se a doença mental, substituindo-a pela vaga expressão “sofrimento psíquico”, questão a nosso ver sui generis, pois, não nos parece haver dúvida sobre a existência da doença mental (Câmara, 2007a, 2007b, 2008a, 2008b). Este movimento é referido por diversas designações: “movimento antipsiquiátrico”, “movimento antimanicomial”, “movimento da reforma psiquiátrica”, e outros, que designaremos sob a sigla MA. Em oposição a ele estão os psiquiatras que defendem o modelo médico de tratamento e hospitalização quando necessário. Este movimento, doravante referido como MP, defende a aplicação da lei 10.216 de 2001, que obriga o Estado a prestar assistência médica ao doente mental, e das diretrizes específicas para a saúde mental recentemente homologado pelo Conselho Federal de Medicina. Os “reformistas”, contudo, tem sua própria leitura da citada lei, promovem a desospitalização e minimizam a participação de médicos na assistência ao doente mental.

 

Entre ambos os grupos há uma radical oposição. O grupo reformista tem posição no governo e lidera uma coalizão em que participam psiquiatras, psicólogos representados pelos seus órgãos de classe, psicanalistas, “trabalhadores da saúde mental”, parte dos prefeitos e secretarias de saúde. Já o grupo dos psiquiatras que defendem o modelo médico conta com o apoio de familiares dos doentes mentais e parece ser simpático à sociedade, mas não tem liderança na política nacional que dirige o atual programa de “reforma” do atendimento psiquiátrico.

 

Jogos de guerra

Sempre que duas pessoas ou grupos disputam um mesmo interesse, estamos diante de um conflito em que a melhor solução dependerá da racionalidade do atores, ou seja, das suas capacidades de elaborar estratégias. Este tipo de situação é objeto de um ramo recente da matemática aplicada denominado Teoria dos Jogos, que trata de situações de conflito em que os participantes não cooperam uns com os outros e cada qual racionaliza suas estratégias no sentido de obter a melhor vantagem para si. A Teoria dos Jogos procura prever como indivíduos ou grupos tendem a se comportar durante uma disputa e qual o resultado final mais provável. Ela permite também analisar as estratégias possíveis e avaliar quais as melhores ou como eliminar uma tendência desequilibrada numa disputa.  Portanto, é possível modelar uma situação de conflito entre oponentes ou “jogadores” e estudar as melhores opções de estratégia disponíveis e prever o resultado final mais “racional”.

O jogo que melhor ilustra o conflito atual na política de saúde mental brasileira é aquele conhecido como Chicken (uma gíria americana para “fracote”, “medroso”). É um jogo de poder popularizado no filme “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause, 1955), que imortalizou o ator James Dean. FoiBertrand Russel, porém,  que canonizou este jogo no seu livro Common Sense and Nuclear Warfare (1959). O leitor encontrará uma boa discussão sobre este jogo no livro de William Poundstone (1992). Russel descreve um jogo em que dois motoristas avançam um na direção do outro em linha reta e acelerado, e o primeiro a desviar perde o jogo (é o “chicken”); se ambos desviam é empate (0, 0); e se ambos não desviam perdem a própria vida (-1, -1). A figura abaixo ilustra o jogo, onde cada par de números indica o ganho do jogador A e B, respectivamente. No nosso caso, o ganho 1 por não desviar significa o ganho de liderança no projeto político, e o ganho zero e perda de poder e do projeto; a situação em que ambos desviam, é aquela em que não há incentivo do governo nem para e nem para outro projeto; e a situação em que ambos não desviam significam um confronto de batalhas judiciais e políticas que paralisa toda iniciativa.

 

B

Desvia

Não desvia

A

Desvia

0; 0

     0; 1

Não desvia

1, 0

-1; -1

 

No jogo chicken é difícil decidir quem irá desviar primeiro para evitar a colisão. Este salvará sua vida embora perca o jogo, enquanto o outro ganha e também salva sua vida. Assim, o jogo tem dois resultados desejáveis, (0; 1) e (1; 0): jogador A desvia primeiro e B ganha, ou jogador B desvia primeiro e A ganha. Trata-se de estratégias puras (ou seja, só uma opção permite ganhar), com dois equilíbrios Nash, pois ambos salvam suas vidas não importando quem irá perder, e não há vantagem em buscar os outros resultados (o equilíbrio Nash define um resultado em que não há vantagem racional para os participantes mudarem de estratégia).

 

A vantagem de estar na direção dos programas de saúde mental do governo dá ao movimento antipsiquiátrico firmeza e aceleração para ir direto ao confronto com o movimento psiquiátrico, confiando que este não terá apoio e será obrigado a desviar em sua trajetória. Esta é presentemente a situação, mas não podemos ignorar que há dois equilíbrios Nash neste jogo de estratégias puras. Tanto um quanto o outro são resultados possíveis já que os interesses são antagônicos, contudo, o primeiro equilíbrio Nash (MA vence, MP desvia) tende a se realizar. Por outro lado, havendo uma contra-reação organizada do modelo médico pressionando pela leitura original da lei 10.216, pelas diretrizes, e pela realocação da supervisão psiquiátrica nos Caps, teremos o segundo equilíbrio como opção (MP vence, MA desvia). Em qualquer dos casos, a estratégia de confronto (opção por um dos dois equilíbrios Nash) só será bem sucedida se ficar evidente que o outro competidor desviará. Não há possibilidade de um acordo “bom para todos”, uma vez que a situação político-ideológica domina. Portanto, a opção por um dos dois equilíbrios Nash se definirá por forças politicamente organizadas.

 

            Como já mostramos, chicken está sendo jogado com estratégias puras (joga-se pela opção de vencer, descartando-se a outra), e por isso há dois equilíbrios Nash, cuja opção condiciona-se a uma pressão. Se o jogo fosse jogado com estratégias mistas teríamos um único equilíbrio Nash. Mas este novo jogo só será possível se a estratégia pura vencedora tiver um alto custo social, sacrificando familiares e a sociedade com os custos do ônus e conseqüências da doença mental, o que forçará um acordo em que MAs e MPs negociarão uma solução contra a qual não haverá incentivo para mudar. Por ora, observamos.

 

Referências

 

Câmara FP. The Kraepelin’s Catastrophe, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 10(2): 307-318, 2007a.

Câmara FP. A construção do diagnóstico psiquiátrico, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 10(4): 677-684, 2007b.  

Câmara FP. Dinâmica não linear e psiquiatria: a natureza dinâmica das doenças mentais, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11(1): 105-118, 2008a.

Câmara FP. Mortalidade por transtornos mentais e comportamentais e a reforma psiquiátrica no Brasil contemporâneo, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11(2): 278-285, 2008b.

Poundstone W. Prisoner’s dilemma, New York: Doubleday, 1992, p. 197-201.

 


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